Corpos com úteros: ainda sobre a vida e o aborto
Em 2018 foi publicado o caso de Janaína, uma mulher que sofreu uma cirurgia de laqueadura por uma ação do Ministério Público. Foi uma cirurgia compulsória, contra a vontade de Janaína.
Qual a razão de retomar este tema, hoje? Semana passada o Brasil viu o caso de uma criança de 10 anos, com uma gravidez fruto de estupro, virar caso de embates sobre o aborto.
Este primeiro caso me veio à lembrança, em função das ingerências que se fazem nos corpos das mulheres. Em especial, ações do Estado dizendo como temos que viver – e eventualmente morrer – por legislações pautadas em moral religiosa, com discursos científicos (biológicos) sendo evocados, interferindo cirurgicamente ou negando-se a isso, conforme se compreende que o corpo deve ser vivenciado.
Sobre ser obrigada a parir ou obrigada a nunca mais parir.
Tudo ao que diz respeito à gestação é coberto por discursos externos que não se restringem a meras opiniões individuais. Isto é, são construções que se vinculam a discursos sociais de uma sociedade centrada na fala de homens – e neste caso, de homens sobre os corpos que têm útero – desde discursos religiosos, filosóficos, os científicos, até os jurídicos. Em suma, na grande maioria, historicamente, homens narrando a vivência de como as gestações devem acontecer e o que elas significam.
Há pesquisas que apontam que quando o tema é gravidez, a mãe costumeiramente é narrada como objeto de necessidades do outro (feto/embrião). Em outros, o corpo materno é fruto de riscos para esta vida que vem sendo gestada – por abuso de quaisquer substâncias, exercícios, sedentarismo – o feto é objeto de debate público, assim como o corpo que o mantém. No primeiro caso que trouxe como exemplo neste post, do corpo que pode manter uma gestação mas não deveria (por isso a ordem pública de executar laqueadura).
Recentemente, reacendeu-se no país o debate acerca do aborto nos casos já legalizados, em função do estatuto do nascituro. Os projetos de lei e apensados resultantes deste debate, inseriam o feto/embrião como sujeito de direitos. Assim, neste caso, mesmo os casos previstos em lei teriam prioridade em sua manutenção – em detrimento do posicionamento da mãe.
Quais casos são permitidos por lei, no Brasil?
Os artigos 124, 125, 126, 127 e 128 do Código Penal abordam o aborto. Eles constam no Capítulo Crimes contra a vida, centremos nossa atenção no último destes:
Art.128 Não se pune o aborto praticado por médico:
I. Se não há outro meio para salvar a vida da gestante
II. Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
[PAUSA PARA A ANALISTA DE DISCURSO]
Particularmente, este artigo me causa inúmeros questionamentos. Ele está como ressalva exatamente por não ter claramente o indicativo de que não se configura em crime, mas é um crime que não se pune. Pode parecer detalhe, mas aqui consta uma questão moral e filosófica incrível: é crime, pois põe a termo algo que, sim, considera-se vida, mas por uma escolha em relação à outra vida (salvando-se a vida da mãe, no caso do Inciso I), ou em relação à possibilidade de degeneração da prole (salva-se a pátria de ter um filho proveniente da violência que pode ser herdada e salva-se a mãe de seu instintivo e natural amor materno, no caso do Inciso II).
Em ambos os casos, o foco é que gerar este filho tem-se um prejuízo maior e a morte é justificável… Portanto, o crime à vida se justifica, não se pune. Eu voltarei a este ponto no próximo post
[FIM DA PAUSA PARA A ANALISTA DE DISCURSO]
O que é vida?
A questão do nascituro insere uma questão filosófica sobre o que é vida e quando ela se inicia e esta é a pergunta de ouro da biologia.
Bichat, no século XVIII diria que vida é o que resiste à morte. Se formos falar em termos evolutivos a resposta é: a vida se iniciou em algum momento há bilhões de anos atrás e nunca mais parou de existir até hoje. Schrödinger em 1944 afirma que a vida tem um código que precisa ser compreendido – feito que seria realizado pela física e química. Margulis e Sagan partem da definição de Schrödinger para apontar uma infinidade de definições, mas devolvendo à biologia, à genética e às condições de morrer, a definição de vida.
