Narrativas históricas na contemporaneidade

No último texto da série “Pós-modernidade”, busquei discutir alguns pontos sobre metanarrativas, ou narrativas mestras. Isto é, discursos totalizantes que assumem caráter de verdade. A título de exemplificação, podemos citar a ideia que o Brasil foi “descoberto” por Pedro Álvares Cabral; ou que foi a princesa Isabel, apenas por meio da Lei Áurea, que “libertou os escravos” – sem considerar todo o contexto político, social, econômico… – que possibilitaram tais acontecimentos.

Na escrita de hoje, vou pontuar alguns efeitos que tenho considerado produtivos na forma de narrar, ou se quiserem, construir um empreendimento histórico por uma perspectiva pós-moderna/contemporânea.

Antes de apontar os efeitos, o que significa narrar uma história contemporânea?

O modo como contamos a história passou por significativas mudanças com o decorrer das últimas décadas. O objeto histórico tem sido notado, com frequência, mais como um constructo do que como realidade.

A tarefa da história deixou, pelo menos para muitos que se propõem a escrevê-la, de tentar desenterrar o passado, mas encontrar nele pontos/elementos que possibilitem abrir perspectivas para o presente e para o futuro.

Por esta mesma via, desconfia-se dos trabalhos históricos com pretensões totalizantes. Assim, nesta perspectiva contemporânea, não se objetiva elaborar “A história”, com o artigo definido “a” indicando uma única história, mas, sim, contribuir na elaboração de histórias, no plural, concernentes à área que se quer empreender.

Neste cenário, a pesquisa histórica pode ser vista ainda como lacunar, tendo em vista que damos importância (enquanto pesquisadores) a determinados tipos de documentos e não outros.  O que nos leva a deixar sempre brechas, fontes a serem examinadas e interpretadas numa pesquisa.

Ou seja, por mais que a quantidade de fontes utilizadas em uma pesquisa seja alta, sempre haverá uma seleção de materiais, de dados não incorporados na narrativa, de documentos não encontrados. Em suma, lacunas/espaços são deixados nesse processo.

Que fontes são essas?

E não é só. Essas fontes são “mudas”, é por intermédio da voz dos pesquisadores – que formulam o que elas “dizem” – que elas ganham “corpo” e “significado histórico”. As fontes não falarão por si, em última análise, não é o mesmo que dizer que não haverá como verificar as fontes utilizadas para se considerar (ou não) as interpretações elaboradas pelo pesquisador.

Também não se trata de um “vale tudo” ou “qualquer coisa” nessa interpretação. A pesquisa se apoia em justificativas e construção de dados. Por isso, estabelecer critérios, construir e organizar os dados, se empenhar para expor com clareza as ideias e o fio construído para desenvolver o trabalho são de suma importância para o trabalho de pesquisa científico. 

A partir deste ângulo de percepção da história, de caráter não totalizante, lacunar e aberto a multiplicidade de narrativas, considero que temos muitas vantagens produtivas.

Permitir-nos ler e reler (escrever e reescrever) o passado de acordo com as configurações que estabelecemos ao longo da pesquisa é uma delas. E ressignificar os objetos de análise, quando aceitamos indistintas fontes, culturas, documentos, como elemento histórico – ou como material/sujeito a ser considerado historicamente.

Dada a atual situação do Brasil, com o excesso de fake news e informações descabidas (como, por exemplo, a ideia de que a Terra é plana), preciso pontuar que ler e reler as fontes não pode ser interpretado como distorção e manipulação dos dados. Explico isso melhor. Os materiais utilizados na pesquisa possuem informações, apontamentos que não podemos desconsiderar e enveredar para o que “achamos”. Eles, os dados, sinalizam o teor do conteúdo.

É preciso considerar, também, pequenos movimentos, conflitos, disputas e relações de força, os quais estão presentes em uma história que encaro como mais plural. O passado, desta forma, passa a ser pensado pela descontinuidade.

A história vista pela descontinuidade, tende a ser mais sensível a diversidade, lutas, conflitos, tensões – que são comumente sufocadas pelo projeto de história contínua.

Pela continuidade, o projeto histórico se pretende universal. Visa construir um trabalho evolutivo harmônico de um acontecimento encadeado previamente noutro, por exemplo. E ao mesmo tempo, não considera as relações de força que subvertem essa lógica ordenada da coisa.

Encaminhando para o final, penso que por um viés contemporâneo temos a possibilidade de construir uma narrativa histórica que pode romper com imposições pré-estabelecidas. Isso pode ter também ressonâncias na maneira como vamos encarar a pesquisa, nos modos de construir os dados, organizá-los e discuti-los, bem como nos próprios meios que tomaremos como fonte para acessá-los.

Assim, para fechar, é importante lembrarmos que se buscamos uma história com diferentes rostos que saibamos conviver com a multiplicidade de acontecimentos, fontes, narrativas.

Utilizei como referência e indico…

[1] Artigo sobre a descontinuidade histórica e a crítica da origem: GONÇALVES, Jadson Fernando Garcia. Foucault, a descontinuidade histórica e a crítica da origem. Revista Aulas, n°. 3. 2007. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/aulas/article/download/1926/1387

[2] FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 55-86.

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