A CAVERNA DE PLATÃO (I)
A Caverna é a descrição de um inusitado espetáculo de ilusionismo, um teatro de sombras sinistro em cuja volta acontece uma transformação tão ominosa quanto a encenação mesma. Os espectadores são prisioneiros; o subsolo, o claustro no qual cumprem sua pena; a obra representada, nada além de uma miragem. Mas então um prisioneiro abandona a gruta e, de escravo que era, devém liberto. Na superfície, o liberto descobre o mundo iluminado pelo Sol e o próprio Sol, se emancipa finalmente da ignorância e transmuta em sujeito esclarecido. O sujeito esclarecido, por sua vez, homem compassivo além de lúcido, conserva na memória a lembrança dos antigos companheiros e desce de volta às trevas para resgatá-los. Neste movimento, o iluminado se converte em redentor. Mas o redentor é recebido com violência e encontra assim o seu destino derradeiro. O redentor, no final da história, se transforma em mártir e perece. Nada mais distante, portanto, do olhar esperançado do utopista que a mensagem da Caverna; a Caverna é uma revelação perturbadora que se mostra apenas para os olhos de lince do pessimismo que, ao dizer de Nietzsche, brilham só na escuridão.
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A República, no original grego Πολιτεία, na transliteração latina politeia, é o diálogo mais célebre do filósofo grego Platão. Muito mais do que uma meditação acerca da res publicae e a sociedade ideal, e escrita sob a forma não do tratado mas do romance, a obra é também uma construção poética delicada que exprime temas como o da alma humana, o destino e a liberdade, o cosmos e a divindade [i].
O escrito é composto por dez Livros. A cena dramática se ergue em torno do relato, narrado em primeira pessoa por Sócrates, de um diálogo acerca da justiça mantido entre ele e os seus nas imediações do Pireu, porto de Atenas. No decorrer da conversa é imaginada uma cidade perfeita, a καλλίπολις, literalmente cidade bela, e desenhado o perfil do seu governante, o filósofo-rei ou rei-filósofo. Considerada usualmente o ancestral originário da utopia, nem tudo na República é, no entanto, uma mensagem otimista.
Discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, Platão viveu a decadência da democracia e da alta cultura atenienses, presenciou o desenlace de uma guerra longa e cruenta (a Guerra do Peloponeso) que enfrentou os gregos entre si e que acabou na queda de Atenas frente a Esparta, foi testemunha do retorno à tirania e da execução do seu mestre por parte do regime. Em semelhantes circunstâncias, Platão compôs uma série de lições memoráveis que, com o passar dos milênios, vieram a constituir um alicerce fundamental do pensamento ocidental.
Dentre essas lições, convidamos o leitor de O.Phi a considerar a que inaugura o livro sétimo: a Alegoria da caverna.
Apesar de sua aparente simplicidade, a Caverna é uma composição densa e complexa, onde os significados se superpõem e o leque hermenêutico se abre na direção do infinito. Ela se encontra na segunda metade da obra, pelo que a sua compreensão remete não poucas vezes a passos prévios. Em particular, a Caverna se vincula a duas metáforas imediatamente anteriores (a do Sol e a da Linha[ii], ambas no final Livro VI), que preparam o terreno conceitual e introduzem o léxico específico. A verdade e a ilusão, a luz do dia, o solar e o luminoso, a visão e a inteligência e, no outro extremo, as sombras da noite e o noturno, a escuridão, a cegueira e a ignorância: eis os conceitos-chave.
Conservando eles na memória, atendamos à primeira parte do desenho. No início do Livro VII, Sócrates anuncia que irá descrever a situação humana em relação à inteligência e à sua falta por meio da descrição de um cenário imaginário que lhe é de todo semelhante. O quadro que ele pinta é assaz conhecido: há uma gruta sob a terra, ligada à superfície por um corredor longo, íngreme e estreito; há lá dentro homens acorrentados. Eles se encontram ali desde a infância, sujeitas as extremidades e a cabeça por pessados grilhões que os fincam ao fundo da gruta e fixam os seu olhares à frente.
Uma perversa engenharia ergue às costas dos cativos um espetáculo inquietante: há um muro, um “tabique do tipo daqueles por sobre os que os titeriteiros mostram seus bonecos”[iii] e, para além dele, uma fogueira e um espaço por onde circula uma estranha procissão de homens carregando diversos objetos e figuras. A dinâmica final é similar à de um teatro de sombras chinês: a clareira da fogueira ilumina os objetos carregados pelos homens, cuja sombra é projetada por cima do muro, na parede que remata a abóbada da caverna e que os prisioneiros têm constantemente adiante.
Impossibilitados de virar o rosto e olhar em volta, os cativos não são capazes de divisar os detalhes da encenação, mas enxergam tão somente os espectros. Em tal ignorância insuspeitada, eles escutam o ecoar das vozes dos homens que circulam do outro lado do tabique, ouvem os nomes com que esses homens se referem aos objetos que carregam e repetem esses nomes, convictos de estarem a enxergar a realidade e a falar a verdade. Nessa condição transcorre a existência dos cativos: eles permanecem ali eternamente, comunicando-se entre si sem poder se ver mutuamente e aplaudindo aquele que consegue antecipar qual sombra virá de pois de qual.
