UM GIRO ECOTERRITORIAL PELAS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA: UM RELATO
Por Leonardo de Souza da Silva, Luna Alves Pereira e Talita Gantus de Oliveira
A oficina “Um giro ecoterritorial pelas veias abertas da América Latina” foi o ponto central que movimentou parte dos integrantes do CRIAB ao IV Congresso de Ecología Política y Pensamiento Crítico Latino-americano, sediado em Quito – Equador. A oficina visava a construção de debates e questionamentos acerca do ideal hegemônico sobre o neoextrativismo e a percepção de desenvolvimento socioeconômico a ele associada.

Tendo em vista o desastre-crime decorrente do rompimento das barragens de Brumadinho e Mariana – MG, tema com o qual o grupo vem trabalhando desde sua origem, em 2019, e sabendo que a problemática neo-extrativista atravessa os territórios latino-americanos desde sua gênese colonial, estabeleceu-se a construção visual da paisagem do rompimento das barragens, como um elemento disparador das discussões construídas na oficina. Associados a isso, foram feitos alguns questionamentos que serviram como provocações para a construção dos diálogos.
No primeiro momento, os participantes tentaram identificar nas fotos entregues como parte da dinâmica a que localidade se associava aquelas paisagens que retratam a destruição, e também qual o tipo de atividade extrativista havia sido praticada ali. Em comum acordo, todos associaram as paisagens retratadas nas fotografias à mineração a “céu aberto”. Entretanto, nem todos notaram que todas as imagens tratavam-se de um território brasileiro. E, os que o fizeram, acreditaram que se tratava de territórios amazônicos, por desconhecerem que grande parte da mineração no Brasil acontece no bioma Mata Atlântica.
Como foi levantado nos diálogos, a descaracterização da paisagem acontece porque a atividade de mineração não somente extrai os recursos naturais dessas localidades — removendo montanhas, poluindo rios, desmatando florestas e expulsando formas de vida humanas e não-humanas —, como também extrai parte da identidade daquele território, dissociando nossa capacidade de reconhecimento do lugar.
Na sequência, formaram-se grupos para o desenvolvimento de diálogos e a construção de pensamentos coletivos acerca de dois questionamentos principais. No primeiro, buscava-se propor modos de se fazer um furo no imaginário social hegemônico quando o extrativismo mineral é visto como sinônimo de desenvolvimento ou progresso. No segundo, propunha-se pensar em práticas coletivas para desestabilizar aquilo que já está cristalizado, a fim de buscar a construção de ideais como os bens comuns, a justiça ambiental, o bem viver e os direitos da Natureza.
Durante a dinâmica, enquanto se observavam as fotos do desastre-crime da Samarco/Vale/BHP nos territórios de Bento Rodrigues, MG, a fala “Esto no es minería a cielo abierto, esto es un infierno abierto”, pronunciada pelo indígena Domingos, nos permitiu uma nova reflexão sobre o discurso do progresso e os significantes a ele atrelados a depender de quem o enuncia. Na sequência, as respostas apresentadas aos questionamentos apontavam a educação como uma ferramenta estratégica para a desconstrução dos ideais capitalistas-coloniais que bradam o progresso, o desenvolvimentismo e o lucro acima da vida. Paradoxalmente, quando olhamos para o cenário do rompimento de barragem retratado nas fotografias, observa-se a Escola Municipal Bento Rodrigues — lugar que representa um desses espaços educacionais que seriam lanternas que apontam para a superação desse modo de produção extrativista — destruída pelo mar de lama resultado do rompimento.
Ao analisar as propostas levantadas pelos grupos, percebeu-se um ponto central do qual todos partiam e que se situava para além do pensamento acadêmico, opondo-se radicalmente ao pensamento eurocêntrico do qual boa parte da academia se fundamenta. Assim, notou-se que as propostas buscavam o resgate de conhecimentos ancestrais no intuito de possibilitar a autonomia dos territórios atingidos. Dentre elas, uma que se destacou foi a do turismo comunitário, por meio do qual seria possível a criação de um intercâmbio sociocultural e educacional aliado à preservação do planeta, servindo como uma forma de desconstrução do imaginário social de que a mineração representa o progresso de um país e seus povos.
Desenvolvendo o ecoturismo e/ou o geoturismo — o turismo de preservação da natureza —, por meio das estratégias de base comunitária, como alternativa à atividade minerária, a atividade turística pode ser vista não somente como dinamizadora da economia local, mas como elemento estruturante de uma ordem cultural e ambientalmente responsável, abrindo caminho para as reflexões sobre a sustentabilidade socioecológica e sobre as simbologias culturais. Assim, os preceitos de conservação e preservação ambiental passam também pela gestão dos projetos que contemplam o desenvolvimento das comunidades. O turismo de base comunitária aparece, portanto, como atividade complementar de geração de renda e de educação socioambiental e cultural, ao mesmo tempo. Com isso, o turismo se relaciona com o lugar e com as práticas culturais desenvolvidas naquele território. Essa relação amplia sua escala de influência na medida em que, para se realizar, envolve elementos de ordens política, social, cultural, econômica e ambiental no espaço em que se instala.
Para as/os estudantes que puderam participar do congresso, dentro dos diversos aprendizados obtidos, o que mais se destaca foi como a influência da cosmovisão indígena pairando em boa parte do território latino age como um dos maiores eixos de resistência ao extrativismo e à lógica capitalista, e como essa pode ser uma das melhores soluções frente à problemática atual.
Nesta cosmovisão, não se distingue homem e natureza, o que se contrapõe à lógica dominante e cada vez mais homogênea no mundo, a qual não apenas diminui a autonomia humana ao longo da construção do que se concebe como progresso, como também distancia o ser humano cada vez mais da natureza, do solo e até mesmo de seu próprio alimento e de suas raízes ancestrais. Desse modo, nos tornamos reféns do sistema capitalista, em que o acesso a todo e qualquer produto seria detido/controlado por indústrias ou corporações, até mesmo quando esse produto é aquele que nos mantém vivos.
A partir dessas discussões, percebe-se, também, que a lógica do capitalismo verde é apenas paliativa, não solucionando o problema estrutural que envolve a produção e extração mineral para a acumulação de capital. E o que concebemos como ecologia é insuficiente para promovermos verdadeiros veículos de mudanças, pois, mesmo que retomem a seus modos de vidas de culturas mais tradicionais, tratam-se, na verdade, de produtos deturpados pela apropriação cultural. Desse modo, parte da solução vem sob a lógica de um resgate ancestral centrado e pautado pela autonomia indígena, em que o extrativismo mineral e diversas outras vertentes capitalistas encontrariam dificuldades para se estabelecer, pois atingiria ou violaria diretamente as pessoas, e não um outro, como a natureza ou apenas um território.
As reflexões finais sobre a oficina e o congresso de Ecologia Política, em síntese, apontam que não existe apenas uma resposta para essa inversão da ideologia colonial dominante, o que ocorre é que cada localidade terá particularmente uma série de implementações necessárias para a desconstrução dessa hegemonia. Nesse sentido, entende-se que as iniciativas que envolvem pedagogias ambientais precisam abarcar visões comunitárias e populares de sustentabilidade, e até mesmo cosmovisões locais de povos tradicionais, pois é apenas a partir dessa centralidade que avanços reais poderiam ser alcançados.
Um ponto de partida para essa pedagogia ecológica ou intercâmbio cultural foi o vestibular indígena que se iniciou em 2018 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entretanto, somente a inserção de outros povos em meio à lógica acadêmica é insuficiente para dar voz a eles e permitirem que pautem e renovem conceitos cristalizados em nossa sociedade. Assim, não somente o vestibular indígena seria um caminho, mas a extensão cultural de cada povo também deveria ser alimentada, por exemplo, utilizar do Centro de Línguas (CEL) para promover a riqueza linguística de cada etnia presente no campus. Aliados a estas propostas e dinâmicas, também deveriam ser promovidas rodas de ensino de saberes locais com professores, alunos e até mesmo comunidade em geral no entorno da Unicamp.
Para a área das Ciências da Terra, cita-se o exemplo da Colômbia, uma das regiões mais ricas em minerais metálicos da América Latina, onde são extraídos 50 toneladas de ouro por ano, segundo o artigo intitulado “Green Gold-Dirty Gold”, publicado pelos autores William E. Brooks, Julio Andrés Sierra-Giraldo e Franciso Mena Palacios. Para essa extração, cerca de 100 toneladas de mercúrio vão parar nos rios e no solo, contaminando trabalhadores garimpeiros, a fauna e a flora regionais, meios pelos quais também atingem a comunidade ao redor por meio da bioacumulação de contaminantes. Para solucionar essa problemática da contaminação, comunidades de povos afrodescendentes colombianos fazem uso de epistemologias e tecnologias sociais ancestrais para realizarem a extração do ouro de maneira ambientalmente equilibrada. Esta extração é feita utilizando-se uma planta (balsa ou Croma pyramidale) que substitui o uso de mercúrio em regiões de garimpo, servindo como o mesmo princípio de amalgamação do ouro. Ainda no contexto de saberes locais e sob a ótica extrativista de territórios latino-americanos, na Colômbia, como citado acima, entende-se que essa construção de saberes multiculturais ou uma melhor conciliação de saberes locais com saberes científicos trata-se de um solo extremamente fecundo para o desenvolvimento de soluções e alternativas necessárias para solucionar problemas e possibilitar desconstruções necessárias que precisam ser feitas atualmente.
