Ser humano: determinações biológicas e culturais (parte 1)

Para o post de hoje eu havia pensado em problematizar sobre a questão “Quem é o ser humano?”, seja a partir da biologia, ou da cultura, esta é uma das questões principais e mais difíceis de se responder de forma objetiva e simples – como supostamente a ciência se pretende.

Este post se organizou a partir da fala que fiz no Pint of Science, em Campinas. E eu debati o tema apontando um pouco das noções de biologia e de cultura. Bem como estas são utilizadas para que se pense o ser humano. Vamos lá?

Determinações biológicas: o ser humano como livro a ser decodificado

Na primeira metade do século XX, uma das grandes perguntas feitas por biólogos e historiadores naturais era o que nos definia e delimitava como vida. Neste momento, o DNA era uma molécula relativamente negligenciada como passível de responder estas questões… As proteínas eram as estruturas que se idealizava como estruturantes destas respostas. Pela sua diversidade e complexidade, deveriam ser a base para a profusão de espécies e o que explicaria a variedade…

No entanto, alguns cientistas, e vou trazer à baila dois nomes importantes para esta questão, buscavam respostas a partir de outra vertente. Para alguns cientistas, as proteínas seriam por demais confusas e variadas. Desta forma, a sua complexidade de formas e funções não poderia ser a explicação lógica de um ser vivo. Era preciso, portanto, pensar em uma unidade que agregasse toda a informação.

Erwin Chargraff é um dos cientistas que buscava resposta em outras estruturas. Ele pesquisava as bases nitrogenadas e apresentou, em 1949 sua pesquisa. Seus resultados que apontavam para uma relação variável de bases entre diferentes espécies, mas constante no interior de uma espécie. Além disso, seus resultados apontavam também uma quantidade similar das bases timina e adenina; bem como guanina e citosina. Isto sugeria correspondência entre as bases, além da regularidade intraespecífica. 

Este foi um dos passos para se pensar no DNA como uma molécula que não era simples, uma vez que ela é “específica” e, portanto, passível de carregar informações.

Um pouco antes disso, em 1943, o físico Schrödinger – aquele conhecido por matar ou não gatos dentro de caixas – vai ser o primeiro a inserir a ideia de que somos descritos a partir de um código. O livro “o que é vida?” lança na história recente da biologia a ideia de que precisamos de algo que explique o ser vivo a partir da simplicidade que unifique e torne racional, descrevendo-o. Aliás, é nesta obra que aparece, pela primeira vez, o termo  “código genético”.

Até hoje vemos o DNA, que teve a modelização posterior a esse livro, como um código, os termos usados vem a partir dessa ideia: transcrição, tradução, replicação. Assim, explicamos a vida por esse código e o afirmamos universal. Mais do que isso, ao termos um descritor específico, acabamos por delimitar nossa definição por esse código.

Esta é, por exemplo, a ideia base para o que foi o Projeto Genoma Humano – descobrir todas as letras (bases nitrogenadas) do genoma. Esta noção encerra o ser humano como algo que pode ser plenamente “descoberto” ou “decifrado” ao termos acesso a todo o código compreendido…

Determinações culturais: ser humano como constituição social

Por outro lado, temos um debate crescente acerca da constituição dos seres humanos como seres que são culturais. Portanto, não podendo ser definidos e delimitados apenas pelo código que a molécula de DNA e sua leitura nos possibilita. A cultura seria, nesse debate, constitutiva da nossa espécie e nos definiria como tal. Isto é, quem somos – como sujeito, grupo, população e espécie.

A cultura aqui entendida não não como o que foi de melhor produzido pelo ser humano ou os grandes cânones da arte. Cultura pode ser definida como práticas sociais, que têm significado no tempo e no espaço, na história. São práticas sistemáticas, miúdas, cotidianas e rotineiras. Estas, desde que nascemos configurariam, conformariam, quem somos na socialmente. E seria nessa interação que o ser humano poderia ser compreendido.

Há quem defenda que não há nada fora da cultura ou do significado. Um debate que, por vezes, leva ao que se costuma chamar de “relativismo”. Dentro desta noção, temos compreensões de “ser humano” como se a materialidade biológica pudesse ser ignorada, tornando tudo o que se faz, vive, cultura.

E aí? 

Não é recente o embate de ideias entre estes dois pensamentos. Tampouco a tentativa de definir o ser humano como um animal. Portanto, definido-nos por leis regidas com um código. Ou, ainda, um ser cultural. Definido, neste caso, apenas pelas interações sociais.

Alguns pensadores têm proposto a ideia do ser humano como biossocial. Nesta perspectiva, seria difícil a delimitação precisa de um ou outro, enfatizando a constituição conjunta e permanente. Tais ideias se constróem a partir da  impossibilidade de criar um ser humano “asséptico”. Ou seja, ou isento de cultura (a fim de se estudar a pureza do código genético), ou isento do código genético (a fim de se estudar a pureza da cultura).

