Se sujar faz bem?

A imunologia e a microbiologia são duas disciplinas que andam de mãos dadas. No início da década de 1990 começou-se a falar na “Hipótese da Higiene” (HH), que embasada por dados epidemiológicos indicava uma maior prevalência de doenças auto-imunes e inflamatórias nos países mais desenvolvidos, onde as taxas de sanitização são melhores… – a mesma relação estabelecida entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos pode ser observada quando consideramos áreas urbanizadas e rurais, e o motivo é o mesmo: na área rural o cuidado com a higiene costuma ser menor.

Então quer dizer que quanto mais anti-higiênico nós formos, melhor?

O Cascão está certo!?

Bem, não é bem assim… Porém, a importância de se entrar em contato com microrganismos desde a tenra idade (o que é uma das ideias centrais da HH) ganhou força com um estudo publicado na Science do dia 27 de abril de 2012.

Considerado como um “dos estudos sobre mecanismos mais rigorosos da área como há muito tempo não se via“, pelo microbiologista Sarkis Mazmanian, o paper consiste na comparação da susceptibilidade de camundongos isentos de germes (germ-free, GF) e livres de patógenos específicos (specific pathogen free, SPF) a duas doenças de caráter imunológico: colite e asma.

Os resultados mostraram uma maior susceptibilidade dos GF a essas doenças. Essa comparação não é completa e poderíamos pensar: mas será que se reestabelecermos a microbiota nesses animais GF conseguíamos reduzir o quadro citado anteriormente?

E foi isso que os autores fizeram, e de duas formas diferentes.

Na primeira, eles colonizaram GF recém-nascidos, e observaram redução no desenvolvimento das doenças (semelhante aos SPF). Na segunda forma de colonização, GF adultos foram colonizados e os animais continuaram a desenvolver as doenças com o mesmo perfil dos animais GF.

EXPLICAÇÃO IMUNOLÓGICA

Essas diferenças estão relacionadas a um tipo específico de células (invariant natural killer T cell, iNKT) que está aumentada no intestino e nos pulmões dos animais GF – e diminuída nos SPF e nos GF-colonizados precocemente; porém permanecem em quantidades elevadas mesmo quando os GF já adultos são colonizados. Os pesquisadores mostram, ainda, que o aumento dessas células está relacionado a um aumento na quimiocina pró-inflamatória CXCL16 (promove o acúmulo de células iNKT), que tem sua expressão aumentada na ausência da microbiota! O que exatamente leva a essa regulação ainda não é conhecido, podem ser microrganismos específicos ou moléculas produzidas por eles. E esse deverá ser o alvo dos próximos estudos: descobrir quais microrganismos seriam essenciais para uma correta maturação do sistema imunológico.

Resumindo…

Mas então isso significa que temos que deixar nossa higiene de lado? Não… dentre as principais causas de mortalidade infantil está a diarreia, que pode ser causada por muitas bactérias, dentre elas o Vibrio cholerae, a Shigella e a Salmonella (que também pode causar a febre tifoide). A transmissão desses patógenos é muito mais fácil em ambientes com baixa sanitização, e o que vemos é um elevado numero de mortes por esses patógenos nos países subdesenvolvidos.

E como fica a HH? Na verdade, aqui falamos da importância da aquisição de uma microbiota saudável… Essa aquisição ocorre a partir da hora do parto, e por meio do contato com os cuidadores (a mãe, por exemplo). Nos países desenvolvidos, porém, o excesso de higiene poderia estar provocando uma diminuição da diversidade dos microrganismos que são adquiridos pelo neonato e, como já foi dito, a presença de microrganismos específicos poderia estar relacionada à correta maturação do sistema imunológico.

Com a elucidação do microbioma humano estamos descobrindo nos grupos de bactéria que nem imaginávamos fazer parte desse ecossistema. Assim, não é de se estranhar, também que funções desconhecidas de microrganismos conhecidos ainda estejam por serem elucidadas.