Para a área da pedagogia, esse intercâmbio cultural possibilitaria a construção de novos paralelos para metodologias de ensino, em que a relação física e biótica poderia ser melhor construída, até mesmo permeando campos espirituais. Percebe-se que nos primeiros anos de escola a criança é muito mais aberta ao novo e disposta a aprender gestos de cuidado com o outro — seja esse outro humano ou não-humano. Todavia, ao longo do tempo, parte dessa relação se perde. Nesse sentido, um dos questionamentos que se fica é como fortalecer esse vínculo e mantê-lo ao longo de todo o ensino.
CARTOGRAFIAS PARA A RESISTÊNCIA: UMA APOSTA A PARTIR DA EDUCAÇÃO POPULAR
Por Talita Gantus de Oliveira e Luna Alves Pereira
Pesquisadora/es do GT Educação e Sociedade participaram, entre os dias 19 e 22 de outubro de 2022, do IV Congresso de Ecologia Política realizado no Equador. Lá, puderam acompanhar a roda de conversa Cartografías para la resistencia: una apuesta desde la educación popular – Cartografias para a resistência: uma aposta desde a educação popular (em tradução livre).
Como abordado pelos expositores durante a atividade, a cartografia social trata-se de um processo participativo que envolve a leitura do território e a reflexão sobre como o habitamos. É importante que compreendamos que a cartografia social carrega em si uma ideia mais ampla do que a cartografia pura e simples – aquela com seus traçados, pontos cardeais e escalas, utilizada desde os primórdios das geociências com o intuito de domínio, apropriação e defesa de territórios.
Durante o empreendimento colonial e o desenvolvimento de sua episteme, a cartografia foi usada pela ciência e pelo que se chama Estado-Nação como ferramenta para estabelecer o controle social do território e do povo que ali habitava. Isto, com vistas a impor o imperialismo europeu sobre os outros continentes, espoliando suas riquezas naturais, bens comuns, epistemologias e modos de produção do espaço.
Nesse processo de elaboração cartográfica dos territórios usurpados e apropriados, a delimitação do território e de suas fronteiras se dá, dentre outras coisas, a partir da nomeação de elementos da paisagem (como rios e montanhas) por meio de uma perspectiva antropocêntrica. Afinal, a colonialidade é antropocentrada.
Alfredo Berno de Almeida, em seu artigo “Mapas e museus: uma nova cartografia social”, afirma que há um monopólio de classificações territoriais produzidas historicamente pela sociedade colonial, mediante recenseamentos, cadastros, planejamento territorial, inventários, códigos e mapas. É possível notar esse domínio não apenas pelo Estado, mas pelo capital por meio de empresas privadas.
Observa-se a hegemonia desse controle – em uma sociedade em que o poder político está atrelado ao poder econômico – nos territórios atingidos pelos desastres-crimes da Samarco, BHP e Vale, ambos em Minas Gerais, em que o reassentamento da população que passa pelo processo de reparação se dá a partir de uma cartografia para a realocação que é tecnocrática, verticalizada e arquitetada por técnicos contratados pela empresa responsável pela tragédia.
Nesse sentido, a cartografia social surge como um caminho e uma alternativa para a formação de organizações sociais que trabalham em defesa de seus territórios frente à ameaça de processos extrativistas. Durante a roda de conversa, os/as expositores ressaltaram a importância de se conhecer o território pelo olhar da própria comunidade, tendo em vista que é uma prática comum entre as concessões mineiras o desenvolvimento de outros mapas, por elas produzidos, que são apresentados às comunidades – muitas vezes ocultando informações importantes, como a disponibilidade de recursos hídricos, por exemplo. O conhecimento e a formação sobre o território é, portanto, parte do processo de luta contra o avanço extrativista.


Posto isso, na cartografia social, é fundamental o destaque nos mapas das fontes hídricas, nascentes e cursos fluviais que serão afetados pelas concessões mineiras; bem como as áreas de preservação (e/ou que devem ser preservadas) da fauna, flora e biodiversidade – humana e não-humana. Importante, também, que a cartografia caminhe paralelamente a um levantamento antropológico das comunidades que vivem nos territórios atingidos ou ameaçados, e de sua diversidade cultural. Esses levantamentos enriquecem os produtos cartográficos no que diz respeito à conscientização das afetações não apenas materiais, mas também simbólicas. Trazer os sentidos sobre o território para a cartografia (o som do vento, a pureza do ar – ou, o oposto, a toxicidade do ar em territórios minerados) – é uma forma de agregar saberes e sentidos ao mapa, deslocando-o do seu lugar colonial que transforma a cartografia em uma epistemologia mercadológica: conhecer e cartografar para dominar.
Por fim, é possível pensar o mapa a partir da perspectiva de corpo-território. Segundo Haesbaert, em seu artigo “Do corpo-território ao território-corpo (da terra): contribuições decoloniais”, afirma que “uma das especificidades da leitura que podemos denominar latino-americana sobre o território está ligada ao fato de que ela parte da esfera do vivido, das práticas ou, como enfatizava Milton Santos, do “uso” do território – mas um uso que se estende bem além do simples valor de uso, compreendendo também um expressivo valor simbólico.”
O corpo é o primeiro habitante do território. Sendo assim, é parte do processo de descolonização epistemológica da cartografia pensar o nosso próprio corpo como um mapa. Se nosso corpo está bem e saudável – física, espiritual e psiquicamente – é um reflexo de que o território que habitamos também esteja bem. Pensar-agir de maneira integrada, não apenas disciplinarmente, no que diz respeito à produção do saber, mas de modo que corpo e mente estejam indissociados, é um dos desafios de superação da armadilha colonial antropocêntrica. Compreender que o rio contaminado nos atravessa, porque o rio corre em nosso corpo, porque consumimos o que a Terra nos dá, é uma das tarefas da cartografia social. Afinal, tudo está ecologicamente conectado, somos atravessados por essas impurezas.
Para concluir, a oficina trouxe importantes reflexões para o nosso GT Educação & Sociedade, que se propõe a pensar uma pedagogia socioambiental a ser trabalhada em territórios atingidos por rompimentos ou pela presença de barragens – empreendimento que se insere no bojo da cadeia de exploração mineral. Desse modo, a cartografia social se situa como uma ferramenta que faz parte do processo pedagógico de emancipação e autonomia popular frente ao avanço do capital sobre corpos, mentes e territórios.
Embora a cartografia social seja uma técnica de (re)existência nos territórios ameaçados por projetos extrativistas, a verificação e representação dos cenários empiricamente observáveis remete, sobretudo, “a relações de pesquisa e de confiança mútua entre os investigadores e os agentes sociais estudados”, como nos lembra Alfredo Berno de Almeida, em seu artigo citado anteriormente. Posto isso, há um novo desafio que se coloca ao nosso Grupo: pensar e atuar sobre um território – enquanto um objeto de pesquisa – a partir de uma posição que nos situa geograficamente distantes, o que torna complexa a criação de vínculos comunitários. Contudo, afinal, esse é um dos grandes desafios colocados às/aos pesquisadores que se propõem a um fazer científico e a uma práxis engajadas com a transformação social para um outro mundo possível.
Comunicação Comunitária: uma oficina sobre alternativas à grande mídia
Por Leonardo de Souza da Silva e Talita Gantus de Oliveira
Em continuidade aos textos de divulgação da participação do GT Educação e Sociedade, do CRIAB, no IV Congresso de Ecologia Política, realizado no Equador, passaremos a um relato sobre a oficina de Comunicação Comunitária (em tradução livre) — ou Comunicación Comunitaria. Os proponentes da atividade integram uma rede de TV do movimento indígena e campesino de Cotopaxi, território equatoriano, que se utiliza das ferramentas atuais de comunicação para o fortalecimento, a continuidade e a transmissão de saberes locais e ancestrais. Além de ser um canal de denúncias de violação de direitos humanos e ambientais.

A comunicação comunitária é um meio de comunicação da comunidade local. Feita por ela e para ela, atua como um instrumento que busca visibilizar aquilo ao que a mídia hegemônica e suas formas de comunicação normalmente se abstêm ou ocultam. Essa comunicação anti-sistêmica parte de uma mobilização coletiva da comunidade, reivindicando melhorias para seu próprio grupo, provocando o debate de temas importantes e tratando de interesses comuns de quem está inserido no mesmo contexto social e cultural.
