Por Maurílio Bonora Júnior
Como é possível que a nossa sociedade atual seja tão diferente, ao mesmo tempo, tão igual a do início da Internet?
Vivemos hoje em um mundo globalizado (pero no mucho) e conectado, rodeado por gadgets e algoritmos vinculados à internet que captam e mostram uma infinitude de informações para nós, informações estas indicadas pelos próprios algoritmos especificamente para nós, de acordo com as nossas preferências.
Em 1967, Guy Debord publicou seu livro A Sociedade do Espetáculo, em que mostrava como a espetacularização do cotidiano das pessoas influenciava toda a sociedade daquele momento, unindo as pessoas, concentrando seu olhar e consciência em uma ilusão e falsa consciência; e, ao mesmo tempo dividindo-as, colocando fronteiras entre suas relações.
Em uma sociedade que vivia com um consumo cada vez maior de televisões e rádios, Debord via o espetáculo não como as imagens per se que eram transmitidas, mas sim a relação social entre as pessoas, mediada pelas imagens e ficção das mídias visuais.
Mais sobre o assunto:
A Sociedade do Espetáculo e a individualização do ódio – Prisão imposta por si mesmo.
O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada.
Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo, p. 14.
Com um tom um tanto quanto sombrio e pessimista, Debord argumenta como o espetáculo afasta as pessoas da realidade e autenticidade, simulando uma vida imaginada pelas imagens midiáticas, convertendo tudo e todos em uma fantasia, com ilusões para todos os lados. E claro, como isso é utilizado por líderes e detentores do poder para controle social da massa. Pensando bem (e colocando de lado um pouco do pessimismo do livro), podemos dizer que ele não estava muito errado.
Se olharmos para a nossa sociedade atual, em que poucas empresas controlam grande parte das informações que são compartilhadas entre os quase 8 bilhões de humanos, e em grande parte do tempo manipulando como essas informações são recebidas pelos outros, podemos dizer que Debord não estava não errado. Provavelmente ele só não sabia a escala que as coisas tomariam.
Para entender um pouco melhor isso, decidi tomar como exemplo a música Welcome to the Internet (Bem vindo a Internet) de Bo Burnham, que aparece no filme Inside da Netflix (que inclusive é um ótimo para se refletir muito mais coisas que vou comentar aqui).
Link da Música: Welcome to the Internet – Bo Burnham (from “Inside” — ALBUM OUT NOW)
Logo nas primeiras estrofes já podemos ver como o compositor conseguiu colocar em poucos versos uma das maiores características que a internet proporciona a nós: a quantidade monstruosa de informações que temos a nossa disposição.
Welcome to the internet! Have a look around
Anything that brain of yours can think of can be found
We’ve got mountains of content—some better, some worse
If none of it’s of interest to you, you’d be the first
Entretanto, um detalhe bem sutil pode ser observado no último verso: “se nada disso lhe interessar, você seria o primeiro” (em tradução livre). Essa particularidade já demonstra como vivemos hoje em dia: em uma sociedade tão ligada à internet e ao espetáculo que ela nos proporciona (seja com qual for o conteúdo que estamos querendo) que é quase impossível encontrar alguma pessoa que não esteja ligada a ela, ou que não se interesse por algo que ela possa proporcionar.
Welcome to thе internet! What would you prefеr?
Would you like to fight for civil rights or tweet a racial slur?
Be happy! Be horny! Be bursting with rage!
We’ve got a million different ways to engage
Nessa estrofe nós já conseguimos ter um vislumbre de uma das diferenças entre a sociedade do espetáculo que Debord viu na década de 60, e a que vivemos agora: a presença das redes sociais, e não só da internet pura e simplesmente. Mas calma, vou explicar isso melhor.
Após o advento das redes sociais, o consumo de conteúdo (e não só mais de informação) aumentou muito e isso mudou completamente o paradigma da vida on-line e off-line. A aparente sensação de controle sobre o que é consumido passou das emissoras para o consumidor. Com um clique, nós podemos trocar rapidamente o que estamos vendo no nosso feed, ou mesmo o aplicativo em que estamos.
Entretanto – e por causa disso usei a palavra aparente quando disse sobre a sensação de controle – ainda são as grandes empresas que manipulam o que estamos vendo e consumindo, através dos algoritmos, mas de uma forma muito mais sútil. A briga da atualidade sobre como o controle social ocorre vai muito além de qual é o produto apresentado, e sim como manter os consumidores em suas plataformas utilizando de tais produtos. O último verso diz tudo sobre isso: todos estão usando milhões de diferentes formas para engajar seu público, seja pela alegria, empatia, sensualidade ou pelo ódio.