Aqui vale a ressalva de que afirmar que algo é biológico geralmente nos aponta um caminho determinístico e final, que põe a termo a discussão de quem somos. Enquanto que falar em cultura nos leva a uma ideia de possibilidade de modificação e escolha.

Falar nesse patamar seria negar a possibilidade de mutação, base da compreensão da biologia evolutiva. Bem como apontar que a cultura não é constitutiva e estruturante do ser, já que seria só escolher mudar, que tudo se transformaria.

Mas somos o quê, afinal?

A cultura é estruturante da sociedade. E é com ela que nos construímos, como indivíduos de uma sociedade, como indivíduos que possuem identidade. A cultura é disseminada, propagada, ensinada para nós. E assim, nos configurando como sujeitos, desde que nascemos (ou mesmo antes disso…). Deste modo, nós sermos seres culturais não é “tudo vale”. Somos também definidos, delimitados em grande parte do que nos forma socialmente.

A ideia de mudança cultural vem acompanhada não de movimentos bruscos e individuais. Ao contrário disso, pra que tenha efeito, estamos tratando de questões históricas, dispersas, complexas e que se articulam em intrincadas redes… Os rompimentos não são individuais ou singulares, portanto.

Embora possa parecer confuso, o que trago aqui como proposta de diálogo é a ideia de que o ser humano, ou a compreensão de o que, quem e como somos, é uma definição. Uma definição que é biológica e cultural. É biológica, pois temos sim genes, moléculas, metabolismo, fisiologia que nos constitui. Mas não nos determina de forma simplista, direta e apartada das questões culturais. É, também, cultural, pois desde que nascemos estamos inseridos em uma sociedade. E esta tem práticas, costumes, regras, processos educativos, inserção em grupos sociais, aceitabilidade de identidades (ou não). Tudo isso nos constitui, forma nossa identidade. Mas não determina de forma simplista, direta e apartada das questões biológicas. Somos as duas coisas, inseparáveis. 

E as novas tecnologias, trazem questões novas sobre isso?

Na noite do dia 21 de Maio, no Pint of Science, debateu-se a questão de novas biotecnologias e questões éticas relacionadas ao uso destas em seres humanos. As técnicas biotecnológicas e moleculares nos inserem em uma agenda atual de redefinição destes conceitos. Assim como, a compreensão do ser humano naquilo que pensávamos matriz fixa do nosso ser.

Ao passo que temos, hoje, descritores biológicos editáveis, como as tecnologias CRISPR-Cas9*. Aquilo que tomávamos como matriz fixa, também (dentro de um imaginário não ficcional) nos insere dentro de uma construção literalmente biológica.

As questões éticas implicadas sempre vem a tona com estas tecnologias, acerca dos limites e possibilidades de manipulação. Uma pergunta que eu sempre me faço ao debater este tema, não é se temos que usar estas tecnologias – tendo em vista suas promessas de curas de doenças absolutamente limitantes da vida humana, em vários sentidos. Mas se temos ciente para nós que este uso se faz a partir da premissa de que estamos com uma ferramenta que desloca a ideia de nossa constituição biológica. Isto é, que nos impõe uma agenda de reconstrução biológica humana e de que isto não é (ainda) algo que possa ser pensado como disponível a todos os seres humanos, mas a uma parcela deles.

Assim, finalizo o post com os questionamentos:

De que modo podemos debater isso de forma a envolver a sociedade no debate? E, mais do que isso, se for disponível a uma pequena parcela que pode pagar tal tecnologia: isso pode ser pensado socialmente como justo e igualitário?

Para saber mais

ACOT, P (2003) A dupla revolução da dupla hélice. Ciência e Ambiente, Santa
Maria, vol.23, p.7-16.

CAMARGO,AA (2003) Genômica no Brasil: uma nova era na Biologia. Ciência e
Ambiente, Santa Maria, vol.23, p. 33-40.

COLLINS, François (2010) A linguagem da vida: O DNA e a revolução na sua
saúde. São Paulo: Editora Gente.

GOULD, S.J. (1999). A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes.

JABLONKA, Eva e LAMB, Marion (2010) Evolução em quatro dimensões: DNA,
comportamento e a história da vida. São Paulo: Companhia das Letras.

LEWONTIN, Richard (2002) O Sonho do Genoma Humano. Revista Adusp.

KECK, Frédéric e RABINOW, Paul (2008) Invenção e representação do corpo
genético. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLO, George
História do corpo: as mutações do Olhar, O século XX. Petrópolis: Vozes,
p.83-105.

SANTOS, Luis Henrique S (1999) Pedagogias do corpo. In: SILVA, Luís H. (org).
Sec XXI: Qual conhecimento? Qual currículo? Petrópolis: Vozes, p.194-212.

Outros posts sobre o tema, neste blog

Quem é ser humano? Racismo e violência cotidiana

Somos Pós-modernos

Sobre Ana Arnt 55 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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