Nessa oficina, tivemos a oportunidade de conhecer um pouco do trabalho dos Lanceros Digitales, uma equipe de comunicação, formada por mulheres e homens, comunicadores e comunicadoras comunitários/as das nacionalidades, organizações e federações de base da organização regional, orgânicos à estrutura do Movimento Indígena Equatoriano. O grupo transmite informações dos diversos povos originários e das organizações e movimentos sociais locais que não são difundidas em meios tradicionais, buscando conhecer e veicular a realidade das comunidades e dos conflitos socioambientais que as ameaçam e vencer o cerco midiático.
Além disso, trabalham a importância da comunicação comunitária como ferramenta política para o fortalecimento da organização e luta territorial. Tradições, soberania alimentar, direitos, mobilizações populares estão entre os temas abordados no canal de comunicação indígena e campesino. Nesse sentido, na oficina nos foi apresentado como se deu o Movimento Indígena y Campesino del Cotopaxi (MICC) e suas lutas de reivindicação por seus direitos, sendo o primeiro canal comunitário gerido por indígenas no Equador e na América Latina.
O MICC tem forjado suas lutas por meio da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) desde 1990, cujas pautas envolvem reivindicações em torno da posse da terra, a existência de um modelo educacional intercultural bilíngue e a efetivação de um Estado Plurinacional, que, ao menos juridicamente, foi reconhecido na Constituição Equatoriana de 1998. Entretanto, na realidade, esses direitos nem sempre são assegurados ou pautados como deveriam. Assim, em 2004, nasce a ideia do 1º canal indígena do Equador: a TV MICC-47. Este canal funciona como uma ferramenta de comunicação e organização alternativa à comunicação de massas, sendo de suma importância para as lutas e para a organização de manifestações e participações sócio-políticas. Após anos de embate, a TV MICC-47 se concretiza em 2019, dando início às suas transmissões com cobertura nas províncias de Cotopaxi, Tungurahua e parte de Pichincha e Chimborazo. Concomitante, também ocorre a divulgação e transmissão da TV em seus veículos de mídia sociais — como Facebook e YouTube —, que possibilitam não somente que suas matérias tenham mais alcance, mas que cumpram seu papel de disputa de narrativas também através da Internet.
A comunicação comunitária é uma ferramenta que deve ser, cada vez mais, apropriada pelo povo. No Brasil, em Mariana, no estado de Minas Gerais, após o desastre-crime da Samarco/Vale/BHP na barragem do Fundão, moradores se organizaram para construir e divulgar o jornal A Sirene, veiculando a realidade dos conflitos socioambientais pós-desastre, na região de Mariana, que era ocultada pela grande mídia — financiada, em grande medida, por atores do capital mineral.
Furar o cerco midiático e conseguir fazer coro às vozes que são, tentativamente, silenciadas pelo discurso hegemônico é parte do trabalho do nosso GT. Fazer circular a essência dos conflitos socioambientais ligados ao rompimento e à presença de barragens, não apenas em sua aparência, é de suma importância para que consigamos ventilar outros ideais de progresso, de civilização, de modernidade e de desenvolvimento. Projetar outros futuros possíveis passa, necessariamente, pela compreensão do nosso passado e presente — cujos meandros narrativos são disputados, entre outras coisas, por meio de ferramentas comunicacionais, como o fazem os Lanceros Digitales.
Despertar: estratégias de luta para novos sujeitos políticos
Por Giulia Mendes Gambassi
Como mencionamos em Enraizar o porvir: (re)nomear a Améfrica Ladina – entrevista com Marilyn Machado Mosquera, entender os processos exploratórios que se dão na América Latina é um desafio constante e, provavelmente, interminável. Por isso, trata-se de algo que deve ser feito coletivamente – ainda que seja necessário trabalhar de forma individual as implicações de nossas práticas e fazeres acerca desse acontecimento. Nesse sentido, este post traz o que aprendemos na roda de conversa Construcción del poder popular en la lucha antiminera, ouvindo Paola Ortiz, José Cueva e Luis Corral, da Frente Nacional Antiminero (FNA), no IV Congresso Latino-americano de Ecologia Política.

Voltados à defesa do território, da água, da semente e da memória no Equador, a FNA trouxe diferentes contextos das comunidades afetadas em todo o território equatoriano, sem deixar de enfatizar que, mesmo que haja especificidades em cada uma das frentes, como país, eles enfrentam a mesma legislação, a mesma política de mineração e as mesmas formas de criminalização dos movimentos que se colocam a defender a terra e o povo do avanço neoliberal. A união dos atingidos de diferentes localidades, com uma forte participação de povos tradicionais em todo o evento, destaca-se na luta contra o grande projeto transnacional mineiro por eles denunciado.
Além disso, o constante tensionamento do que seria o suposto desenvolvimento trazido pelas práticas de exploração da natureza ganha destaque não só nessa roda de conversa, mas em todo o evento. Apesar de ainda ser comum relacionar os empreendimentos minerários a oportunidades de emprego, o debate parece ter mais fôlego nos países vizinhos, talvez por viverem em menor extensão territorial, o que possibilita mais encontros e interlocuções do que os temos aqui no Brasil – também de imensa potência. Pouco mais de um mês depois de nosso encontro no evento em Quito, a FNA estava em marcha buscando consolidar uma luta em nível nacional contra as mineradoras que seguem explorando seus territórios (veja um vídeo sobre a marcha aqui).
Nesse escopo, a FNA conta que há diferentes centros de formação ou escolas espalhados pelo Equador, que visam a munir os atingidos com informações e estratégias, articulando diferentes setores às lutas sociais e à compreensão do que, de fato, significa ter seu território invadido por grandes empreendimentos de mineração. Segundo os representantes da FNA que estavam presentes na roda, essa ênfase é dada, pois educação é liberdade e é um elemento fundamental na emancipação dos povos atingidos – o que partilhamos em nosso GT.
Em junho de 2022 houve uma greve nacional no Equador, protagonizada pelos povos indígenas e campesinos que, durante 18 dias, marcou sua oposição ao governo de Guillermo Lasso, eleito um ano antes, com massivas manifestações, greve de trabalhadores de diversos setores, bloqueio de estradas, tomada de poços de petróleo entre outras estratégias. A força do povo equatoriano e a potência do movimento político organizado contra o aumento dos preços de combustíveis e da cesta básica, os altos índices de desemprego e o aumento de subemprego, bem como a crise agravada dos sistemas de saúde e de segurança, foi consolidada e constitui um marco que alimentará o enfrentamento ao sistema que massacra tantas pessoas.
Fazendo referência ao Paro Nacional, como essa greve é chamada por lá, a FNA aponta que as respostas ao modelo exploratório em voga têm que ser construídas em assembleias e processos permanentes. Isso, pois, mesmo considerando as conquistas alcançadas pelos movimentos, há limites frente à institucionalidade alcançada pelas mineradoras dentro do próprio governo. Desse modo, não se pode, afirmam, avançar sem mobilização e resistência partindo de cada território. É preciso fortalecer coletivos e organizações, principalmente depois da percepção de que a luta antimineração gerou um novo sujeito político, mais dinâmico e coletivo.

Uma das formas de trazer força aos movimentos e fundamentar a construção desse novo sujeito, além da educação em seus múltiplos níveis, é a comunicação. Nesse âmbito, participamos da oficina Crónicas del despojo minero en el Ecuador: el video y el cómic como herramienta de lucha, ministrada por Michelle Báez, Ce Larrea, Mafer Carpio e William Sache. Ce Larrea, também conhecida como Casi Mira, é uma artista e ativista equatoriana e ficou responsável pela parte das histórias em quadrinho da oficina, que acompanhamos.
Veja uma tirinha da artista sobre o Paro de 2022.

Suas produções carregam a voz da comunidade e dos diferentes entes viventes atingidos pelos processos de mineração. Ainda que tenha uma atuação ampla nas lutas sociais, devido à temática do evento, apresentou uma situação, sobre qual deveríamos produzir um comic para chamar a atenção da comunidade sobre a problemática.
Voltando, ainda à roda de conversa da FNA, além de representantes de diversos grupos, houve a participação de três estudantes universitários quitenhos, do curso de Ciência Política, que, ao tentarem sair antes do fim da discussão, foram interpelados pelos membros da FNA e pelos demais participantes. À demanda de que se manifestassem sobre o que tinham ouvido até então, responderam que as ações de resistência ali debatidas pareciam muito pulverizadas e pouco efetivas no contexto nacional. Criticaram as abordagens afirmando que não eram bem vistas pelo povo equatoriano, pontuando que, além de tudo, eram pouco estratégicas as ações dos ativistas. Não sem alguma reação, as palavras dos jovens estudantes foram contrapostas pelos que estavam presentes e nos fizeram refletir sobre nosso próprio percurso. Afinal, qual o papel da universidade na comunidade? É possível fazer ciência descolada de questões históricas e sociais, mas, principalmente, das vozes daqueles que são diretamente atingidos?