See a man beheaded, get offended, see a shrink
Show us pictures of your children, tell us every thought you think
Start a rumor, buy a broom, or send a death threat to a boomer
Or DM a girl and groom her; do a Zoom or find a tumor in your—
Here’s a healthy breakfast option, you should kill your mom
Here’s why women never fuck you, here’s how you can build a bomb
Which Power Ranger are you? Take this quirky quiz
Obama sent the immigrants to vaccinate your kids
Aqui já vemos uma segunda faceta característica da atual sociedade do espetáculo em que vivemos: o que consumimos ainda são imagens espetacularizadas, ainda são ilusões, mas o foco não são mais as informações que estão sendo passadas pelas pessoas naquela média. O foco agora são as pessoas per se.
As pessoas se tornaram um produto, suas vidas espetacularizadas, transformadas em um produto e vendidas como tal. É necessário dizer que a vida pessoal se torna espetacularizada não só para aquelas que, por exemplo, postam fotos e vídeos em uma rede social, mas também para aqueles que consomem, pois os algoritmos rastreiam, descobrem e veem o que este está consumindo. Em outras palavras: o seu consumo “privado” também se torna um espetáculo, por trás dos panos.
Dois detalhes que acho interessante nessa parte dizem a respeito dos versos “conte-nos cada pensamento que está pensando” e “Obama mandou os imigrantes para vacinar suas crianças”.
O primeiro faz menção direta a forma como os algoritmos seguem cada passo nosso em redes sociais e outros sites (utilizando dos famosos cookies) para aprender nossas preferências.
Outro exemplo são os questionários que as redes sociais aplicam em nós quando nos cadastramos nessas pela primeira vez, sob o pretexto de “ajustar” o seu conteúdo para cada um de nós. Em termos práticos tudo isso se traduz como uma forma de manipulação, de controle social.
Já o segundo verso, faz menção a um fenômeno que não é recente mas que tem ganhado cada vez mais força (e se tornou bem aparente durante a pandemia de Covid-19): a desinformação.
Com a velocidade que as informações conseguem ser transmitidas e a quantidade destas correndo pela internet (um fenômeno que o diretor da OMS chamou de Infodemia), temos visto cada vez mais notícias falsas que espalham medo e falsos conhecimento na população. Assim, a divulgação científica precisa lutar cada vez mais para combater esse mal que permeia nossa atual sociedade do espetáculo.
Could I interest you in everything all of the time?
A little bit of everything all of the time
Apathy’s a tragedy, and boredom is a crime
Anything and everything all of the time
Caminhando para os finalmente, nessa estrofe o que mais chama atenção é o verso “apatia é uma tragédia e o tédio é um crime”, uma fala muito mais profunda do que parece. Como disse anteriormente, atualmente não consumimos mais só conhecimento mas sim (e principalmente) pessoas.
As pessoas são os novos conteúdos. Indo um pouco mais além, nosso consumo é rápido, nós simplesmente vemos esse conteúdo rapidamente e já passamos para o próximo, jogando-o fora.
Tudo isso tem uma relação direta com um aspecto que está muito mais impregnado na nossa sociedade: o capitalismo. Uma das bases deste é a produção do desejo por algo. Uma vez que se consome esta coisa, suprindo o desejo, gera-se o tédio e insatisfação.
Com isso, surge a ansiedade e o desejo de se consumir um novo algo. E se reinicia o ciclo. Fazendo ligação com as redes sociais, vemos claramente isso no fato de nunca podermos estar desatualizados com as notícias, fofocas, memes; como nunca podemos sentir tédio, fato este que é simbolizado em um simples acontecimento: em qualquer pausa que fazemos durante um trabalho, um filme ou uma conversa, nós puxamos o celular.
And if we stick together, who knows what we’ll do?
It was always the plan to put the world in your hand
Finalizando, assim como Debord faz em seu livro, espero não ter carregado de pessimismo e tristeza a mente daqueles que estão lendo isso. Apesar de toda a problemática que a internet e as redes sociais trazem com a espetacularização da vida pessoal, estas também podem ser usadas para combater esse mal, mesmo que muitas vezes esse trabalho se mostre difícil (quiçá, impossível) e nos force a nos rendermos para seus algoritmos, a fim de lutarmos por uma causa maior e mais importante.