A talidomida é um composto do tipo isoindole piperidinil [1], originalmente introduzido como um fármaco hipnótico. Esse medicamento também era usada para aliviar náuseas em mulheres grávidas  [2]. Historicamente, esse fármaco foi um potente sedativo da era pós-guerra. Numa época em que a insônia prevalecia, a talidomida era comercializada para um mundo viciado em tranquilizantes e pílulas para dormir. A talidomida era prescrita para o tratamento de pequenos distúrbios, como irritabilidade, falta de concentração, ansiedade, insônia, náusea, enjoo matinal, hipertiroidismo e até mesmo doenças infecciosas. Considerada segura, estava disponível sem prescrição médica. Ela rapidamente começou a ser fabricada e vendida em todo o mundo [2].

A estrutura da talidomida tem um carbono que chamamos de centro quiral ou assimétrico. O carbono quiral da talidomida é aquele que se liga ao nitrogênio (C*-N) e, dessa forma une o anel piperidinil ao isoindole (Figura 1). Dizer que ele é quiral ou assimétrico significa que todos os seus substituintes são diferentes. Em consequência da presença desse carbono assimétrico, há duas espécies que são praticamente iguais. Chamamos cada espécie de isômeros, isto é, compostos que têm a mesma composição atômica (fórmula molecular), mas diferentes entre si na sua estereoquímica e, portanto, apresentam diferentes propriedades físicas e/ou químicas [3].

Figura 1. Estrutura da talidomida

Os dois isômeros da talidomida são denominados de acordo com sua configuração dextrógira (+)-R-talidomida e levógira (-)-S-talidomida. De acordo com sua propriedade de isomeria óptica, os isômeros da talidomida podem ser classificados em dextrógiro ou levógiro por polarizarem o plano de luz incidente em sentido horário ou anti-horário, respectivamente. A atribuição da designação R ou S , por sua vez, obedece  um sistema de regras chamada de Cahn-Ingold-Prelog (CIP) [1]. Para ver mais sobre  a identificação de uma molécula descrevendo claramente o seu centro quiral, por favor, acesse o software “polarímetro virtual” desenvolvido por professores da Universidade Federal do Ceará [4].

Observa-se que os isômeros R e S da talidomida também são enantiômeros, isto é, eles são imagem especular uma da outra no espelho. E, assim como as mãos esquerda e direita não pode ser sobreposto em sua totalidade como se observa na Figura 2.  Como em bioquímica, a disposição dos átomos é crucial na determinação da atividade biológica, os isômeros podem apresentar efeito biológico completamente diferente um do outro. Isso explica os isômeros da talidomida apresentarem atividades biológicas completamente diferentes.

Chiroptical Sensing: A Conceptual Introduction

Figura 2. Estrutura dos enantiômeros – As talidomidas R e S são isômeros cujas moléculas são imagens especulares (um composto é a imagem no espelho do outro composto) e não são sobreponíveis (não podem ser sobrepostas integralmente, sendo dois compostos diferentes).

Em 1959, um número crescente de recém-nascidos começou a ser relatado com um fenótipo chamado focomelia, uma rara deformidade congênita, no qual as mãos ou pés estão presos perto do tronco, estando os membros grosseiramente subdesenvolvidos ou ausentes. No entanto, foi apenas no final de 1961 que o pesquisador Lenz sugeriu uma possível ligação entre o surgimento súbito dessas anomalias congênitas e o uso da talidomida durante a gravidez [5].

Embora a teratogênese da talidomida, ainda não tivesse sido comprovada experimentalmente, a talidomida foi rapidamente retirada do mercado na Alemanha e na Inglaterra, e mais tarde em vários outros países. A talidomida, além de provocar alterações dos membros superiores e inferiores, pode provocar defeitos visuais, auditivos, problemas na coluna vertebral e, em casos mais raros, defeitos cardíacos e no tubo digestivo. Foram mais de 10.000 pessoas afetadas pelo efeito colateral da talidomida em todo o mundo [5].

O efeito colateral da talidomida provocou mudanças no desenvolvimento de fármacos e aprendizados para toda a existência da humanidade [6]. Antes desse fatídico evento, as farmacêuticas não tinham que provar nada sobre segurança e eficácia do fármaco. A tragédia da talidomida incentivou a ocorrência de mudanças que fortaleceram o ambiente regulatório e científico para o desenvolvimento e revisão de produtos médicos [7]. Atualmente, exige-se que os fabricantes provem a segurança e eficácia do medicamento antes de serem comercializados. Dessa forma, podemos dizer que a tragédia da talidomida foi um divisor de água e motivou mudanças na legislação do órgão que gerencia a liberação de medicamento para uso do consumidor nos Estados Unidos (U.S. Food and Drug Administration – FDA). Por que a regulamentação quanto a liberação de medicamento é tão importante? Por que deve ser tão rígida e consistente ?Para impedir que velhos erros da história se repitam!