Nossa participação no evento foi permeada por um exercício contínuo de compreender o caráter pontual, ainda que importante, da atividade acadêmica nas transformações sociais. Mas mais do que isso, o que mais se destaca no processo de emergência dos novos sujeitos políticos, como coloca a FNA, ativamente decolonizando as instituições e as práticas que nos cercam, é a escuta atenta, curiosa e humilde àqueles que representam e constroem uma frente de luta, que não é qualquer.
Nós, inseridos nas universidades latinoamericanas, precisamos nos abrir a outras cosmopercepções, a miradas, como dizem nossos companheiros de luta hispanohablantes, que se voltem às nossas vidas e aos nossos territórios de forma mais holística. É preciso ouvir o chamado das organizações políticas e populares, dos povos tradicionais e, principalmente, da terra, da água e de todos os seres viventes – que aprendemos a objetificar com os europeus – para que despertemos e construamos outras subjetividades.
Relatos de atuação como peritos comunitários: seria a Natureza um sujeito de direitos?
Por Talita Gantus de Oliveira
A crescente preocupação com os direitos humanos e o seu reconhecimento pelos Estados no âmbito internacional impulsionaram a promulgação de diversos tratados protecionistas desses direitos, como afirma D’Avila entre outros autores, em pesquisa de 2014 [1]. Esses documentos são resultados de esforços conjuntos entre nações que, através de acordos multilaterais, definem sistemas de proteção ao direito humano, de caráter global ou regional. Dentre os acordos mencionados, está a Convenção Interamericana de Direitos Humanos [2], a qual prevê a proteção de comunidades atingidas por crimes ecológicos.
Dentre os direitos humanos reconhecidos na Convenção Interamericana, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado encontra-se positivado em diversos momentos. Embora esse conjunto de leis e normativas traga possibilidades de disputas a favor da população mais oprimida socialmente e mais afetada pelos desastres socioecológicos, é importante apontar seus limites. Limites esses que impõem restrições aos avanços populares, como a defesa da propriedade privada – que, muitas vezes, decide judicialmente a favor das empresas do capital extrativista. Além disso, as organizações que postulam esses tratados, em grande medida, são reprodutoras da colonialidade, pois reiteram a organização geopolítica de Estados-Nação.
Cabe destacar, ainda, que o Direito é o aparelho ideológico do Estado [3]. Como o Estado organiza e reproduz os interesses da classe dominante, a forma e o conteúdo dos Estados modernos capitalistas – que têm o lucro como bússola – atende aos interesses da classe capitalista, dos donos do dinheiro. Não são os poderosos, são o poder, e atuam extraindo mais-valia, lucro, juros e renda em cima da exploração da natureza e espoliação da população. Ainda que, como nos aponta Audre Lorde [4], tenhamos em mente que as ferramentas do senhor não derrubam a casa grande, é preciso, taticamente, fazer uso dos instrumentos políticos e jurídicos que temos disponíveis para coibirmos o avanço do capital sobre nossos corpos-territórios.
É isso que nos ensinou a roda de conversa intitulada: “Experiências de peritos comunitários em direitos da natureza nas cortes do Equador” (Experiencias de peritos comunitarios en derechos de la naturaleza en las cortes del Ecuador). Essa roda de conversa fez parte da programação do IV Congresso Latinoamericano de Ecologia Política, realizado em Quito, Equador, entre os dias 19 e 22 de outubro de 2022. A atividade em questão foi organizada pela Rede de Peritos Comunitários em Direitos da Natureza (Red de Peritos Comunitarios en Derechos de la Naturaleza). Os peritos comunitários funcionam como uma espécie de defensoria que parte da própria comunidade, a partir de seus representantes, como agentes desse diálogo com a justiça, fazendo valer os direitos da natureza preconizados pela Constituição Equatoriana e gerando autonomia da comunidade nesse processo.

Direitos da Natureza, conceito trabalhado por Gudynas em livro homônimo [5], trata-se de um princípio que parte do reconhecimento da Natureza como um sujeito de direitos, deslocando a concepção antropocêntrica que ordena nossa estrutura social e suas representações ideológicas e materiais. Cria-se, a partir daí, uma “ética biocêntrica” que alimenta reformulações em todo o espectro coberto pelas políticas ambientais, desfocando de um olhar que toma o ser humano como principal e único afetado, para um olhar ampliado para todo o ecossistema. Essa ética dá ênfase ao fato de que o poder de agência social sobre o ecossistema natural demonstra claramente que é a sociedade e seu modo de se reproduzir que produz os impactos socioecológicos. Ou seja, o antropoceno [6] traz à tona que cabe ao pacto social responsabilizar a quem couber pela destruição ecológica em curso nos distintos territórios.
Nesse sentido, entende-se que a Natureza, destruída pelos seres humanos, precisa ser protegida pelos próprios seres humanos e deles mesmos – e de determinados modos de se existir em sociedade. Por isso, para que as condições de reprodução da vida, que requerem um ambiente ecologicamente equilibrado, sejam minimamente mantidas, a ética biocêntrica se torna fundamental de ser incorporada ao pacto social e seu sistema jurídico.
Isto posto, algumas constituições federais de países latino-americanos têm incorporado essa perspectiva a partir de discussões em Assembleias Constituintes que se iniciam na base, por meio de processos participativos nos territórios atingidos pelo impacto socioecológico em curso. A Constituição do Equador é um desses exemplos. No entanto, experiências relatadas nessa roda de conversa de peritos nos lembra que não é simples fazer valer a letra da lei. Similar ao que acontece no Brasil e em diversas partes do mundo, a prática jurídica nem sempre funciona da maneira como preconiza a legislação. É inerente ao sistema judiciário, como dito anteriormente, reproduzir as opressões que sustentam as estruturas. Como em diversos campos, não apenas no ambiental, nem sempre a justiça é justa, posto que não é neutra.
Para nos apropriarmos desses instrumentos, é preciso conhecê-lo. Pensando nisso, para que seja funcional e para que haja a participação comunitária nesse processo de formação de massa, a justiça constitucional não pode ter uma linguagem restrita e academicista. Torna-se, então, fundamental a expertise acadêmica aliada à formação de peritos comunitários de defesa da Natureza.
Dentre os relatos narrados durante a roda de conversa, há um sobre uma ação de medidas cautelares na tentativa de impedir o avanço da fronteira agropecuária. Nesse local, não havia sido realizada a consulta prévia, livre e informada à qual a comunidade tem direito – como preconiza a Constituição – para a instalação do empreendimento extrativista agropecuário que colocaria em risco a soberania campesina de comunidades indígenas.
Comunidades pescadoras e marisqueiras da região de Esmeraldas, no Equador, denunciaram o avanço de megaempreendimentos de empresas mineiras, com interesses puramente econômicos, sob os manguezais. Esta é uma ação inconstitucional porque diz respeito ao impacto em um ecossistema endêmico, intangível e não recuperável. Além disso, a instalação desse empreendimento poderia provocar a insegurança hídrica da comunidade (lembrando que segurança hídrica se trata de provimento de água para consumo humano em quantidade e em qualidade), visto que haveria contaminação de rejeitos minerais nos aquíferos.
Outro caso exposto denuncia o avanço do agronegócio de monocultivo sobre territórios, devastando a fauna e flora endêmicas. Também há uma ação de inconstitucionalidade nesse caso, visto que o empreendimento agroindustrial avança ferindo direitos humanos. Há um impacto muito grave dos monocultivos na cultura local e na natureza. O monocultivo impossibilita a eco-biodiversidade e a diversidade cultural.
Outra perita relatou o avanço de uma empresa de mineração sobre um patrimônio arqueológico próximo à cidade de Quito. O empreendimento levaria à devastação de bosques que abrigavam nascentes de água. A concessão de licença afetava as comunidades de agricultores de produtos orgânicos certificados da região. Segundo ela, as mulheres estavam na frente da luta e nos centros de resistência.
Essa troca de experiências promovida pela roda de conversa foi muito rica. Os relatos vêm de diversas regiões, com conflitos ambientais diversos. Embora haja peculiaridades, desafios e práticas de (re)existência que têm caráter territorial, há também um pano de fundo estrutural que os atravessa, conectando-os. Há de comum nos relatos desafios relacionados à dificuldade em explicar a própria cosmovisão, como por exemplo, que um rio ou uma árvore possuem vida, nome e sentimentos. Outra dificuldade é conseguir, em termos jurídicos, dar voz a quem não tem voz – como a natureza e seus elementos não-humanos – e correlacionar o pensamento técnico, teórico e prático.
