Precisamos falar de gênero e sexualidade na escola? (Parte 5)

Uma das questões que emergem quando abordamos as possibilidades de falar deste tema em sala de aula refere-se ao suporte legal nos documentos oficiais curriculares brasileiros. No último post falamos sobre alguns projetos de lei tentando bloquear ou minimizar a importância disso, numa busca de restringir o tema ao âmbito familiar… E aí? Podemos falar de gênero e sexualidade na escola?

Iniciemos com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira – Lei n. 9394/1996. Segundo o Artigo 3º o ensino deve ser ministrado com base em vários princípios. Destaco o Inciso IV: “respeito à liberdade e o apreço à tolerância”. Aqui retomamos a necessidade de conhecer e compreender diferentes modos de ser e viver em nossa sociedade. E compreender tanto em aspectos biológicos como sociais e culturais. Tal feito é a base para que consigamos não só tolerar a existência desta diferença, mas respeitar a individualidade das pessoas, em todos seus aspectos.

Este inciso é de fundamental importância, uma vez que dá suporte ao ideal de “cidadania”, que está presente no Artigo 2º da mesma lei. Neste artigo consta que:

“A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Vale ressaltar o significado da palavra Cidadania, no dicionário Caldas Aulete:

  1. Condição de cidadão, com seus direitos e obrigações (cidadania brasileira).
  2. O conjunto dos cidadãos.
  3. Conjunto dos direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos, ou dos mecanismos para o estabelecimento e garantia desses direitos.
  4. P.ext. Exercício consciente da condição de cidadão; atuação na sociedade, em defesa da ampliação e fortalecimento da cidadania.

Ora, educar sobre ser cidadão não é retirar o conteúdo formal estabelecido em documentos oficiais para “falar sobre direitos e deveres” pura e simplesmente. Ensinar a ser cidadão é compreender a sociedade que vivemos. Compreender também os conhecimentos científicos que são construídos em nossa cultura para melhor convivermos. Que melhores mecanismos para estabelecer e garantir direitos – como o respeito à liberdade e o apreço à tolerância – do que perceber que socialmente, mesmo sendo diferentes uns dos outros, temos os mesmos direitos de viver nessa sociedade? Que mecanismos e ferramentas a escola poderia fornecer para nossos alunos do que o conhecimento adquirido e produzido na história da humanidade?

Este é um dos pontos centrais dos conhecimentos ditos formais de cada disciplina: eles integram um processo que é o da formação do cidadão. E este conhecimento não pode ser tratado como simples listagem de conteúdos desconexos. Ao contrário: o conhecimento é ferramenta de análise para a sociedade! De conhecimento de si mesmo (seu corpo, seu funcionamento), do ambiente que nos cerca, da cultura que vivemos.

Também há outro documento que tem sido discutido há anos e será o suporte para todas as organizações curriculares brasileiras: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Na descrição da área Ciências da Natureza (página 325), consta que:

“Nos anos iniciais, pretende-se que, em continuidade às abordagens na Educação Infantil, as crianças ampliem os seus conhecimentos e apreço pelo seu corpo, identifiquem os cuidados necessários para a manutenção da saúde e integridade do organismo e desenvolvam atitudes de respeito e acolhimento pelas diferenças individuais, tanto no que diz respeito à diversidade étnico-cultural quanto em relação à inclusão de alunos da educação especial.

Nos anos finais, são abordados também temas relacionados à reprodução e à sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância social nessa faixa etária, assim como são relevantes, também, o conhecimento das condições de saúde, do saneamento básico, da qualidade do ar e das condições nutricionais da população brasileira”.

Neste trecho, há vários dos elementos que temos apontado aqui como necessários ao acolhimento da diferença. E, também, nos dá base legal para trabalhar tanto com o tema corpo quanto sexualidade dentro do campo científico… Mas, e as relações com a sociedade? Na disciplina de Ciências da Natureza, pode?

Farei uma breve explicação da estrutura da BNCC, antes de seguir na questão específica do post. Os conteúdos do documento estão organizados em disciplinas. Estas são distribuídas ao longo dos anos por “Unidades Temáticas”, cada uma dividida em “Objetos de Conhecimento”. Estes objetos de conhecimento têm “Habilidades”* que devem ser alcançadas pelos estudantes.

