FILOSOFIA com CINEMA

FILOSOFIA com CINEMA

O texto que segue foi extraído do vídeo-ensaio de mesmo nome disponível na íntegra no final do post. Ambos são da autoria de Rafael Fernandes, doutorando em Filosofia na Unicamp e foram apresentados no I Encontro de Pós-Graduação em Filosofia dessa casa, em Outubro de 2017.

A dupla realização de Fernandes explora a terra média onde o suporte audiovisual, potencializado pela mídia de massa e as recentes, porém já consolidadas, tecnologias da informação se encontram e se combinam seja com o livre exercício do pensamento crítico, seja com as motivações dogmáticas e ideológicas que o cercam e contaminam. Mais precisamente, o autor traz o tópico da simbiose entre Cinema e Filosofia, levantando a questão do poder da palavra, da imagem e da conjunção de palavra e imagem, assim como do potencial, dos riscos e desafios suscitados por tal superposição de linguagens. Lançando um olhar lúcido sobre a época contemporânea, Fernandes reflete sobre a essência mesma da Filosofia de um modo oportuno e perspicaz, organizando o ensaio em 7 momentos diferentes, cada um dos quais indica exemplos de material audiovisual que ilustram a polêmica.

Trançando, por fim, uma trama complexa, e sob a clara inspiração de Boris Groys, o experimento de Fernandes nos interpela enquanto filósofos e de modo mais imediato e direto como simples espectadores, submergindo-nos imediata e completamente nos desafios relacionados à experiência, o ensino, o exercício e a difusão da Filosofia no vertiginoso horizonte do século XXI.

 

Filosofia com Cinema

por Rafael Fernandes 

[1] Sonhando com as aulas de filosofia

Já se passaram quase 100 anos desde a publicação de “Cinema contra Cinema”, um estudo de Joaquim Canuto sobre os aspectos práticos e teóricos da utilização do cinema em sala de aula, acrescido de um projeto-piloto entregue à então Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo que nunca saiu da gaveta. A ideia do cinema curar-se de si mesmo talvez soe dicotômica demais para nosso ouvido moderno, como se houvesse um cinema infesto e um outro higiênico. Entretanto, a ideia do cinema contrapor-se a si mesmo parece conservar certa vitalidade, merecendo ser revisitada.

Atualmente há um enorme repertório de filmes facilmente acessível, assim como a possibilidade de editar o áudio e o vídeo deles, criando um cinema que se contrapõe a si mesmo por circular clandestinamente, por permitir edições e re-edições de si, por se produzir amadoramente em casa ou em pequenos estúdios, por se exibir em contextos diferentes da inicialmente pensada sala comercial de cinema.

A questão do cinema em sala de aula aparece invertida no premiado filme “Os filósofos” (também conhecido como “After the Dark”, lançado no Brasil como “Jogos do Apocalipse”): em vez de se pensar a inclusão do cinema ao currículo de filosofia (segundo textos e temas canônicos nessa disciplina), transforma-se a aula de filosofia numa grande laboratório cinematográfico. O cinema é utilizado para produzir experimentos de pensamento e imaginação, re-criando muitas das situações sociais críticas que vivemos hoje com o multiculturalismo, a cidadania e a democracia.

A intenção é claramente refletir sobre o estudo e ensino de filosofia em tempos de cinema: como animar o estudo e ensino de filosofia a partir de produções cinematográficas, e vice-versa, como reforçar o potencial criador do cinema com um pouco de aprendizado filosófico?

Preconizando a experiência em que estudantes e professores se envolvem como a base da aprendizagem, a assim chamada educação experiencial é sem dúvidas uma forte tendência entre nós, e aqui parece somar forças com o cinema. Se o estudo e ensino de filosofia se baseasse em experiências reais ou fictícias mais do que na leitura e discussão de textos filosóficos, poderiam as produções cinematográficas se tornarem a base de alguma aprendizagem? A questão em comum tanto de uma filosofia com cinema como de uma educação experiencial parece ser esta: como produzir uma filosofia que se mistura por assim dizer com a sociedade?