Apenas as pessoas que vivem nos territórios atingidos conseguem elencar o que é metafísico e o que não é, e o que é digno de resguardo e proteção, como as tradições e práticas culturais que atravessam o meio físico, como o cultivo de plantas medicinais pelas comunidades indígenas ameaçadas pelo avanço da indústria extrativista, ou de ervas para rituais espirituais. Ou como a presença de uma montanha e de como ela define, de maneira transgeracional, a subjetividade da comunidade que cresce e vive naquela paisagem.
Não se deve esperar dos peritos da Natureza imparcialidade e neutralidade, mas veracidade. Até porque, são pessoas diretamente afetadas pelo avanço do capital sobre a Natureza em seus territórios. Em se tratando das parcerias que podem ser feitas entre a academia e a rede de peritos comunitários, os representantes relataram que é possível estabelecer um compromisso ético da ciência com a justiça social, com a universidade auxiliando a comunidade no que for possível e no que se fizer necessário, tendo a própria comunidade como guia dessa construção. Assim como o direito, a própria ciência não é neutra, pois é mediada por quem empreende a investigação – muitas vezes, financiada pela iniciativa privada. É uma produção de informação que, embora científica, é imparcial. Há de ressaltar que há uma produção de ciência cidadã que atua em prol da veracidade, mas que também não se orienta pela imparcialidade, porque busca uma justiça social e ambiental para toda a população oprimida por esse sistema que destrói a Terra.
A legislação brasileira, embora não reconheça a natureza como sujeito de direitos, abre possibilidades para esse debate. A Lei Mar de Lama Nunca Mais é um exemplo que abre brechas para lutarmos judicialmente para proteger a natureza e seus povos. Um projeto de Lei de Iniciativa Popular que contou a assinatura de 56 mil cidadãos, a Lei Estadual 23.291/2019 institui a Política Estadual de Segurança de Barragens (PESB), que proíbe barragens a montante e estabelece o limite de três anos para que elas não existiam mais. A partir da ampliação e aprofundamento dessas discussões sobre a justiça ambiental e a ética biocêntrica, torna-se possível, quem sabe, responsabilizar criminalmente autores de crimes ecológicos. Todo ecocídio é também um etnogenocídio.
[1] D’AVILA, Caroline Dimure Bender et al. A proteção reflexa do meio ambiente na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista IIDH, San José, v. 60, p. 11-38, 2014.
[2] Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm
[3] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.
[4] LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Autêntica Editora, p. 137, 2019.
[5] GUDYNAS, Eduardo. Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. Editora Elefante, 2020.
[6] GUDYNAS, Eduardo. Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. Editora Elefante, 2020.
Enraizar o porvir: (re)nomear a Améfrica Ladina – entrevista com Marilyn Machado Mosquera
Por Giulia Mendes Gambassi
Entender os processos exploratórios que se dão na América Latina é um desafio constante e, provavelmente, interminável. A contínua exploração dos recursos naturais e, consequentemente, dos povos que aqui habitam atualiza as feridas que herdamos do auge da colonização europeia em nossas terras.
No IV Congresso Latino-americano de Ecologia Política, sediado em Quito (Equador) em outubro de 2022, pesquisadores do CRIAB – mais especificamente do GT Educação e Sociedade –, pensaram e discutiram o tema geral desse evento, a saber: Ecología política y pensamiento crítico latinoamericano: raíces, trayectorias y miradas al futuro. A primeira plenária do congresso voltou-se às Luchas históricas en defensa de los pueblos y los territorios, em que pudemos ouvir Marilyn Machado Mosquera (Kuagro-ri Changaina), Nathalia Bonilla (Acción Ecológica), Pablo Fajardo (Unión de Afectados por la Texaco) e Joan Martínez-Alier (Universidad Autónoma de Barcelona), com a mediação de Ivonne Ramos (Acción Ecológica).
Nesse contexto, Ramos abre a mesa dando destaque à compreensão de nossas raízes “como projeção, origem e fortaleza a partir da qual fazemos caminho ao andar”, provocando um giro na compreensão dos processos políticos e históricos de nosso continente. Afinal, no sistema capitalista em que estamos inseridos, é sempre em nome do progresso e do desenvolvimento – muitas vezes desvinculados do que veio antes – que nos ensinam a pensar, a atuar e a fazer ciência. Ao enfatizar que, a partir dessa mesa, mas também do evento como um todo, podemos construir afirmações do porvir, Ramos nos provoca a assumir uma perspectiva outra em relação ao passado e ao lugar que aprendemos a dar a ele em uma organização ocidental da vida e do pensamento.

Fonte: https://www.uasb.edu.ec/entrevistas/aportes-de-las-mujeres-negras-de-colombia-a-la-ecologia-politica-emancipadora-y-decolonial/
Dentre os diversos destaques que podem ser feitos às falas que ouvimos nessa mesa, a potência da apresentação de Marilyn Machado Mosquera nos convoca a tatear e reconhecer a presença do véu do branqueamento – como aponta Lélia Gonzalez, filósofa e antropóloga brasileira citada na fala de Machado Mosquera – que impõe uma forma colonial de olharmos o mundo, o outro e até nós mesmos. Trazemos, então, neste texto, uma breve entrevista com essa potente pesquisadora.
A Améfrica Ladina proposta por Gonzalez e retomada por Machado Mosquera, problematiza o fato de que não só aspectos geográficos, mas também inconscientes se imbricam na forma em que nos narramos enquanto ladinoamefricanos. O aprisionamento em uma língua(gem) racista inibe uma possível emancipação do destino subalterno ao qual os dispositivos coloniais nos fazem crer ser inevitável. Assim, (r)existir à imposição do desenvolvimento e do progresso, à morte sistêmica de corpos que nos fizeram acreditar ser dissidentes, mas são, em realidade, o que de mais singular habita nossas terras, é revolucionário.
É nesse cenário, tecido pelas palavras de Machado Mosquera, que fazemos perguntas voltadas à pretensa separação entre homem e natureza ao se pensar a América Latina, bem como à possibilidade de, a partir dos processos de nomeação, seguirmos transformando nossa relação com a terra, a água e, mais especificamente, no caso do nosso grupo, com as práticas extrativistas do nosso entorno.
A primeira pergunta que fizemos foi: é possível pensar a Améfrica Ladina, como propõe Lélia Gonzalez, deslocada da natureza?, à qual nossa entrevistada se coloca a responder em dois sentidos.
O primeiro diz respeito, principalmente, à localização majoritária das comunidades negras inseridas na Colômbia e no Equador no espaço rural, compreendido junto à natureza. Considerar esse aspecto espacial é inescapável ao se propor qualquer visão de africanidade na América Latina, estando consequentemente vinculada à natureza. De todo modo, há aquelas e aqueles que nascem e vivem no meio urbano e que aprendem a separar os humanos dos demais seres, como rios, árvores, entre outros, mobilizando, a seu modo, outras formas de se compreender sua identidade e ancestralidade. Para esses grupos, haveria a possibilidade de se pensar Améfrica Ladina sem levar em conta a natureza, mas isso se basearia em um componente “antinatural” e fiado em uma perspectiva colonial, já que Machado Mosquera afirma que somos a natureza ou, como coloca a partir de Enrique Leff, todos os povos são da terra.
O segundo sentido que ela tece em relação à primeira pergunta, se volta ao que chama de sentipensar negro. Esse sentipensar, aponta, transcende os espaços geográficos, estando presente na culinária – que também tem influência de outros povos, inclusive indígenas –, na música, nos esportes, nos escritos e nos modos de ser dos povos ladinoamefricanos, o que nos levaria a perceber a amefricanidade para além do território. Entretanto, quando se pensa a partir dos processos de nomeação colonial que criam uma representação de América Latina desvinculada da terra, como se tivesse se erigido por outros que não os povos que já estavam aqui, deixa-se de fora as diversas comunidades que extrapolam uma construção europeia de territorialidade e subjetividade.
Nesse ponto, Machado Mosquera afirma ser necessário perceber esse processo de construção a partir de uma proposição que é de amplo conhecimento dos povos negros e indígenas: “se não se nomeia, não existe”. Esse apontamento nos leva à segunda pergunta a ela direcionada: como poderíamos nos apropriar desses processos de nomeação buscando nos afastar da herança colonial que vivemos na América Latina?