Em tal estado de coisas, Sócrates convida seus interlocutores a imaginar o que aconteceria se um dos acorrentados fosse libertado e conduzido para fora. A experiência seria dolorosa, é verdade: ao aproximar-se da intempérie, o liberto sofreria por causa do brilho e tentaria evitar a luz; sua vista ficaria deslumbrada, sua mente atordoada, e ele seria incapaz de compreender, muito menos de dar conta dos sucessos ou de acreditar estar em bom caminho.
Mas são dores de parto. Ao atravessar a boca da caverna, os olhos do liberto se acostumariam gradualmente. Ele se habituaria primeiro à penumbra, pousando a vista sobre as sombras dos objetos naturais às quais é receptivo pela vida prévia na caverna; logo contemplaria a água e, na sua superfície de espelho, veria tais objetos refletidos. Na sequência, o liberto estaria em condições de divisar os próprios objetos e, em seguida, pulando de um a outro, como que farejando o resplendor, se acostumaria ao ambiente noturno até ser capaz de ver o que há “no céu e o próprio céu”[iv]. Por último, ele observaria o mundo externo em todo o seu esplendor e, tendo amanhecido, veria finalmente tudo iluminado pelo Sol e o próprio astro-rei. Olhando para o Sol, o liberto concluiria que ele“é o que produz as estações e tudo dirige no espaço visível, e que, de algum modo, é causa do que ele e seus companheiros estavam habituados a distinguir”[v]. Assim, ele atingiria a emancipação das trevas. Ao longo da inusitada experiência, o prisioneiro se torna então liberto e, o liberto, sujeito esclarecido. Eis o clímax da caverna.
O modo no qual Platão descreve o estado do liberto esclarecido é, no mínimo, curioso. Tendo explorado o espaço a céu aberto e enxergado a fonte da claridade, o iluminado rememora a morada subterrânea e sente compaixão por seus antigos companheiros. Ele goza da contemplação e compadece-se dos que ficaram na caverna – compadece-se, devemos sublinhar, de uma forma um tanto egoísta, pois na sua nova lucidez ele cai em conta de quão ridículas são as conversas mantidas pelos outros no subsolo, quão escravizados e enganados eles se encontram. Nesse momento, o liberto pensa para si que preferiria, como Aquiles, sofrer qualquer outra sorte do que voltar a viver no fundo da caverna com seus antigos companheiros[vi].
Chegado esse ponto, não obstante, Sócrates propõe um novo giro para os acontecimentos. Ele convida agora seus interlocutores a imaginarem que o liberto se convence de abdicar da sua bem-aventurança, retornar à gruta e libertar os prisioneiros. Assim, o iluminado se transforma em redentor e volta às trevas.
Na sua viagem de regresso, diz Sócrates, o redentor padecerá dores paralelas às da ascensão: sua visão ficará ofuscada, agora por causa da penumbra, e lhe será necessário um segundo tempo de adaptação para habituar-se novamente ao claustro.
Chegado lá, acostumado por fim às meias-luzes e conhecedor não só da encenação mas dos sinistros bastidores do espetáculo, o redentor relatará sua experiência aos cativos: ele narrará a saída da caverna e dará notícia do mundo luminoso para além da gruta, revelando aos prisioneiros sua condição de escravos e instando-os a também eles se libertarem dos grilhões e embarcarem o quanto antes no caminho para fora.
O redentor não terá, no entanto, uma fortuna de glória, mas de martírio. Ao relatar sua aventura, os outros pensarão que ele perdeu o juízo e estragou os olhos na viagem para fora, caçoando dele e tachando-o de louco. O Sol que o redentor descreve, a água e sua superfície de espelho, a noite e o céu noturno, serão de fato absolutamente inconcebíveis para os prisioneiros.
A desconfiança dos cativos, não obstante, surgirá não apenas da ilusão que os hipnotiza, da ignorância na qual se encontram e da obstinação que provoca neles o feitiço de que padecem mas, e Platão faz questão de salientá-lo, da própria incapacidade do redentor de comunicar a sua descoberta. Platão diz, com efeito, que chegada a hora derradeira o redentor, cuja única ferramenta é a linguagem, ficaria sem palavras: o que é esse Sol de que ele fala? O que esse mundo do lado de fora da Caverna? Trata-se de universos incomensuráveis, e não há mensagem suficientemente persuasiva: nada do que diga o redentor convencerá os prisioneiros de deixar aquele mundo no qual, depois de tudo, eles habitam junto a uma fogueira eternamente acesa.
Se o redentor, perante a insuficiência do seu método, procurasse então libertar os prisioneiros à força e arrastá-los para cima, a violência, que, como se diz, não gera outra coisa que violência, precipitaria um desenlace previsível. Eis o anticlímax da Caverna e o limite da utopia: caso fosse possível aos prisioneiros fazer uso das mãos e aniquilar o redentor, eles assim procederiam[vii]. Chegamos, deste modo, ao epílogo da história.
[i] A tradução estândar da República em português pode ser encontrada aqui em PDF.
Para ver em inglês e no original grego, acesse aqui.
[ii] República VI 506 et Seq.
[iii] Rep. VII 514b
[iv] Rep. VII 516a-b.
[v] Rep. VII, 516b et Seq.
[vi]Rep. VII 515d-516d
[vii]Rep. VII 517a
3 thoughts on “A CAVERNA DE PLATÃO (I)”
OI Natália, belíssimo texto. Já havia tido a oportunidade de ler "A República". Sou fã deste livro. Mas você me apresentou alguns novos pontos de vista muito interessantes. Obrigado!
Obrigada Alessandro! Veja o novo post sobre a caverna aqui.