Sobre a paixão pelo conhecimento

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
(Chico Buarque, Uma Palavra)

Confabulando entre amigos dia desses, nessas conversas nerds comuns e sobre recordações escolares, comentava sobre o quanto me encantava aprender, o uso das palavras e tudo o que podemos fazer a partir delas, todo o conhecimento possível pelas palavras.

Em tempos atuais, de desvalorização da docência em diversos meios de debate, é preciso buscar o que nos encantou pelo trabalho de sala de aula. Em termos de escola, eu poderia citar a leitura do livro O homem que calculava (Malba Tahan). Nesta época, tomava a matemática como minha área de principal interesse. Recordo-me, por exemplo, quando aprendi sobre o cálculo de Erastótenes. Quem? Erastótenes, matemático e geógrafo grego que viveu entre 276 a.C. e 194 a.C., do raio da Terra. (Vocês podem ver um pouco mais aqui e aqui). 

Há outra leitura, de ficção científica, que me fez tomar as palavras e seu uso algo fenomenal. No conto Profissão do livro Os nove amanhãs, de Isaac Asimov seres humanos aprendem a ler no “dia da educação”. Neste dia, crianças aprendem a ler com máquinas específicas que “inserem” a compreensão das palavras de forma automatizada. No conto, George, personagem principal, apaixona-se pela leitura. Passa sua juventude lendo. Mas ele é tido como uma pessoa estranha à sociedade. Pois poucos entendem como alguém quer aprender pela leitura, já que há métodos mais rápidos e eficazes para tanto. A grande questão trabalhada por Asimov é a possibilidade de criatividade que a leitura nos proporcionaria.

Todavia, nerdices nada à parte, este tipo de debate me instigava. Eu me fascinava pela noção de que o conhecimento não era acúmulo, mas modo de ver e entender o mundo. Talvez mais do que isso, criava condições de agir no mundo.

Larrosa, a partir de Aristóteles, nos define como viventes com palavra. 

Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos (Larrosa, 2002, p.21).

E é ao dar sentido ao que somos e ao que acontece que nos relacionamos com tudo o que existe ao nosso redor. Dessa forma, nascemos em um mundo em que as palavras já existem e entramos em contato com elas desde muito tenra idade – até nos apropriarmos destas. Nesta relação, fabricamos, constituímos, organizamos pensamentos e, também, conhecimento. Narramos fenômenos, acontecimentos, a nós e aos outros, a partir da organização das palavras, transformando-as em algo maior. Ainda de acordo com Larrosa, 

As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras (Larrosa, 2002, p.21, grifos meus).

E é este “mais do que simplesmente palavras” que me fascinava na infância/adolescência e, até hoje, faz sentido seguir buscando e construindo – como sujeito, como docente, como alguém que aprende.

Retomo a ideia da desvalorização da docência nos tempos atuais… Esta é uma das profissões que teria condições de criar isto em sala de aula. A ideia de cerceamento pedagógico que temos atualmente, remete-me ao aprendizado automatizado do conto de Asimov, sem liberdade de ensinar e aprender, sem possibilitar que a relação entre sujeito-docente e sujeitos-discentes produzam a partir das palavras, algo maior.

Em outro destes momentos (de férias, para ser sincera) de leitura, me deparei com uma nota de final de capítulo. Michel Foucault, no livro organizado Aulas sobre a vontade de saber se diz surpreso e encantado por retomar as leituras de Espinosa. Em suas aulas, ele afirma que Espinosa tem como filosofia (assim como ele)

Fazer do conhecimento a mais poderosa das paixões (Foucault, 2014, p.27).

Ora, parece-me que é esta a questão que busquei tratar no post anterior, sobre ciência e crianças, bem como outro sobre o excesso de informações. O quanto necessitamos hoje organizar as informações que existem (e recebemos) no mundo, mas também a incursão no aprendizado via criatividade, questionamentos e uma docência que não só possibilita, mas cria condições para tanto.

Assim, é preciso tempo, encantamento, disponibilidade e, definitivamente, tempo (de novo) sem cerceamento de ideias! Conhecimento se busca, se constrói por encantamento – não retirando todo o trabalho decorrente disso, obviamente, nem tomando como dom (tema que tratarei em outro post, em breve). 

E tu, te encantas pelo quê?

Para saber mais

Asimov, I (1954) Os nove amanhãs. Publicações Europa-América, LDA. 

Foucault, M. Aulas sobre a vontade de saber: curso no collége de France (1970-1971). Martins Fontes, 2014.

Larrosa, Jorge (2002) Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n.19.

TAHAN, M. (2002) O Homem que Calculava. 58ª edição. Rio de Janeiro, Editora Record.

Para escutar enquanto lê

Chico Buarque. Uma Palavra.

Sobre Ana Arnt 56 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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