Embora tenha sido retirado do mercado devido a efeitos teratogênicos, depois de novos estudos ela foi reintroduzida ao mercado na década de 90. A talidomida tem sido utilizada em todo o mundo para tratar com sucesso uma ampla gama de doenças, incluindo a lepra, a doença de Crohn, o mieloma múltiplo e alguns tipos de câncer. O principal uso da talidomida no Brasil é para tratamento de hanseníase (Eritema Nodoso Hansênico) [5].

Você já sabia que a talidomida é usada ainda nos dias atuais? Sabendo disso, você já se perguntou como um medicamento teratogênico pode ser usado?

Essas perguntas serão respondidas no nossa próxima postagem e, além disso, outros questionamentos relevantes serão levantados. Qualquer dúvida, sugestão ou questionamento, por favor, entre em contato conosco.

 “O importante é não parar de questionar.Curiosidade tem sua própria razão de existir” – Albert Einstein

Ciências para todos!

Quimikinha!

Referências

[1] Wishart, D. S., Feunang, Y. D., Guo, A. C., Lo, E. J., Marcu, A., Grant, J. R., … Wilson, M. (2018). DrugBank 5.0: a major update to the DrugBank database for 2018. Nucleic Acids Research, 46(D1), D1074–D1082. https://www.drugbank.ca/drugs/DB01041

[2] Pannikar, V. (2003). The return of thalidomide: new uses and renewed concerns. Leprosy Review, 74(3), 286–288. Retrieved from http://www.who.int/lep/research/Thalidomide.pdf.

[3] IUPAC. (2014). Compendium of Chemical Terminology: Gold Book. IUPAC Compendium of Chemical Terminology, 1670. https://doi.org/10.1351/goldbook.I03352

[4] Junior, Jose Nunes da Silva; Barbosa, Francisco Geraldo; Junior, A. J. M. L. (2018). Polarímetro Virtual 2.0 – Software educacional. Fortaleza: Departamento de Química Orgânica e Inorgânica. Retrieved from http://www.ldse.ufc.br/polarimetro/

[5] Sales Luiz Vianna, F., Kowalski, T. W., Fraga, L. R., Sanseverino, M. T. V., & Schuler-Faccini, L. (2017). The impact of thalidomide use in birth defects in Brazil. European Journal of Medical Genetics, 60(1), 12–15. https://doi.org/10.1016/j.ejmg.2016.09.015

[6] Vargesson, N. (2015). Thalidomide-induced teratogenesis: history and mechanisms. Birth Defects Research. Part C, Embryo Today : Reviews, 105(2), 140–156. https://doi.org/10.1002/bdrc.21096

[7] 50 Years after Thalidomide: Why Regulation Matters | FDA Voice. (n.d.). Retrieved May 2, 2018, from https://blogs.fda.gov/fdavoice/index.php/2012/02/50-years-after-thalidomide-why-regulation-matters/


Gisele Silvestre

Atualmente, sou pesquisadora na área de inovação tecnológica no Laboratório Multiusuário de Química e Produtos Naturais sediado na Embrapa - CE (Postdoc). Doutora em Química pela Unicamp (2017). Bacharel em química pela Universidade Federal do Ceará (2011). Interessada na popularização da ciência, parcerias, trocas de conhecimentos científicos e culturais. Tenho como hobby o ato de "aprender" . O conhecimento sempre me surpreende e fascina. Minha missão é compartilhar conhecimento e descobertas científicas. Ciência para todos! Carpe Diem!

17 comentários

Washington Barbalho · 8 de novembro de 2018 às 17:17

Olá gISELE. Sou formado pela ETEC Getúlio Vargas, com CRQ em Técnico em MEio Ambiente, focado em Química, e atualmente estudo para adentrar na UNICAMP, em Geologia.

Estudei há pouco sobre a TALIDOMIDA e fiquei e a molécula CIS/TRANS, e fiquei um tanto com receio dessa matéria, pois foi breve.

Há alguma razão dentre a Hanseníase e o Vitiligo?

At.

    Gisele Silvestre · 8 de novembro de 2018 às 23:39

    Oi, Washington. Tudo bem?