[cópia da BNCC, página 31]
É no oitavo ano, que o tema sexualidade aparece na disciplina de Ciências da Natureza. Na Unidade Temática “Vida e Evolução” há dois objetos de conhecimento: mecanismos reprodutivos e sexualidade (páginas 346 e 347). Dentre as habilidades constam:

(EF08CI07) Comparar diferentes processos reprodutivos em plantas e animais em relação aos mecanismos adaptativos e evolutivos.

(EF08CI08) Analisar e explicar as transformações que ocorrem na puberdade considerando a atuação dos hormônios sexuais e do sistema nervoso.

(EF08CI09) Comparar o modo de ação e a eficácia dos diversos métodos contraceptivos e justificar a necessidade de compartilhar a responsabilidade na escolha e na utilização do método mais adequado à prevenção da gravidez precoce e indesejada e de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST).

(EF08CI10) Identificar os principais sintomas, modos de transmissão e tratamento de algumas DST (com ênfase na AIDS), e discutir estratégias e métodos de prevenção.

As habilidades acima nos levam a grande parte do que já foi discutido anteriormente. Em especial destaco (sem me alongar) compreensão do corpo, sua constituição, modificações, além de saúde sexual e reprodutiva.

Mas gostaríamos de destacar a última habilidade, deste objeto de conhecimento:

(EF08CI11) Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética).

Lembrando que habilidade é algo que o aluno deve adquirir com o processo de ensino. Ou seja: ao final do oitavo ano, nossos estudantes devem ter condições de selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana.

Dentro deste contexto, há no próprio documento oficial que norteia o que deve constar no currículo escolar, o suporte para que a sexualidade seja compreendida a partir da diversidade. Incluir as dimensões socioculturais, afetivas e éticas, junto às biológicas, é apresentar o quão diversos somos, em termos de espécie. Também é nossa condição de assegurar que através do conhecimento possamos não só evidenciar estas dimensões, mas aprender a conviver com elas e respeitá-las!

Claro que existem inúmeras críticas possíveis à BNCC – incluo aqui o fato de a sexualidade, mesmo com a habilidade que aponta suas múltiplas dimensões – estar no conteúdo da Ciências da Natureza. No entanto, em termos de suporte legal (que é uma preocupação constante quando trabalho o tema na universidade): sim, temos!**

Apenas para finalizar, no conteúdo de História, 9º ano, consta a unidade temática “Modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946”. Nesta unidade há uma habilidade que também se relaciona ao tema – embora tenha um conjunto de outras questões. Nesta Unidade Temática, consta como habilidade (página 431):

“(EF09HI26) Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas”.

Embora não se centralizando apenas nas questões de gênero e sexualidade, também nesta disciplina nos é dada a oportunidade de trabalhar estes conteúdos, pelo aspecto do respeito e tolerância. E aqui retomo os artigos citados no início do post da LDB e da compreensão de cidadania. E isto sendo pensado como exercício diário do que é a tarefa da escola: usar conhecimento como ferramenta para viver em sociedade.

*Segundo a própria BNCC, as “habilidades expressam as aprendizagens essenciais que devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos escolares” (Página 29).

**Teremos um post específico para falar da BNCC e algumas análises deste documento, em breve. Aguarde 🙂

P.S.: Destaco a pouca bibliografia indicada neste post, especificamente sobre a BNCC em sua última versão – ou mesmo sobre toda a trajetória do documento – e o tema gênero e sexualidade, em função do quão recente é essa questão em nosso país… Há muito sendo debatido, mas pouco material publicado academicamente ainda.

Para saber mais:

BRASIL. 1996. Lei 9.394 de 20 de Dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. Brasília. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 16/02/2018.

BRASIL. MEC. SEB. 2017. Base Nacional Comum Curricular. 2017. Brasília: MEC. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf. Acesso em: 16/02/2018.

NASCIMENTO, M.L.; CHIARADIA, C.F. 2017. A retirada da orientação sexual do currículo escolar: regulamentações da vida. Sisyphus, Journal Education, vol.5, n.1, p.101-116. Disponível em: http://revistas.rcaap.pt/sisyphus/article/view/10453/8891. Acesso em 16/02/2018.

Posts anteriores:

Precisamos falar de Gênero e Sexualidade na escola? (Parte 1)

Precisamos falar de Gênero e Sexualidade na escola? (Parte 2)

Precisamos falar de Gênero e Sexualidade na escola? (Parte 3)

Precisamos falar de Gênero e Sexualidade na escola? (Parte 4)

Sobre Ana Arnt 56 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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