Não adianta insistir e tentar fazer com que eu resposta: “tá, mas e a vida humana?”. É mais ou menos a mesma coisa, teríamos que estipular um momento específico de quando nossa espécie passou a ser a nossa espécie e não outra. Isto é: separou-se de seu ancestral comum…
Todavia, eu sei que estamos falando de outras questões… Mas a ideia é a mesma, estamos falando de uma definição – e esta definição ela é estipulada por critérios muito difíceis de serem estabelecidos e são, em muitos sentidos, completamente arbitrários!
– Mas Ana, a gente não tá falando de ciência?
Afinal, a ciência não é objetiva, direta, clara?
Sim, especialmente após estabelecer critérios e aceitar premissas! Mas estamos falando, exatamente, destas premissas (podemos montar, aqui no blogs do PemCie, uma postagem só sobre isso, se for preciso…).
A questão é que os critérios acerca do que é ser vivo, quando começa a vida e do que é ser humano são arbitrários, embora fundamentais para o debate sobre o aborto.
A biologia – como campo de conhecimentos – vem debatendo o que é vida e quando ela começa desde, basicamente, foi idealizada. Esta é a pergunta primordial da biologia desde o século XIX, quando ainda acreditávamos em abiogênese. Basicamente, acreditávamos ainda que seres não vivos podiam originar seres vivos (a boa e velha ideia de que moscas nascem de roupa suja…).
E o que o nascituro tem a ver com a definição de vida, afinal…
Voltando à questão do nascituro, defender seu direito como sujeito humano depende um pouco disso. Mas isto depende, também, de um conjunto de prioridades acerca do que é vivo e qual ser vivo é mais importante em situações específicas.
Todavia, estamos aqui tentando dizer que não temos precisão conceitual acerca de quando a vida embrionária passa a ser considerado um indivíduo separado da mãe biologicamente – e este conceito biológico embasa muitas pessoas para justificar juridicamente o status como cidadão/sujeito/indivíduo.
Entretanto, a pergunta que eu considero mais relevante e vou usar para delimitar (e finalizar este post por hoje) é: existe essa dúvida acerca da pessoa que está gestando? Ela é viva? Há dúvidas sobre isso?
Esta definição comparativa é fundamental. Uma vez que este debate fala sobre termos o direito de levar adiante ou não um acontecimento que se passa dentro do nosso corpo – um corpo que tem direitos assegurados pela Constituição Federal.
Uma mulher que é obrigada a fazer laqueadura e uma criança que é obrigada a gestar uma gravidez fruto de estupro tem seu status de cidadania posto em xeque por não dispor de autonomia de escolha acerca de partes de seu corpo e sua vida. No caso da criança, a isto relaciona-se seus responsáveis legais (que estavam junto solicitando o aborto).
Todos estes casos, vinculam-se a uma moralidade (muitas vezes religiosas, mas científicas também) que dizem respeito, basicamente, a como olhamos os sujeitos e definimos seu status socialmente.
No entanto, estes sujeitos (e aqui estamos falando de pessoas com útero) ganham ou perdem seus direitos, em função de como socialmente lidamos com suas possibilidades de gestar – e gestar alguém que, por algum motivo, temos interesse que nasça.
Por fim
Hoje, mais do que finalizar uma ideia sobre aborto, quis levantar uma série de questões sobre indefinições de vida que fundamentam argumentos sobre o aborto e o útero de pessoas. Mas calma, estas questões serão parte de outras postagens, logo mais, que envolvem ideais de sujeito, posse sobre o corpo, eugenia e defesa da nação (sim, o aborto diz respeito a tudo isso, veja só!).
Estes temas já compuseram uma série de postagens aqui no blogs, que foram interrompidas. Mafalda, aquela menina que é personagem do Quino, costuma dizer que o urgente nunca deixa tempo para o importante. Talvez, seja o caso desta série sobre corpos de mulheres e posse de si). Ou seja, é uma retomada, repaginada por uma dolorosa chaga que permanece presente no nosso cotidiano.
Em suma, o útero é objeto público e palco para todos sambarem; todos, menos a quem ele pertence.
Para Saber Mais
Lupton, D (1999) Risk and the ontology of pregnant embodiment; In: ___ (org) Risk and sociocultural theory: new directions and perspectives; Cambridge, UK: Cambridge University Press
Margulis, Lynn & Sagan, Dorion (2002) O que é vida? Rio de Janeiro: Zahar.
Raphael-Leff, Joan (2018) Gravidez: a história interior; São Paulo: Blucher; Karnac.
Schrödinger, E (1997) O que é vida? O aspecto físico da célula viva seguido de Mente e matéria Fragmentos autobiográficos; São Paulo: Fundação Editora da UNESP, (UNESP/Cambridge)
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