[2] A circulação da filosofia na cidade

Sócrates parece ter provado o sabor de uma tal filosofia; um sabor amargo, tendo sido condenado à morte por sua própria sociedade, o que lhe conferiu grande honra entre nós. A filosofia nunca foi tida como boa companhia, a não ser para uns poucos deleitantes dela; quando muito, ela é considerada um mal necessário. Essa, no entanto, não era a opinião do (seu) discípulo [de Sócrates,] Platão, que concedeu aos filósofos o lugar de guardiões da cidade ideal. De que modo a filosofia pode e deve se misturar com (as questões d)a sociedade? Esta parece ser uma questão primogênita, pelo menos recorrente em nossos debates.

Para começar, seria impossível semearmos filosofia sem uma devida preservação e transmissão do que foi e tem sido isto, a filosofia e sua história, ou seja, é preciso conhecer a história da filosofia. Aqui o cinema tem se mostrado um querido aliado, agradando a imaginação com pequenas sínteses de complexas e minuciosas hipóteses historiográficas. Contudo, se as imagens do cinema são surpreendentemente enxutas, a literatura encontra-se hoje mais extensa e diversificada do que o cinema: mais vale ler as história dos filósofos do que assisti-los nos clássicos filmes de Rossellini. Por mais perfeita que seja a trama do cineasta, ela está longe de dar conta da experiência que se tem com a leitura dos Diálogos platônicos.

Ainda não se descobriu uma forma de experimentar os temas, problemas, teorias e conceitos do filósofo tal como ele realmente os viveu. A esse respeito, o melhor que podemos fazer é pesquisar a obra a partir de fontes as mais diretas possíveis ou, como costumamos fazer em filosofia, a partir das edições críticas e daquelas preparadas pelos próprios autores (quando elas existirem). Não obstante, há coisas que só o cinema poderá nos mostrar.

[3] Novas formas de se registrar a filosofia

Sem nunca ter capturado a imagem do filósofo em sua atividade, passamos para o registro fotográfico e audiovisual dos seus gestos mais reais. Imagens de filósofos circulam entre nós desde há muito tempo por meio do retrato pintado e do busto esculpido, mas com o cinema elas parecem ter ganhado uma segunda vida. Esta é a advertência de Deleuze para seu “Abecedário”: “aquelas imagens são um arquivo morto e não o representam; como os espíritos que nos falam nas sessões de mesa girante, elas são necessariamente rasas e pouco interligadas e sumárias; talvez sirvam somente para chamar seguidores.”

A respeito desse estranho poder de encanto que emana do cinema, diz-se ainda que essa nova técnica de reproduzir e capturar imagens em movimento seria a mais perversa das artes, porque não nos dá o que desejamos, em vez disso, nos ensina o que desejar. Entretanto, o desengano do cinema como suporte para a filosofia parece ter sido completamente esquecido. Assistimos hoje como o cinema serviu de conversor da filosofia em formação de opinião.

Desvincula-se a filosofia do estudo e ensino de uma obra filosófica, ligando-a aos anseios da opinião pública. O conhecimento direto da obra é contraposto à interpretação de determinadas histórias de vida, a situações cotidianas singulares e comuns. O único de texto que resta são as datas de nascimento e morte dos filósofos sobre um fundo de palavras-chave; uma proto-versão dos painéis, slides e infográficos tão em voga no universo escolar hoje. A filosofia não mais se encontra sob jurisdição dos filósofos e demais pesquisadores universitários.

[4] A tele-visão

O assalto desses filósofos e filósofas da TV de fato não faz oposição nenhuma às instituições de ensino superior. Porque não vêm para lhes roubar o lugar, pelo contrário, acabam servindo aos próprios professores e estudantes de apoio didático. Ainda que alguns setores da sociedade reivindiquem para si a formação de opinião, isto realmente decorreria das nossas formas sociais: ora, as variações destas seriam monitoradas de muito perto, nem se romperia com o controle delas sem uma boa briga.

