Férias culturais

Ler foi uma das atividades lazer de minhas férias de verão 2009-2010. Além do livro de Dawkins, O Maior Espetáculo da Terra, dois outros: Caim, de José Saramago, e Escritos Sobre Ciência e Religião, de Thomas Henry Huxley.

O livro de Huxley (1825-1895) é parte da Coleção Pequenos Frascos, editada pela Editora UNESP, e foi lançado em 2009. A introdução por Roberto de Andrade Martins, professor do Instituto de Física Gleb Wataghlin da UNICAMP e coordenador do grupo de História e Teoria da Ciência, situa Huxley em seu momento histórico e ilustra como sua formação intelectual foi influenciada por pensadores da época, como Herbert Spencer e Robert Chambers. Ficou famoso por seu debate com o bispo anglicano Samuel Wilberforce, quando defendeu a unhas e dentes a teoria da evolução de Darwin. Foi um importante divulgador da ciência, defensor do ensino de qualidade e da importância da educação para a formação cidadã. Proferiu inúmeras conferências sobre este tema ao longo de sua vida, foi membro da London School Board e da Royal Comission on Scientific Instruction and the Advancement of Science, reitor da Universidade de Aberdeen, diretor do South London Working Man’s College, presidente da Geological Society, da British Association for the Advnacement of Science, e da Royal Society.
Os três textos de Huxley incluídos no livro são conferências intituladas Sobre a conveniência de se aperfeiçoar o conhecimento natural (1866), O natural e o sobrenatural (1892) e Ciência e cultura (1880). Apesar de seu estilo um tanto rebuscado, Huxley é de uma clareza e atualidade impressionantes. Argumenta em favor do conhecimento da ciência de forma contundente, e ilustra com fatos, como a melhoria das condições de saúde dos londrinos decorrente da mudança do estilo de vida das pessoas em função de sua educação, a importância do conhecimento natural para o desenvolvimento social. Do primeiro texto destaco as seguintes passagens:

“(…) o aperfeiçoamento do conhecimento natural (…) não apenas conferiu benefícios práticos ao homem como, ao assim fazê-lo, ensejou uma revolução em suas concepções do universo e de si próprio, e alterou profundamente seus modos de pensar e sua idéia de certo e errado. Sustento que o conhecimento natural, ao procurar satisfazer às demandas naturais, encontrou as idéias que poderiam por si próprias responder a anseios espirituais. Sustento que o conhecimento natural, ao procurar erigir as leis do bem-estar, foi levado à descoberta das leis de conduta e a estabelecer os fundamentos de uma nova moralidade.” (p. 43-44)

Se os astrônomos descobriram que a Terra não é o centro do universo, mas um grão de poeira secundário, os naturalistas concluíram que o homem não é o centro do mundo vivente, mas uma entre miríades de outras variantes de vida.” (p. 52)

Estas e outras passagens apresentam um Huxley ardoroso defensor do método científico, do ceticismo e do espírito investigador para se conhecer o mundo em que vivemos, ao mesmo tempo inquiridor sobre idéias pré-concebidas. E vislumbra um futuro otimista para a humanidade, sustentado pelo conhecimento natural.

