A química medicinal de cosméticos egípcios

O uso de maquiagem no antigo Egito é bem conhecido, tendo sido retratado em mulheres nas obras artísticas, como pinturas e estátuas. Razões estéticas, religiosas e propriedades terapêuticas justificavam o uso de diferentes tipos de cosméticos, que eram particularmente importantes em cerimônias religiosas. Relatos indicam que a rainha Nefertiti utilizava pinturas faciais para ser protegida por Horus e Ra contra diversas doenças.

A análise por microscopia eletrônica de varredura e por difração de raios-X quantitativa de tinturas utilizadas em cosméticos, obtidos a partir de peças do Museu Louvre (Paris), mostrou que a formulação de tais tinturas era baseada em sais de chumbo: galena (PbS, sulfeto de chumbo) para coloração escura e também na formulação de gloss para os lábios, além de três tinturas brancas à base de cerusita (PbCO3, carbonato de chumbo), fosgenita (Pb2Cl2CO3) e laurionita ([Pb(OH)Cl].

Segundo pesquisadores franceses, a ocorrência de substâncias à base de chumbo no Egito antigo é surpreendente, uma vez que este metal é pouco abundante naquela região. Porém, textos de autores romanos do século I d.C., como Plínio, o Velho, e Dioscórides, indicam que tais substâncias eram SINTETIZADAS pelos egípcios por suas propriedades medicinais. Por exemplo, Dioscórides afirma que “tais substâncias são bons remédios para os olhos e cicatrizes, para faces enrugadas e com manchas”. O mesmo autor forneceu descrições detalhadas de como tais substâncias eram sintetizadas em quantidade, uma vez que parte considerável da população as utilizava.

O processo de síntese era delicado, uma vez que devia ser realizado com ajustes de pH para evitar que substâncias secundárias (indesejadas) se formassem. Os egípcios agitavam energicamente óxido de chumbo, PbO, na presença de sal de cozinha bruto (NaCl), às vezes na presença de carbonatos de sódio (Na2CO3 ou NaHCO3) em água morna:

A questão é como os egípcios mantinham o pH neutro (em 7,0) para evitar a formação de hidróxidos de chumbo, uma vez que hidróxido de sódio (alcalino) é formado durante a reação. Uma alternativa seria que o sobrenadante líquido fosse continuamente retirado da reação, ao mesmo tempo em que se adicionava água fresca e mais cloreto de sódio. A reação era realizada durante semanas, quando se formava um precipitado branco. Tais reações foram recentemente (1999 e 2003) realizadas segundo os procedimentos descritos por Dioscórides, e foram obtidos os sais de laurionita e fosgenita.

Tais preparados já eram utilizados pelos egípcios no século 16 a.C., e continuaram a ser utilizados até o império romano, uma vez que os egípcios tinham fama de serem famosos por terem medicamentos para o tratamento de problemas nos olhos (como inflamações e conjuntivites). Tais problemas oculares eram freqüentes durante as cheias do Nilo. Para o tratamento, os egípcios desenvolveram tratamentos como colírios e emplastros que também serviam como cosméticos.

Atualmente a utilização de medicamentos a base de chumbo é totalmente proscrita, devido à toxidez de compostos de chumbo. Na idade média, vários alquimistas apresentaram problemas como saturnismo, doenças neurológicas decorrentes da intoxicação por chumbo. O nome “saturnismo” vem justamente de chumbo, elemento associado ao planeta Saturno, que não tinha muito boa fama na idade média. Um dia cinzento, carregado de nuvens, pode ser chamado de um dia “plúmbeo”, em alusão ao chumbo (PlumbusPlumbum, daí sua sigla, Pb). O fato é que o íon Pb2+ reage com vários tipos diferentes de moléculas biológicas, como co-fatores e proteínas, que naturalmente estão associadas a outros íons divalentes: Ca2+, Zn2+, Fe2+, Cu2+ e Mg2+. Uma vez associado a estas biomoléculas o íon Pb2+ altera suas funções, e forma espécies pouco solúveis em água. Esta é possivelmente a origem da toxidez de substâncias com chumbo.

O íon Pb2+ apresenta raio atômico e estados de oxidação idênticos aos do íon cálcio (Ca2+), um íon extremamente importante em vários processos celulares e fisiológicos. Como o Ca2+ atua ativando processos celulares de óxido-redução, os pesquisadores franceses levantaram a hipótese de que o íon Pb2+ poderia atuar de maneira muito similar, estimulando processos imunológicos quando aplicado em baixas concentrações. Uma vez que os sais utilizados pelos egípcios são muito insolúveis em água, deveriam estar em concentração muito baixa quando em contato com fluidos corporais (nos olhos e em feridas).

Desta forma, o grupo francês decidiu investigar possíveis respostas celulares promovidas pela presença de concentrações muito pequenas de Pb2+ (sub-micromolares), utilizando amperometria com ultramicroeletrodos de fibra de carbono com platina. Vários experimentos permitiram observar que quantidades de chumbo em concentrações entre 0,2 e 0,4 uM levaram à formação de NO neutro. Esta substância atua como mensageiro no sistema imunológico. Indica a presença de infecções para macrófagos (células do sistema imunológico), aumenta o fluxo sanguíneo, e promove a vascularização capilar (de vasos sanguíneos muito pequenos). Ou seja, na presença de sais de chumbo olhos tratados com estas substâncias estão muito menos propensos a sofrer infecções.

Assim, quando os egípcios utilizavam tais tinturas cosméticas nos olhos, garantiam a proteção de Horus e Ra contra possíveis doenças. Embora atualmente se conheçam os reais motivos de tais substâncias atuarem de forma eficaz, nada tira o mérito dos egípcios de prepararem tais substâncias com extremo cuidado e de utilizar as mesmas de forma adequada. Os antigos egípcios eram investigadores natos, químicos de mão cheia e médicos que faziam uso de conhecimento empírico. Uma bela história.

A referência completa deste trabalho é a seguinte: I. Tapsoba, S. Arbault, P. Walter e C. Amatore, Finding Out Egyptian Gods’ Secret Using Analytical Chemistry: Biomedical Properties of Egyptian Black Makeup Revealed by Amperometry at Single Cells, Analitical Chemistry, 2010, 82 (2), pp 457–460 (DOI: 10.1021/ac902348g).

Discussão - 4 comentários

  1. Os homens egípcios tb usavam maquiagem, não?
    []s,
    Roberto Takata

  2. Rafael |RNAm| disse:

    Fantástico Roberto. Ótima história

  3. Roberto disse:

    Takata, não faço idéia!

  4. luiza s. disse:

    muiiitoooo bom, poderia ser mais resumido, mais está ótimo!

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