Não seria próprio da filosofia formar opiniões: todas as pessoas, sejam ou façam o que for, tanto quanto um professor de filosofia, são potenciais formadoras de opinião segundo as ideias do grupo, setor ou classe às quais se identificam. Muito menos deveria a filosofia reduzir-se à formação de opinião, não tanto quanto questionar opiniões e problematizá-las. Apesar das contradições, acredita-se na figura do filósofo como um poderoso formador de opinião.

Quanto à instituição escolar no geral, apesar de ter se alastrado desde o começo do século XIX, não teve tempo suficiente para mostrar a que veio, apenas que é um sistema capaz de absorver e gerir imensas quantias de capital, e um filão de mercado nos termos das parcerias público-privadas, provavelmente compondo “produtos financeiros complexos”. Mas a formação para a cidadania ficará comprometida quando faltar o reforço da opinião: eis aqui uma das coisas que nem um número de identificação, nem uma mala de dinheiro podem produzir.

Reforçam-se as opiniões hoje pela circulação de imagens, de imagens revestindo nossas formas sociais: o império sobre as imagens que circulam institui uma ideologia de modo mais eficiente do que qualquer sistema escolar (inclusive disparando com suas imagens imperativas no interior das escolas). Poderíamos supor a seguinte lei regulando a circulação de imagens e opiniões: reproduzir e ser reproduzível de modo suficientemente rápido e efetivo; a circulação das imagens movimentaria o giro das opiniões, que então passariam a circular segundo essa mesma lei.

[5] Náufrago em alto mar

Temas filosóficos constituem um enorme repertório de ideias para o cinema, inclusive para o cinema comercial. É curioso esse apego a uma ideia tão velha e surrada como a filosofia. Talvez a sua estima de autoridade derive da mesma causa que a curiosidade de seus temas. Em posterior reflexão, porém, percebo que estes talvez já não sejam mesmo aqueles temas filosóficos, e sim uma espécie de duplo, de “sofismo”. São temas que interessam somente na medida em que fazem audiência; eles pertencem à mídia de massa, e à mídia de massa só interessa a publicidade (um X número de cliques, ouvintes ou telespectadores).

Alimentaríamos falsas expectativas, e estaríamos sendo negligentemente ingênuos ao esperar qualquer grandeza de ideias para além da sala de cinema, do sofá de TV e da cadeira de computador: depois que se desligam as telas, não há nada para alastrar. O estudo e ensino de filosofia ainda não pode, e talvez nunca poderá, sustentar-se pelo cinema, mas eventualmente o cinema também será um importante aliado para o aprendizado filosófico.

A filosofia, da sua parte, também tem se interessado pelo cinema para produzir e fazer passar suas questões, porque o cinema lhe oferece igualmente um repertório de ideias, além de uma técnica. Tal repertório de ideias poderia servir como fator de sensibilização para questões filosóficas; e a técnica do cinema poderia ser empregada para filmar a filosofia.

[6] O olho biônico

Quanto ao potencial de sensibilização do cinema, talvez isto não seja tão polêmico entre nós: ele pode não encontrar lastro após sua exibição, mas atira centelhas de luz enquanto passa. O cinema parece sensibilizar tanto por causa das sensações que desperta, como por sua rápida associação de ideias. É bem provável que o cinema possa dar à filosofia pontos de apoio segundo os quais se faz amplas sondagens temáticas nos mais diversos assuntos humanos num relativamente curto espaço de tempo. Ainda que os sobrevoos do cinema não nos levem a nenhum pensar filosoficamamente, ao menos são um fascinante passa-tempo que auxilia nisso.