A resposta a essa pergunta também se dá em duas frentes, que identificamos como “(re)conhecer para decolonizar” e “escutar para transformar”. A primeira frente parte do pressuposto de que conhecer os povos e os diversos atores que constituem os territórios em que vivemos, bem como reconhecer os processos de extrema opressão que experienciaram e ainda experienciam é requisito básico daqueles que clamam trabalhar com ecologia política. Porém, como observa nossa entrevistada, a prática decolonial que se propagandeia por aí, muitas vezes não se afasta efetivamente ou até mesmo ressignifica e problematiza nossa herança colonial. A pesquisadora afirma que isso seria contraprodutivo, já que sem se conhecer e reconhecer o ator que tenha sido profunda e historicamente oprimido, não é possível pensar em decolonialidade.
A segunda frente se volta a um processo de escuta e divulgação que parte da compreensão dos processos de nomeação ligados à América Latina. Estudiosos afirmam que o nome “América” se dá em homenagem a Américo Vespucio, que foi o primeiro a reconhecer, mas não a invadir, nossas terras como um novo continente e não as chamadas Índias. Já “Latina” se atribui por conta das línguas latinas faladas nessa região, diferente das germânicas, faladas no Norte. Reiterando o trabalho cuidadoso com a linguagem que é feito por Gonzalez, visando a colocar no centro as diversas comunidades, Machado Mosquera relatou uma experiência em uma das oficinas oferecidas no evento, em que, como participante, perguntou aos demais o que achavam de chamar nossas terras de Améfrica Ladina. As respostas que obteve poderiam ser organizadas em (i) não é importante pensar sobre o nome do nosso continente, (ii) deveria se levar em conta os nomes que já circulam em algumas comunidades indígenas, mobilizando outras palavras que não as do colonizadores, e (iii) deveria se pensar em uma forma mais abrangente de nomear esse território. Mais do que tentar apresentar uma resposta unificadora, Machado Mosquera aponta a importância de se questionar a nomeação, mesmo que não seja para encontrar um novo nome.
Assim, lidar com o fato de que as comunidades negras e indígenas são vistas como parte de territórios de sacrifício (em nome do desenvolvimento neoliberal) exige que ela se coloque não desde um lugar de pesquisadora ou mestranda, mas, sim, de uma mulher negra que traz à tona dinâmicas ordinárias (comuns e não conhecidas amplamente por quem está fora das comunidades) e extraordinárias (manifestações, bloqueios de estradas – como tivemos nas recentes greves na Colômbia e no Equador –, participação em espaços acadêmicos com escrita de artigos que aconteceram recentemente e que obtiveram êxito na proteção dos povos e das terras) em jogo com sua presença. Por esse motivo, Machado Mosquera afirma que se apropriar dos processos de nomeação, tentar transformá-los para além da herança colonial é escutar e ler as comunidades negras, gerar espaços de discussão em que sejam convidados a serem protagonistas e até mesmo fazer entrevistas como essa.
(Re)nomear a Améfrica Ladina, então, se dá a partir da percepção de que os pensamentos começam enraizados, como afirma nossa entrevistada, na natureza, no território, no passado e nos diferentes conhecimentos que nos constituem. Parece-nos, então, que enraizar um porvir ou ensaiar outros futuros parte do (re)conhecimento da história e da autonomia dos povos que aqui vivem e que nos fazem existir enquanto povo ladinoamefricano Construir um território e uma relação com a natureza que transcende os processos exploratórios sem esquecê-los, é fazer uma aposta pela vida, nos termos de Leff, é traçar um futuro tão potente quanto o sentipensar dos povos da terra e de mulheres como Marilyn Machado Mosquera.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988a.
LEFF, Enrique. A aposta pela vida: imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do Sul. Petrópolis: Vozes. 2016. 510p.
MACHADO-MOSQUERA, M. Re-existencias de comunidades negras del Norte del Cauca-Colombia por la permanencia en el territorio, y haciéndole frente al extractivismo minero. Gestión y Ambiente, [S. l.], v. 24, n. supl1, p. 225–247, 2021. DOI: 10.15446/ga.v24nsupl1.93299. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/gestion/article/view/93299. Acesso em: 27 nov. 2022.
Principais impactos associados a barragens brasileiras de grandes empreendimentos
Ana Laura Silva Gomes (IG/Unicamp), Matheus William Henrique de Medeiros (FT/Unicamp),
Giulia Mendes Gambassi (IEL/Unicamp) e Claudia Pfeiffer (Labeurb/Unicamp)
Nos posts publicados anteriormente buscamos introduzir algumas questões sobre as barragens, considerando nossas frentes de trabalho no CRIAB. Primeiro, voltamo-nos ao que são as barragens, depois falamos sobre onde estão as barragens brasileiras e apresentamos nossa escolha de nomear os rompimentos de barragens enquanto desastre-crime.
Os impactos associados à construção de uma barragem podem causar mudanças drásticas não apenas em casos extremos de desastres-crime, mas também afetando o território desde a implantação de seu projeto. A instalação de barragens altera as práticas das pessoas e de seu entorno, os animais e a vegetação da região, modificando a paisagem do local, a cadeia alimentar ali presente, enfim, transformando toda a biodiversidade da região. Esses impactos estão ligados aos diversos tipos de barragens sobre os quais falaremos na nossa próxima série de posts.
Nas próximas publicações, então, abordaremos os impactos relativos às barragens de usinas hidrelétricas e de rejeitos de mineração, tomadas enquanto construções complexas vinculadas a grandes empreendimentos. Não perca!
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Desafio de Lisboa
José Mario Martínez e Maicon Ribeiro Correa
GT Engenharia Matemática/CRIAB
“Desafio de Lisboa” é a forma como nos referimos à participação do GT Engenharia Matemática – que pertence ao CRIAB – no 6th Workshop on River and Sedimentation Hydrodynamics and Morphodynamics, organizado pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa (IST) com o objetivo de disseminar e intercambiar conhecimentos sobre rompimento de barragens e seus modelos.
O rompimento de uma barragem é um evento físico com enormes consequências sociais, ecológicas e materiais. Trata-se de um evento único: uma barragem não colapsa duas vezes ou, pelo menos, não colapsa duas vezes sob as mesmas circunstâncias. Como ocorre nos acontecimentos históricos, não é possível sua reprodução em laboratório. Por esse motivo, para compreender, prever e mitigar esse tipo de fenômeno, é pertinente o uso de modelos.
Um modelo físico é uma reprodução aproximada, em pequena escala, do evento verdadeiro. A proposta de Lisboa começa com um modelo físico, construído no IST, que pretende se assemelhar a um processo de rompimento de uma barragem de água por “galgamento”, isto é, quando o nível d’água no reservatório se eleva além da cota da crista da barragem (parte superior de contenção).
Para visualizar o modelo físico apresentado pelo IST, imaginemos uma caixa de 6 metros de comprimento, 1,20 metros de largura e 45 centímetros de altura. No extremo direito da caixa, envolvendo os últimos 2,20 metros do comprimento, colocamos “a barragem”. Esta é uma construção de 45 centímetros de altura, cujo corte longitudinal tem a forma de um trapézio, e cuja parte superior horizontal, chamada de “crista”, tem 17 centímetros de largura. Comecemos enchendo a caixa de água, exatamente até o topo dos 45 centímetros. Diremos, então, que o “reservatório a montante” está cheio.
Em princípio, considerando que a barragem é impermeável (na prática, ela não é, mas podemos considerar que o escoamento da água em seu interior é muito lento), a água permaneceria no reservatório a montante para sempre. Entretanto, os experimentadores de Lisboa praticam um pequeno entalhe (incisão) em sua parte superior, mais precisamente no meio da crista, no sentido longitudinal da barragem. Naturalmente, a água que se encontrava no reservatório a montante passa a circular pelo entalhe, escoa sobre a superfície da barragem e começa a verter à direita, em outra caixa que chamaremos “reservatório a jusante”.
Evidentemente, este pequeno escoamento através da pequena incisão duraria pouco tempo, pois acabaria quando o nível da água a montante ficasse por baixo da altura da incisão. Entretanto, os experimentadores se preocupam em acrescentar água ao reservatório permanentemente, de maneira a manter seu nível a montante sempre igual (na medida do possível) a 45 centímetros.
Mais uma vez, parece que temos um processo que durará para sempre. Porém, há um fato que impede esta permanência: a passagem da água pelo entalhe (que, de agora em diante, chamaremos “brecha”) provoca uma erosão que gradualmente faz crescer o tamanho da brecha, tanto em profundidade como em largura. Ao longo do tempo, a brecha aumenta de forma e tamanho até que o reservatório fique praticamente destruído.
A seguir é o primeiro desenho que fizemos na nossa tentativa de entender o modelo físico de Lisboa, quando observado por cima.
Figura 1: Vista planar do sistema reservatório-barragem-reservatório
Esse foi o início de nosso trabalho a partir da ampla convocatória para grupos do mundo inteiro que o Workshop de Lisboa fez para elaborar modelos matemáticos do modelo físico construído pelo IST e que tentamos descrever mais acima.