No segundo texto, Huxley questiona os preceitos religiosos para explicar o mundo natural a partir da bíblia. Afirma, sem dó nem piedade, que “(…) as várias religiões são, em grande medida, mutuamente excludentes, e seus seguidores exultam em acusar uns aos outros”. (p. 63) e ainda que “(…) parece estabelecida uma relação inversa entre o conhecimento sobrenatural e o natural. Enquanto o último tem-se expandido, avançado em precisão e confiabilidade, o primeiro tem minguado, cada vez mais vago e discutível (…)” (p. 64). Questiona duramente o dogma religioso, de todas as correntes cristãs, para explicar qualquer aspecto da natureza ou justificar pretensos princípios morais. Manifesta sua opinião sobre a origem do estado laico: “Foram as iniqüidades e não as irracionalidades do sistema papal que proveram base à revolta laica, revolta esta que era fundamentalmente uma tentativa de se libertar da intolerável opressão de certas decorrências práticas de um sobrenaturalismo que todos, em princípio, admitiam.” (p. 70-71). Demonstra, não somente neste texto, mas também no precedente, citando fatos históricos, como o movimento renascentista e o subsequente desenvolvimento da ciência “(…) afrouxaram amarras tradicionais e enfrequeceram o jugo do sobrenaturalismo medieval.” (p. 72). A ponto de a própria igreja e seus defensores “(…) lançar mão de ridículas e fraudulentas teorias para dar conta dos fenômenos religiosos (…)” e ainda de justificar as iniqüidades deísticas e absurdos bíblicos ao “elemento humano” quando da elaboração do livro sagrado. Consequentemente, a própria igreja, em inúmeros momentos de sua história, passa por contradições internas, que levam à suas inúmeras divisões (anglicanos, batistas, luteranos, católicos, etc), pois não consegue mais sustentar-se. Finalmente, as diversas variantes cristãs passam a adotar posturas ortodoxas, não em concordância com a bíblia, mas com alguns de seus livros, pois, segundo Huxley “quem define o cânon, define o credo”.

Huxley demonstra ter estudado a bíblia com muito cuidado e atenção, apresentando questionamentos longos e duros demais para que tenham resposta. Às afirmações dos sacerdotes da época, que argumentavam serem lendários e a-históricos os primeiros nove livros da bíblia, pergunta: “(…) quanto da precisão histórica do restante pode ser garantido? O que há de mais distinto na história do Êxodo que na do Dilúvio para que se acredite nela? Se Deus não perambulou pelo Jardim do Éden, como podemos estar certos de que falou no Sinai?” Huxley defende abertamente a posição que somente o agnosticismo e uma educação naturalista pode contribuir efetivamente para a compreensão do mundo que nos rodeia.

O terceiro texto é a conferência proferida quando da inauguração do Mason College, atual Universidade de Birmingham. Huxley discute sobre a importância de uma educação moderna e de um programa atual (à época) para a formação de cientistas e profissionais. Josiah Mason, idealizador e criador do Mason College, estabeleceu três premissas para sua faculdade: “a) não se permite que partidos políticos os influenciem; b) a teologia também é rigorosamente proscrita no recinto, e; c) é especificamente estabelecido que a faculdade não providenciará condições para ‘instrução e educação meramente literárias’.” (p. 119) Embora as duas primeiras possam ser perfeitamente compreensíveis, a terceira parece ser um tanto estranha. Mas Huxley não somente defende a proposta de Mason, como julga desnecessário o ensino de Latim e Grego para a formação do cientista, sendo mais adequado o ensino de línguas como alemão e francês. Ao questionamento de que o não aprendizado literário levaria à formação de um “mero especialista científico”, responde que a “instrução e educação meramente literárias é um evidente exemplo de tacanhice científica.” (p. 120) Porém, parece não levar em conta que uma formação complementar, “literária e científica”, poderia eventualmente conduzir a uma formação mais completa do pesquisador. Reforça sua posição quando assinala que “Cultura certamente significa algo totalmente distinto de aptidão para a aprendizagem ou para a técnica. Envolve a posse de um ideal e o hábito de estimar criticamente o valor das coisas tomando por base um padrão teórico. A cultura perfeita deve empregar uma completa teoria de vida, fundada sobre um claro conhecimento de suas possibilidades e limitações.

Discussão - 2 comentários

  1. Tati Nahas disse:

    Olá, Roberto,
    Sua resenha sobre o livro com os textos do Huxley deixa a gente com vontade de ir atrás do material agora mesmo! Obrigada pela dica!

  2. Roberto disse:

    Oi Tati,
    Que bom que gostou. Achei o livro muito interessante.
    Roberto.

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