A meu ver, a grande questão não é que se sujar faz bem (pode ser até perigoso), mas que o *excesso* de higiene pode fazer mal!

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ResearchBlogging.org Torsten Olszak, Dingding An, Sebastian Zeissig, Miguel Pinilla Vera, Julia Richter, Andre Franke, Jonathan N. Glickman, Reiner Siebert, Rebecca M. Baron, Dennis L. Kasper, & Richard S. Blumberg (2012). Microbial Exposure During Early Life Has Persistent Effects on Natural Killer T Cell Function Science, 336 (6080), 489-493 DOI: 10.1126/science.1219328

8 thoughts on “Se sujar faz bem?

  • 6 de julho de 2012 em 17:03
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    Mas não micro-organismos que se adquire no contato com ambiente sujo (tipo o Mycobacterium vaccae de que o Hotta comentou há algum tempo - http://scienceblogs.com.br/brontossauros/2010/05/felicidade_e_brincar_na_terra/ -?) ou são micro-organismos que se adquire da mãe e pelos alimentos?

    []s,

    Roberto Takata

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    • 6 de julho de 2012 em 18:08
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      Então, Roberto, na verdade eu não sei, e não sei se tem alguém que saiba. O que tenho visto ser comentado é em relação a microrganismos da microbiota - inclusive há muito tempo cheguei a dar uma olhada em um paper que comentava sobre a alteração que a microbiota vem sofrendo ao longo das gerações. Aqui surge o problema que nos últimos anos com a introdução de métodos de higiene e inclusive a introdução de antimicrobianos em sabonetes está de alguma forma alterando a microbiota que é transferida.

      Não descarto os microrganismos ambientais também não, mas o que eu quis chamar atenção no post é que tem gente que, quando vai falar sobre a HH praticamente fala que a falta de higiene é importante, e não é bem por aí. Tem, ainda, os riscos - talvez prum adulto não tenha tanto problema, mas para uma criança com o sistema imunológico imaturo uma doença simples vire um problemão.

      Obrigado por ter mandado o link do Hotta. Quando estava escrevendo o post eu tinha lembrado da M. vacae, mas quão anotei e acabei me esquecendo. Vou linkar lá em cima depois!

      Abraço!

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  • 6 de julho de 2012 em 17:41
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    Na cultura popular se diz:
    "Deixa o menino pisar no chão de pés descalço pra ver se pega resistência."
    O povo já sabia (de alguma forma) o que agora se descobre cientificamente.
    .
    Excelente postagem. Escutei falar inicialmente deste tema em aula do prof. Fausto Edmundo na UFMG em 1999. Oh tempo bom.

    Resposta
  • 8 de julho de 2012 em 12:13
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    E como fica a propaganda dos "super sabonetes"?

    Relato de caso: o pediatra dos meus sobrinhos aconselha as mães a evitarem tais sabonetes. Diz ele que crianças que usam estes sabonetes apresentam mais casos de dermatites .

    Existe algum estudo relatando isso?

    Resposta
    • 19 de julho de 2012 em 09:16
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      Oi Felipe,
      prometi que ia te responder, mas tá tudo tão corrido que acabei me esquecendo.
      Aqui tem um link prum post do Atila, no Rainha Vermelha, e, no final, tem uns links para posts do Karl e do Takata,
      sugiro a leitura de todos!
      http://scienceblogs.com.br/rainha/2011/10/por-que-sabonete-bactericida-e-inutil/
      abraço!

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  • 30 de julho de 2012 em 16:54
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    Ola Samir, vc teria a referencia do artigo que vc leu sobre microbiota e suas alterações ao longo de gerações?
    Suas postagens tem complementado minhas aulas.
    Se puder me passar agradeço!
    Abç.

    Resposta
    • 30 de julho de 2012 em 16:56
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      Oi Thaís,
      infelizmente não tenho essa referência mais não... Mas se não estiver enganado, era da Nature Reviews Microbiology
      Abraço!

      Resposta
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