Lembremos que os modelos físicos são auxiliares para entender os processos históricos de rompimento de barragens. Entretanto, a construção de modelos físicos é extremamente cara e demorada no tempo. Vídeos fornecidos pelo IST mostram a forma rigorosa com a qual os materiais foram escolhidos para a construção da barragem e os sofisticados equipamentos usados para medir vazões, profundidades e cotas de fundo. Por isso é necessária a definição de modelos matemáticos, que são intrinsecamente rápidos e baratos, para emular o comportamento de modelos físicos, ou seja, simular esses comportamentos. Usamos a matemática para modelar um determinado fenômeno, assim como no artesanato, a argila pode ser usada para esculpir o que o artista vê ou imagina.
A convocatória de Lisboa foi dirigida a modeladores dispostos a encarar esse desafio. Na primeira etapa do processo, que culminou nos primeiros dias de novembro, foi fornecida aos modeladores uma quantidade moderada de dados, com o objetivo de que as primeiras vers˜oes dos modelos matem´aticos fossem programadas. Para a segunda etapa, Lisboa liberar´a mais medi¸c˜oes, que permitir˜ao “ajustar” os modelos ao comportamento efetivo do modelo f´ısico.
A participação do GT Engenharia Matemática no Desafio de Lisboa
Quando tomamos conhecimento da existência do Desafio de Lisboa decidimos que, apesar de nossa inexperiência no tema, deveríamos participar da proposta. Para isso, organizamos reuniões semanais, das quais grande parte do GT de Engenharia Matemática acabou participando, onde discutimos o problema, a bibliografia que nos parecia pertinente, esclarecemos dúvidas, colocamos propostas no início disparatadas e, depois, mais sensatas, organizamos nossa comunicação com Lisboa e nos dividimos informalmente em subgrupos fluidos para diferentes aspectos do desafio.
Os modelos matemáticos referentes a esse desafio devem encarar simultaneamente duas questões: “Como evolui o fluxo de água (profundidade e velocidade) dado um estado da brecha?” e “Como evolui a brecha em um instante do tempo como consequência do fluxo da água?” Isto significa que, pensando em uma abordagem idealmente bi-dimensional (duas dimensões espaciais), o “estado do sistema” envolve, em cada instante do tempo, o conhecimento da altura da lâmina d’água, de sua cota de fundo e da velocidade da água (Cota de fundo é a coordenada vertical do fundo sólido do reservatório em relação a um zero absoluto, digamos, o nível do mar. Portanto, o estado da brecha está bem representado pela cota de fundo em cada instante do tempo).
Quando consideramos que a cota de fundo não varia com o tempo, a evolução do fluxo de água se considera bem representado por “equações diferenciais parciais” conhecidas como “equações de águas rasas”, que representam uma versão bi-dimensional das famosas equações de Navier-Stokes, devidas a Claude-Louis Navier e George Gabriel Stokes, na primeira metade do século XIX. As técnicas para resolver estas equações, com auxílio computacional, variam muito em termos de precisão e complexidade. De uma forma geral, podemos afirmar que mesmo as técnicas mais populares e bem difundidas são não-triviais. Por outro lado, a consideração de uma cota de fundo variável com o tempo leva a problemas adicionais: Devem ser incluídas, na dinâmica do processo, leis que expressem a variação temporal da cota de fundo em função das demais variáveis de estado dos modelos.
Apesar destas complicações, quase todos os modelos apresentados pelos diferentes grupos que participaram do Desafio de Lisboa adotaram a abordagem de águas rasas bi-dimensionais com leis intrínsecas para a formação da brecha. As diferenças entre esses modelos apareceram na escolha destas leis e o ajuste preliminar dos parâmetros das mesmas para compatibilização com as informações disponíveis. Os programas elaborados pelos diferentes grupos que seguiram esta linha demoraram, em geral, várias horas de computação.
Nossa avaliação das condições específicas do problema nos levou a adotar um enfoque diferente. (De fato, a adoção de “águas-rasas-2D” pela maioria dos outros modeladores era desconhecida por nós até a reunião geral de novembro). Com efeito, conjeturamos que a geometria do problema faria possível a simplificação unidimensional, introduzindo uma lei adicional para computar a variação da largura da brecha, o que levaria a tempos computacionais moderados sem perda de precisão. Assim, nosso grupo trabalhou em duas linhas paralelas, embora ambas com a perspectiva unidimensional.
Uma linha foi fortemente apoiada em um modelo consolidado para a formação de brechas, chamado DL-Breach. Este modelo analisa exaustivamente o emprego de relações constitutivas que permitem prever a evolução de uma brecha dependendo dos materiais da barragem, sua coesão ou falta dela, e considerações globais de vazão e profundidade.
A segunda linha considera o sistema reservatório-barragem-reservatório em uma única dimensão longitudinal, invoca as “equações de Saint-Venant”, que são a simplificação unidimensional das equações de águas rasas, e incorpora dinamicamente novas equações para a modificação da cota de fundo e a largura da brecha em cada instante do tempo.
Com essas perspectivas submetemos nossas conclusões aos organizadores do workshop e apresentamos nosso trabalho junto com os outros grupos, na segunda semana de novembro de 2021.
As previsões fornecidas por nossos modelos para a profundidade e largura da brecha ao longo do tempo resultaram bastante adequadas e, de modo geral, com parecido nível de precisão que as dos modelos computacionalmente mais caros.
Na próxima etapa do Desafio de Lisboa serão fornecidos dados adicionais que devem permitir o “ajuste fino”, ou definitivo, dos modelos. Em outras palavras, todos os modelos têm parâmetros e coeficientes que, na primeira versão apresentada, foram tirados da literatura ou estimados sem a precisão mínima necessária a partir de fotografias enviadas pelos organizadores. Na próxima etapa haverá a possibilidade de calcular esses parâmetros e, talvez, outros, usando um conjunto de medições mais amplo e mais preciso. Para essa tarefa deverão ser usadas técnicas sofisticadas de otimização, cuja plausibilidade será facilitada pelo fato dos modelos matemático-computacionais adotados por nosso grupo rodarem rapidamente. Isto se deve a que, em essência, o processo de otimização e ajuste se assemelha a uma operação de ensaio e erro inteligentemente conduzida mas dependente de cálculos que envolvem rodadas completas dos modelos. Isto abre uma interessante oportunidade para modelos “baratos”, em contraposição aos baseados em águas rasas 2D.
De todos modos, o Desafio de Lisboa não se configura como uma competição mas como uma oportunidade de diferentes grupos interagirem, trocarem experiências e avançarem nas técnicas gerais de modelagem de rompimento de barragens, tema de interesse crescente no mundo inteiro por evidentes razões humanitárias e ambientais.
Para além da cava: ampliação e reverberações da atividade mineral
Talita Gantus, Ana Paula Leal, Marco Túlio Câmara, Claudia Pfeiffer
A proposição da Jornada de Debates na Mineração, iniciada em 2019, emergecom o intuito de aprofundar o debate sobre o ‘problema mineral brasileiro’, desde o mundo do trabalho e consumo, aos conflitos territoriais advindos da superexploração da natureza e da interferência nos modos de vida das comunidades atingidas. Logo, faz-se necessário construir ações conjuntas e simultâneas para repercussão interna, no ambiente acadêmico formal, que fortaleçam a perspectiva da soberania popular na mineração e da defesa dos bens naturais do povo brasileiro, através de diversos meios de comunicação e de mídias alternativas.
Desde os eventos de rompimentos de barragens de rejeito das mineradoras Samarco (2015) e Vale S.A. (2019), que se localizavam nos municípios mineiros de Mariana e Brumadinho, respectivamente, o debate acerca do ‘problema mineral’ ganhou maior visibilidade na sociedade brasileira. Movimento que, em nosso entendimento, é de extrema importância, uma vez que as reverberações da atividade mineral, enquanto problemática, atravessam os povos, os territórios e as múltiplas formas de vida, com consequências danosas, como as observadas nos episódios citados anteriormente, fazendo deste um problema que pertence a todos nós. Posto isso, urge a necessidade de debatê-lo qualificadamente com vistas à proposição e superação das formas de dominação e manutenção da desigualdade, inerentes e continuadas, pelo atual modelo mineral imposto.
A escolha do mês de novembro para realização da Jornadas reside na triste, porém necessária, rememoração do desastre-crime (conceito trabalhado pelo CRIAB e abordado neste texto aqui) da barragem de Córrego do Fundão, em Mariana/MG, sob responsabilidade da Samarco/Vale/BHP Billiton, ocorrido em 5 de novembro de 2015 e considerado como um dos maiores ecocídios em território brasileiro. Importante pontuarmos que todo ecocídio é um genocídio e vice-versa.