No que diz respeito a utilizar o cinema como forma de registro da filosofia, isto sim parece ser uma questão para nós. O cinema-ensaio e outros experimentos audiovisuais têm buscado um cinema que pense: que pense não pela representação de um pensamento, mas a partir de si mesmo, a partir do próprio movimento das imagens. Junta-se a elas aquela voz de narrador, soando como que do além: o efeito nem sempre é garantido, a intenção é expandir o significado das imagens, em vez de reafirmá-lo ou delimitá-lo.

Parece que é isto que o filósofo Boris Groys tenta fazer ao exibir o seu “Thinking in loop” (numa tradução livre, “Em voltas com o pensamento”). Trata-se de três vídeo-ensaios sobre iconoclasmo, rito e imortalidade, com duração aproximada de 20 minutos cada, somando no total pouco mais de 1 hora: eles podem ser assistidos separadamente, mas são destinados a uma exibição cíclica. Na brochura do DVD, lemos as seguintes palavras:

Os vídeos apresentados nesta exibição foram produzidos entre 2002 e 2007. Cada vídeo combina um texto teórico (escrito e lido pelo autor) e uma sequência de filmes (de fragmentos de diferentes filmes e seus documentos). À primeira vista, esses vídeos lembram o espectador dos vídeos e curtas-metragens que são utilizados hoje em dia para transmitir conhecimento, comentar as notícias, difundir propaganda religiosa e ideológica, ou serem utilizados no contexto educacional.

Pode-se afirmar que em nossa época, o vídeo (e não o texto) tornou-se o carro-chefe na transmissão de qualquer tipo de informação. Não por acaso os movimentos religiosos radicais contemporâneos utilizam o vídeo (e não o texto) para apresentar seus programas e ideias. Os vídeos que passam na CNN e em outros canais comparáveis são a principal fonte de informação política para as grandes plateias. Os vídeos da MTV são centrais para o desenvolvimento da cultura pop contemporânea. E o YouTube fez do vídeo a mídia preferida para qualquer um que queira comunicar certas ideias ou imagens para o mundo inteiro.

Os três vídeos passados na exibição parecem se encaixar nesse padrão porque dão a impressão de que o texto tem uma função mais proeminente do que a imagem. Contudo, a sequência de filmes utilizada nesses vídeos não tem nenhuma relação direta com a leitura do texto. Existem associações e paralelos entre texto e imagem, mas também existem contrastes e rupturas.

A imagem aqui não é utilizada como ilustração que tem por meta fazer o texto mais compreensível, fazer certas posições teóricas mais evidentes. Em vez disso, os vídeos produzem um certo intervalo entre o que escutamos e o que vemos – tornam até especialmente difícil para o espectador seguir o texto e a imagem simultaneamente. Desse jeito, os vídeos apresentados problematizam a relação entre texto e imagem que frequentemente parece estar garantida na montagem do material do vídeo.

Na verdade, esses vídeos não transmitem nenhuma informação – em vez disso, refletem as dificuldades de uma tal transmissão. Essas dificuldades são o principal tópico de todos os três textos – e essas dificuldades refletem a si mesmas na forma dos próprios vídeos. Texto e imagem correspondem um ao outro, mas continuam sendo heterogêneos.

[7] Jogo do abre-fecha

De volta à nossa questão sobre uma filosofia audiovisual, expandir o significado das imagens com textos, e mesmo problematizar o movimento delas a partir do intervalo entre imagem e texto parece ser uma ideia bastante animadora, no sentido da busca por novas linguagens filosóficas.

Para nós, bastaria termos tocado a discussão sobre o estudo e ensino de filosofia hoje, considerando ao mesmo tempo a problemática questão da sua conjunção com o cinema. Enquanto o debate se prolonga com maior rigor e precisão em outros espaços, nos entretêm as mesclas de filosofias maiores e menores que parecem constituir um momento decisivo no aprendizado filosófico.

PARA VER NO VIMEO ACESSE AQUI

 

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