Ciência e crianças: ideias que valem a pena

Foto de Ana Arnt

Atualmente, temos visto de forma sistemática o trabalho docente sendo questionado. Como assim? Ora, pedidos de denúncias, projetos de lei e dizeres dos mais diversos setores afirmando a necessidade de se trabalhar com conteúdos restritos, formalidades acadêmicas, e muito mais. Seria possível ter criatividade em sala de aula, sem liberdade de saciar curiosidades e com planejamentos alternativos?

Todavia, mesmo com todas estas questões, o trabalho não para por aqui, no PEmCie. Ou seja, nós seguimos às voltas com a pesquisa e os estudos que envolvem ciência, escola, docência, cultura e cotidiano… Nestes momentos é fundamental rever alguns pontos que nos fazem pensar sempre (e mais…). Assim, já que a discussão acerca do conteúdo escolar parece apresentar restrições cada vez maiores, resolvi retomar um artigo que me apresentaram tempos atrás. Em tempos em que o conhecimento anda tão deixado de lado e a docência tão fragilizada em discursos ameaçadores, penso que esta pesquisa produzida por estudantes, na Inglaterra, deveria ser relida. Em suma, o artigo se trata de um experimento com abelhas e foi publicado na Biology Letters, intitulado Blackawton bees (e pode ser lido aqui).

As crianças montaram o experimento com as abelhas, treinando-as para – nas palavras delas – resolver problemas “como nós” (humanos). A principal descoberta das crianças foi:

“Nós descobrimos que abelhas podem usar uma combinação de cores e relações espaciais para decidir em quais cores de flores buscar alimento. Nós também descobrimos que ciência é legal e divertida pois nós podemos fazer coisas que ninguém fez antes”. (tradução livre e tosca desta que vos escreve…).

O artigo é escrito em uma linguagem extremamente simples e direta. Muitas vezes, como deve ser: com criatividade e divertidamente! O que não tira a grandiosidade do trabalho, pelo contrário. Nos lembra que o conhecimento é uma construção humana, realizada pela curiosidade, pela observação, pelo exercício do pensar… “Será que…?”, “Por quê?”, “Como?” são perguntas comuns a cientistas e crianças. Pena que as vezes, na ciência, nos esquecemos da leveza e da alegria… preocupados com o tempo, os prazos, a competitividade – o que leva, inclusive, às publicações. Esta publicação é fruto de um trabalho criterioso, sério, rigoroso, mas com uma leveza de ser… Sem precisar publicar, sem a pressão insana de órgãos de fomento e de pontuações de currículo, elas foram lá e fizeram (com lápis de cor e tabelas coloridas).

Pode ser até um pouco ingênuo… Mas estas crianças nos trazem de volta um pouco da suavidade perdida ao longo da vida adulta. Nos lembram que ensinar ciência não se restringe a passear pelos resultados científicos acumulados ao longo de séculos. Tampouco silenciar crianças e adolescentes com inúmeros nomes, listas, ciclos e cálculos sem que se criem relações com a sociedade e a cultura! Isto é, ensinar ciência se vincula ao que temos de mais precioso, como espécie: o conhecimento (com responsabilidade e ética, sempre) e a possibilidade de produzi-lo.

Mas, mas, e o conteúdo?!?! Bradam sempre aqueles que andam defendendo formalismos e listas de tópicos com objetivos elencados dentro de uma lógica de isenção e neutralidade da ciência. Sério que ensinar ciência deste modo não tem conteúdo? E agora? Eles não saberão todos os filos, todos os nomes de todas as partes dos seres (meristemas apicais; esclerênquimas; túbulos de Malpighi; côndilo occipital…), dentre outros nomes? Como faremos agora que elas não sabem disso? Ah, sim… Elas não precisam disto, pois os livros estão recheados destas coisas. Elas sabem mais: como usar e pensar a partir disto. Ou melhor, ao ver o mundo, pensam (e agem) sobre ele!

Que perigo não nos trará isso!!! É conteudistas, melhor voltar para as classes, ordens, famílias, para não desequilibrar o mundo… (ironia ligada ao volume máximo).

Aliás, quando vejo isto, também penso em tudo o que se diz, que é preciso de certo tempo – idade e maturidade – para aprender determinadas coisas. A compreensão de como se faz ciência precisa de tempo. De certo para entrar em moldes e padrões estabelecidos e modificar pouca coisa…

Pode ser que eu esteja dando mais valor ao artigo do que ele realmente mereça (duvido, no entanto). Mas realmente fico insuportavelmente feliz quando percebo que ainda pode ser divertido ensinar aquilo que eu escolhi como profissão: as Ciências Biológicas.

Este artigo volta e meia torna-se leitura recomendada aos meus alunos da universidade… Não que isso mude o mundo, claro… Tampouco muda a educação em ciências no Brasil. Aliás, nem parto do princípio que mudanças nesta dimensão toda são simples, para falar a verdade. Todavia, se docentes (ou futuros docentes) lembrarem do quanto o conhecimento científico, em especial a Biologia, é fantástico, entenderão, também, o quanto nosso trabalho cotidiano não se restringe ao ato de “passar matéria”.