    1- Sobre isomeria, esse assunto sempre deixa uma confusão....
    A isomeria cis-trans (ou isomeria geométrica) não se aplica para talidomida.
    Isomeria cis-trans é aquela típica estereoisomeria de "alcenos", sabe? aqueles compostos com dupla ligação (Embora, existem outros tipos de isomeria cis-trans em compostos ciclicos , por exemplo).
    Nesse caso, a presença do carbono quiral (carbono ligado a 4 substituintes distintos) na talidomida tem uma CONFIGURAÇÃO ESPACIAL em torno do
    CENTRO QUIRAL denominada de R ou S. ---> Não dar pra explicar tudo em um comentário, por isso, peço que olhe mais detalhes e as regrasde nomeação de centros quirais de "sistema R e S", nesse link aqui>>>>
    https://chem.libretexts.org/Textbook_Maps/Organic_Chemistry/Book%3A_Organic_Chemistry_with_a_Biological_Emphasis_(Soderberg)/Chapter_03%3A_Conformations_and_Stereochemistry/03.4%3A_Naming_chiral_centers%3A_the_R_and_S_system ---------------------------------------------------------------------------
    - 2- Sobre a última pergunta, a hanseníase é uma doença causada por bactéria Mycobacterium leprae, enquanto que o vitiligo não é causado por nenhum micro-organismo. Dessa forma, essas doenças são bem diferentes! Espero ter ajudado!

Julia · 17 de julho de 2020 às 15:27

Matéria incrível, tudo o que eu precisava para um trabalho. Muito obrigada e parabéns pela explicação.

Julia · 17 de julho de 2020 às 15:28

Matéria incrível, tudo o que eu precisava para um trabalho. Muito obrigada e parabéns pela explicação!

    Gisele Silvestre · 17 de julho de 2020 às 23:55

    Olá Julia ...que coisa boa... Estou feliz que tenha gostado. Volte sempre!

Carolina Leite Lima · 27 de julho de 2020 às 11:12

Olá Giseke, tudo bemw? Primeiramente gostaria de dizer que achei o texto simplesmente maravilhoso,com informações que nunca havia encontrado em outras fontes. Só fiquei em dúvida em relação às imagens apresentadas dos isômeros dextrógiro e levógiro. Aparentemente, a S-talidomida está com a mesma conformação da R-talidomida, e não como objeto e imagem uma da outra. Fica a observação.

Patricia Sanches · 5 de março de 2021 às 14:58

Oi Gisele, tudo bem? Faço parte de uma editora aqui em SP e queremos usar um trecho desse texto em nosso material didático. Poderia nos fornecer um e-mail para contato? Fico no aguardo. Obrigada,

Camila · 6 de junho de 2021 às 18:13

Oi tudo bem? Estou fazendo um trabalho cientifico e gostaria de perguntar como que eu poderia citar a sua pesquisa

    Gisele Silvestre · 20 de julho de 2021 às 18:54

    Oi, Camila ...isso pode depender od formato exigido, porem, se for ABNT pode ser algo assim: DA SILVA, G. S. Paradoxos da Talidomida – “De temida a promissor fármaco. Blogs de ciência da Unicamp, v. 4, n. 6, 2018. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/quimikinha/2018/06/07/paradoxos-da-talidomida-de-temida-a-promissor-farmaco/. Acesso em: 29 ago. 2018.

Marilana Colodino dos Santos · 25 de junho de 2021 às 12:04

Estou escrevendo uma matéria sobre a Talidomida e esse foi o texto mais claro que encontrei. Ensino Médio. Obrigada.

PERSIO · 24 de dezembro de 2021 às 11:59

Parabéns Gisele por sua interessante publicação, e nestes tempos que a população mundial está sendo inoculada com a vacina contra o COVID,
que pergunta devemos fazer, e que respostas teremos no futuro de nossa saúde??

    Gisele Silvestre · 4 de julho de 2022 às 19:46

    Amigo Persio, comparar pequenas moléculas com vacina é tipo comparar pitomba e abacaxi pq a abordagem de desenvolvimento é completamente diferente.
    Como vc viu na postagem, a tragédia da talidomida foi evidente.....

    Agora, vamos refletir juntos: "Tivemos problemas evidentes com outras vacinas mais antigas? qual?
    A resposta é Não temos problemas com vacinas até hj!

    Vou tentar fazer uma postagem com esse tema, ok?!

    Obrigada pelo seu comentário.
    Abraços!

Paradoxos da Talidomida - “De temida a promissor fármaco” - Quimikinha · 23 de agosto de 2018 às 22:28

[…] postagem anterior “A tragédia da talidomida – a importância da segurança e regulamentação de medicamentos…, nós vimos que um efeito colateral da talidomida (Figura 1) provocou má formação em mais de […]

Quiralidade no cotidiano - Quimikinha · 10 de setembro de 2018 às 16:18

[…] postagem “Tragédia da talidomida – Divisora de águas na regulamentação de medicamento”, ficou claro que a disposição dos átomos é crucial na determinação da atividade biológica. […]

Quiralidade e cotidiano - Quimikinha · 13 de setembro de 2018 às 23:38

[…] postagem “Tragédia da talidomida – Divisora de águas na regulamentação de medicamento”, ficou claro que a disposição dos átomos é crucial na determinação da atividade biológica. […]

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