Como forma de contribuir para esse debate de suma importância acadêmica e política, o CRIAB (Grupo de Ação e Pesquisa em Conflitos, Riscos e Impactos Associados a Barragens), em parceria com a_Ponte (ONG de divulgação de geociências crítica), o Fórum Popular da Natureza, a Escola Popular da Natureza e o MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração), organizam, pelo 3º ano consecutivo, esta Jornada – de 22 a 24 de novembro de 2021. Pretendemos, dentro da multiplicidade de questões que competem ao debate, nos debruçar em três eixos, que contribuem para pensar os impactos da atividade para além da cava e dos próprios eventos de rompimentos. O objetivo é colaborar para a maior visibilização e problematização de algumas práticas da atividade mineral e de suas consequências que são, muitas vezes, silenciadas. Assim, partiremos de uma análise mais global para uma mais específica, organizada em três sessões, como apresentado abaixo:
Economia política da mineração e perpetuação da lógica colonial – 22 de novembro, 19h00
Bens naturais retirados em escala local são transacionados por agentes internacionais em mercados externos, gerando uma possibilidade de lucro infinito sobre recursos que são finitos. O Departamento de Relações com Investidores da mineradora Vale informa que 47,74% das suas ações pertencem a investidores estrangeiros que operam por meio da Bolsa de Nova York e da Bovespa, totalizando US$ 31,86 bilhões em ações.
O que se vivencia na atual cadeia produtiva mineral, portanto, é a apropriação do lucro por uma minoria e a socialização dos impactos socioambientais. Mais que isso, seguindo a lógica colonial: o lucro vai para os acionistas estrangeiros, enquanto os conflitos permanecem em solo brasileiro. Todavia, o agravamento das condições e o aprofundamento da crise pelo capitalismo financeirizado apresenta-se como uma forma desenvolvida do empreendimento colonial, sua outra faceta.
Para tratar da conjuntura nacional e da economia política do setor extrativo da mineração, suas raízes coloniais e da transferência de valor entre os países ditos desenvolvidos e subdesenvolvidos, convidamos, no dia 22 de novembro, Charles Trocate, Giliad de Sousa e Juliane Furno.
Charles Trocate é educador popular, filósofo, escritor e membro da Academia Sul Paraense de Letras (ALSSP), e da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Desde os 15 anos, é militante político do MST, e na última década, vem se dedicando à construção do MAM.
Giliad de Sousa é professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), mestre e doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Laboratório de Contas Regionais da Amazônia (Lacam) e integrante do Grupo de Estudos em Política, Economia e Dinâmicas Minerárias (GPEM).
Juliane Furno é mestre e doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp e militante do Levante Popular da Juventude.
Mulheres e mineração: as opressões de gênero, raça e classe – 23 de novembro, 19h00
Em locais onde a mineração se instala, fortemente amparada pelo discurso de desenvolvimento e progresso, ao contrário, o que se observa é o aumento da precarização da vida, dos conflitos por terra e água, da violência física e também simbólica às populações, principalmente aquelas mais vulneráveis, e da consequente desestabilização e perda de vínculos entre comunidades e seus territórios. Nessas situações é possível observar uma sobreposição de opressões que atravessam as questões de gênero, raça e classe social, fazendo com que as mulheres, sobretudo as mulheres negras, sejam as principais impactadas pelos danos advindos da atividade mineral.
A Plataforma Brasileira DHESCA (Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) apresentou, em 2013, o relatório Mineração e violações de direitos relativos a tal operação, pontuando como efeito: migração desordenada, agravamento nas condições de vida e nas desigualdades de gênero, precarização dos serviços públicos e vulnerabilidade à exploração sexual e outras formas de violência. Ainda, Segundo a Sempreviva Organização Feminista (SOF), nas áreas de exploração mineral é recorrente a violência doméstica contra as mulheres, a violência sexual e a prostituição. Dentro das empresas nesse setor produtivo, o cenário é de desigualdade de gênero na empregabilidade; em todos os postos de trabalho, o número de trabalhadores homens dentro de toda a cadeia supera muito o de mulheres. Segundo pesquisa do IBGE de 2015, o setor mineral tem quase 90% de profissionais homens. Além da questão de gênero, pretendemos construir o debate em torno da problemática da atividade mineral também pela lente étnico-racial, destacando que a maior parte dos atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão é negra: o povoado de Bento Rodrigues apresenta 84,3% de sua população negra, Paracatu de Baixo, 80%, Gesteira, 70,4% e Barra Longa, 60,3%.
Conceitualmente, é possível tratar a sobreposição dessas opressões através da interseccionalidade entre o machismo, o racismo e as ações de discriminação de classe. Mas, e nos territórios, como esses movimentos são observados e sentidos, quais formas de mobilização e enfrentamento atravessam essas causas? Para abordarmos como as mulheres, principalmente mulheres negras, são as mais afetadas pela mineração, convidamos, para o dia 23 de novembro, Fabrina Furtado, Ana Carla Cota e Larissa Vieira.
Fabrina Furtado é professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da UFRRJ, pesquisadora do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza e do Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (GEMAP). Foi assessora da Relatoria de Direitos Humanos ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca e atuou e acompanha redes de organizações e movimentos sociais, como a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA).
Ana Carla Cota é atingida da barragem do Doutor da Mineradora Vale; engenheira geóloga. Membro da Comissão dos Atingidos por Barragens de Antônio Pereira, Ouro Preto – MG; membro da Flama – MG (Frente Mineira de luta das atingidas e atingidos pela Mineração); e membro da Associação de Moradores da Vila Residencial Antônio Pereira.
Larissa Vieira é advogada popular. Integra a RENAP (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares) e o Coletivo Margarida Alves. É também colaboradora do MAM. Atua com conflitos socioambientais há 8 anos. Mestre e, atualmente, Doutoranda no PPGSD/UFF pesquisando a temática de mineração e racismo.
Mineração para além da cava: reflexos na crise habitacional – 24 de novembro, 19h00
Em se tratando de uma outra camada dessa problemática ainda pouco explorada, há uma profunda relação entre os capitais imobiliários e especuladores, empreiteiras e construtoras e o setor mineral, principalmente o de agregados de construção civil. Talvez passe despercebido este fato, mas o cimento, a tinta, a cal, a brita, enfim, muitos materiais utilizados na construção civil são provenientes da extração mineral. A indústria da construção civil usufruiu de alguns anos de bonança, resultado da ampla oferta de crédito imobiliário e por obras decorrentes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) e também das obras preparatórias para a Copa do Mundo 2014. Segundo dados do DNPM, a produção recorde de 745 milhões de toneladas de agregados em 2013 foi resultado dessas ações. Embora a dinâmica desse setor em relação à mineração de ferro seja diferente, os impactos são tão devastadores quanto.
A despeito disso, reside aí uma contradição, principalmente quando avaliamos o cenário do estado de São Paulo: apesar das inúmeras obras públicas continuadas e da presença de canteiros de obras que se acumulam e se sobrepõem em cidades como a capital, o déficit habitacional na cidade de São Paulo é estimado em 358 mil moradias – que abrigariam famílias de várias pessoas. No caso específico do centro de São Paulo, imóveis públicos e privados têm sido mantidos vazios, como reserva de valor fundiário e imobiliário, enquanto muitos, que não tendo onde morar, ocupam onde podem e da forma que podem. Somado a isso, na maioria das vezes, o financiamento habitacional subsidiado pelo governo, que deveria ser dirigido aos mais pobres, tem financiado a habitação das classes médias e dos mais ricos. Em março deste ano, a Fundação João Pinheiro divulgou os dados do déficit habitacional brasileiro em relação ao período de 2016 a 2019. De acordo com os dados apresentados, o déficit habitacional entre 2016 e 2019 foi basicamente feminino e negro.
Para entendermos a relação entre esses setores – mineral, imobiliário e fundiário – e como a mineração lucra a partir dessa crise habitacional, convidamos, para o dia 24 de novembro, Edson Mello, Celso Carvalho e Irene Maestro.
Edson Mello é geólogo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e doutor pela Unicamp e Universidade da Austrália Ocidental – UWA. Acumula experiências na iniciativa privada e na administração pública federal na Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral – Ministério de Minas e Energia, e é professor na UFRJ e Diretor do Instituto de Geociências da UFRJ.
Celso Carvalho é engenheiro civil, mestre e doutor em engenharia pela Escola Politécnica da USP, instituição onde foi professor entre 1990 e 2011. Pesquisador do IPT de 1985 a 2003. Diretor do Ministério das Cidades de 2003 a 2014, onde foi responsável pelos programas de regularização fundiária urbana e prevenção de desastres. Engenheiro Especialista em Infraestrutura na Superintendência do Patrimônio da União em São Paulo, de 2015 a 2018. Servidor público federal aposentado. Membro da coordenação nacional da Rede BrCidades, integrante do Projeto Brasil da Frente Brasil Popular.
Irene Maestro é militante do movimento Luta Popular, advogada e pesquisadora.