Outra coisa que chama a atenção no artigo é como podemos ter explicações claras, científicas, produzindo saber, sem soberba e com muito entusiasmo! E, olhe só, escrito em primeira pessoa (nós concluímos, nós aprendemos…). A simplicidade tem lugar no mundo dos adultos, e com ela aprendemos (de novo) o prazer de conhecer e explicar o que conhecemos!

Deixo, abaixo, a conclusão do artigo (original em inglês. Pois adorei do jeito que está e pronto! rsrs).

“We conclude that bees can solve puzzles by learning complex rules, but sometimes they make mistakes. They can also work together (indirectly) to solve a puzzle. Which means that bees have personality and have their personal ‘likings’. We also learned that the bees could use the ‘shape’ of the different patterns of individual flowers to decide which flowers to go to. So they are quite clever, because they can memorize a pattern. This might help them get more pollen from flowers by learning which flowers might be best for them without wasting energy. In real life this might mean that they collect information and remember that information when going into different fields. So if some plants die out, they can learn to find nectar in another type of flower.

Before doing these experiments we did not really think a lot about bees and how they are as smart as us. We also did not think about the fact that without bees we would not survive, because bees keep the flowers going. So it is important to understand bees. We discovered how fun it was to train bees. This is also cool because you do not get to train bees everyday. We like bees. Science is cool and fun because you get to do stuff that no one has ever done before. (Bees—seem to—think!)”

Em suma, nada mais me resta falar, fora o entusiasmo (que já deve ter sido notado por quem chegou até aqui) de ver este artigo… Ler “we like bees” em um artigo científico é simplesmente fantástico. Sim! Qual o motivo mais teríamos para pesquisar se não gostar daquilo que observamos? Qual o problema de gostarmos de nosso objeto de estudo? Enfim, fora estes devaneios, sinto-me lisonjeada por ter lido algo assim, que me mostra que realmente existe jeito para o mundo (para a produção científica, para a educação em ciências… ).

Para terminar, só para variar um pouco, usarei um escrito de Mário Quintana (pois tudo isso que sempre falamos ele já sabia, e escrevia em forma de poema…)

APROXIMAÇÕES

Todo poema é uma aproximação. A sua incompletude é
que o aproxima da inquietação do leitor. Este não quer que lhe
provem coisa alguma. Está farto de soluções. Eu, por mim, lhe
aumentaria as interrogações. Vocês já repararam no olhar de
uma criança quando interroga? A vida, a irrequieta inteligência
que ele tem? Pois bem, você lhe dá uma resposta instantânea,
definitiva, única — e verá pelos olhos dela que baixou vários
risquinhos na sua consideração.
(Mário Quintana, a vaca e o hipogrifo, p. 48)

Para se encantar também:

Blackawton, P, Airzee, S, Allen, A, Baker, S, Berrow, A, Blair, C, Churchill, M, Coles, J, Cumming, R, Fraquelli, L, Hackford, C, Hinton Mellor, A, Hutchcroft, M, Ireland, B, Jewsbury, D, Littlejohns, A, Littlejohns, G, Lotto, M, McKeown, J, O’Toole, A, Richards, H, Robbins-Davey, L, Roblyn, S, Rodwell-Lynn, H, Schenck, D, Springer, J, Wishy, A, Rodwell-Lynn, T, Strudwick, D, & Lotto, R (2010) Blackawton bees Biology Letters DOI: 10.1098/rsbl.2010.1056

Para saber mais sobre neutralidades científicas e o ensino escolar:

LATOUR, Bruno & WOOLGAR, Steve (1997). A vida de laboratório. Rio de
Janeiro: Relume Dumará.

XAVIER, Maria Luisa M. (2007) Os incluídos na escola: o disciplinamento nos processos emancipatórios. In: Wortmann et al. (org) Ensaios em Estudos Culturais, Educação e Ciência. Porto Alegre:
Ed. UFRGS. p.35-52.

WORTMANN, Maria Lucia Castagna (2008) A visão dos Estudos Culturais da Ciência. Com Ciência. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. 

Sobre Ana Arnt 56 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

2 Comentários

  1. Inspiradoras as questões levantadas! Sempre me questiono em que ponto as crianças perdem o prazer em aprender; nos anos iniciais cada descoberta é um encantamento e à medida em que se progride nas séries muito disso se perde.

    • Olá, Michele!

      Não é incrível? Este artigo sempre me faz pensar sobre as possibilidades de estimularmos a criatividade das crianças - e do quanto a liberdade pedagógica também é fundamental para um trabalho mais eficiente!

      Agradeço o comentário. Abç

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  1. Sobre a paixão pelo conhecimento - PEmCie

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