Cotidiano
A aridez do concreto da sala, com seu chão cinza e as paredes brancas, a escrita mediada pelo teclado… O insípido ambiente não parecia propício para as ideias fluírem e falar sobre identidade, resolvi tomar o último gole de café, antes de esfriar e completar o quadro da falta de inspiração…
Olhei por alguns momentos todo este cenário, suspirei fundo, sentido o ar sem movimento da sala fechada. Levantei, eu precisava sair. Levei comigo um caderno, estojo e o aparelho de mp3. Era uma tarde ensolarada, busquei um espaço aberto, que eu conseguisse sentir um pouco do frio suave.
Vários alunos estavam espalhados pelas mesas em frente ao Instituto de Biologia. Havia mesas vazias, mas não me pareceu apropriado também. Achei uma árvore com uma nesga de sol embaixo. Escolhi a playlist, intitulada “pois é”, dessas com músicas que me fazem pensar e, não necessariamente, possuem lógica para quem olha fora contexto. E lá, no sol, busquei as palavras para preencher as linhas do caderno…
A vida tem trilha sonora?
Costumamos dizer que a vida tem trilha sonora. Assim, sons que residem em momentos e resgatam sentido, dão ritmo, criam identificações e compõe, também, nossa identidade. Na fugacidade dos segundos encadeados por acordes, regendo tempos e vivências, eu fiquei tentando organizar a postagem de hoje sobre o conceito de identidades e de identidades híbridas que eu havia trabalhado no turno da manhã, a partir de Nestor Canclini (2006).
(Quem vê ela escrevendo, sentada calmamente em silêncio, no sol, pensando sobre identidade e hibridismos na cultura para uma nova postagem, com seus fones de ouvido, não imagina que ela está embalando palavras em músicas como Livin’ la vida loca…)
Ok, tchê, mas e a identidade? Onde é que vai começar a conversa sobre identidade?
Não que até o momento eu não estivesse falando sobre isso, de várias maneiras… Mas vamos lá, né? Iván Izquierdo (2002) diz que somos aquilo que lembramos, mas somos também aquilo que esquecemos. Jorge Larrosa (2003) aborda a identidade sob a perspectiva de que somos aquilo que falam de nós e aquilo que nós falamos de nós mesmos. Por fim, Nestor Canclini (2006) afirma que a “identidade é uma construção que se narra” e, sendo assim, é teatro, política, representação e ação, são processos de negociação.
Hoje, na disciplina Estudos Culturais e Educação em Ciências, discutíamos a noção de hibridismo cultural e identidade. Ler algumas discussões dos Estudos Culturais, muitas vezes, é se questionar e perceber-se imerso neste emaranhado que nos constitui. Isto é, perceber, rastrear, o que nos interpela e participa de nossa constituição como sujeitos que são e estão no mundo. Seja filmes, músicas, propagandas…
Canclini aponta que na antropologia clássica a identidade foi pensada a partir de sociedades consideradas como culturas homogêneas. Tal modo de pensar as identidades hoje, entretanto, não conseguiriam abranger os modos de vida contemporâneos. Como assim? Com a palavra, Canclini (p.131):
Quando a circulação cada vez mais livre e frequente de pessoas, capitais e mensagens nos relaciona cotidianamente com muitas culturas, nossa identidade já não pode ser definida pela associação exclusiva a uma comunidade nacional.
Dessa forma, olhar o conceito de identidade, na contemporaneidade, é olhar a heterogeneidade mesmo dentro dos espaços regionais, em que coexistem diferentes códigos simbólicos em grupos sociais – e, até, em nós mesmos (as vezes de forma bem incoerente sim, por que não?).
Identidade, hibridismo e incoerências
É deste modo, sendo incoerente, que vejo filmes de superheroínas e me sinto absolutamente emocionada em ver seus poderes. Mesmo quando problematizo a indústria cultural cinematográfica e sua massificação de estereótipos (isso inclui escrever textos sobre o tema, BEM EMOCIONADA SIM).
Também é assim que escrevo este texto, falando sobre a constituição de si e nossas narrativas, embalada em sons que vão de Soledad Vilanil com suas milongas dramáticas, até chegar em Ricky Martin com Livin la vida loca, passando por Mulamba e suas letras fortes e feministas. Ou, ainda, apreciando documentários brasileiros, como Histórias, Comunidades e o Rio (MARAVILHOSO! ASSISTAM!), com pipoca e um chá. Ou quando vejo propagandas de marcas famosas sobre sonharmos em sermos loucas (e achando uma publicidade sensacional), sabendo que estas estão ligadas ao corte de patrocínio quando estas mesmas mulheres atletas de alta performance engravidam (e ficando absolutamente enraivecida, de novo e de novo com posturas machistas do mundo do mercado…).
Finalizando (tentativas…)
Em suma, a incoerência habita em nós! Pois não somos constituídos em uma formatação linear e única. Circulamos em diferentes espaços e grupos sociais, somos postos a prova, para pensarmos, argumentarmos e, eventualmente, revisitarmos e ressignificarmos vivências anteriores. Assim, agimos diferente em situações similares, em função de fatores diversos (quem está conosco, qual o horário do dia, o que aconteceu previamente naquele dia/semana, etc.). Michel Foucault, ao abordar o conceito sujeito* diz que este é “uma forma, e esta forma não é, sobretudo, sempre idêntica a ela mesma”.
Essa ideia mesmo sabe? Ser híbrida, imiscuída e inconforme? Ser brasileira e não gostar de futebol. Adorar samba, mas dançar flamenco. Ser gaúcha e sentir falta do churrasco aos domingos (e dos homens de alpargata na rua… admito). Mas gostar do pastel de feira e da pizza paulistana, do happy hour carioca, da rede e sotaque cearenses e sentir saudades do céu do pantanal? Adorar um block buster com muito clichê e efeito especial, mas se encantar com a riqueza dos diálogos do cinema argentino? Adorar não ter rinite alérgica pelo tempo que não está úmido constantemente (como em Porto Alegre). No entanto, ter o pesar de tomar o mate solita, sem companhia para a berga em dias de sol? (Vocês sabem o que é berga?)
Seja ao som de vários “pois é”, em trilhas disformes. Seja em dias de sol ou chuva. É isso, identidade: múltipla, forjada em existências, escrita no papel, formatada em plataformas on line.
(um fim confuso para um conceito difuso. A vida…).
*Os conceitos de sujeito e identidade não deveriam, a princípio, ser usados como sinônimos. No entanto, tomando este texto como se tratando dos processos de constituição de identidade(s), faz sentido usar esta definição da forma que nem sempre é idêntica a si, pois nos mostra como sujeitos transitórios, em formas, modos de ser, processos em negociação, construção múltipla.
Para saber mais
Canclini, Nestór (2002) Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
Izquierdo, Iván (2002) Memória. Porto Alegre: Artmed.
Larrosa, Jorge (2003) La experiencia de la lectura: estudios sobre literatura y formación. Barcelona: Fondo de Cultura Economica.
Foucault, Michel (2004) Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes
Para ouvir enquanto se lê
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