Quem é ser humano? Racismo e violência cotidiana

Sobre esta semana…

Não é recente na história da humanidade a busca por um corpo ideal, ou a idealização de ser humano perfeito. Nesta semana vimos a fixação por uma constituição supostamente perfeita, rabiscada em mesas, computadores e banheiros da UNICAMP. Com dizeres agressivos e ameaçadores (“poder branco”; “vai ter chacina” e “#columbine” estavam entre os escritos), tudo aponta para algo maior do que um vandalismo sem sentido. No mínimo, ódio focado em destituir seres humanos de seu patamar de validade como tais. E, pior, inserindo um grupo específico como algo maior. E o que isto tem a ver com ciência?

Senta que lá vem textão…

Primeiramente, sempre bom lembrar que quando afirmo que a prática do ideal humano não é recente, não apresento nenhuma grande novidade como dado histórico. Tampouco a prática de matar pessoas em função desta busca é nova. É sabido que na Grécia e Roma Antigas selecionavam recém nascidos por aspectos físicos de estética e saúde. Não se almejava, naquelas culturas e em tantas outras em que a prática de infanticídio era/é comum, o investimento em sujeitos fracos ou feios. A incumbência de criar crianças que não teriam a beleza que nos aproxima do Olimpo, a força dos deuses ou que nos faz vencer a guerra era pesada demais para se manter na sociedade. Assim, o infanticídio não era uma prática, na Antiguidade, tida como assassinato. Mas, sim, quesito básico para se manter a civilização Grega e Romana, tal qual havia sido idealizada.

No entanto, há outros momentos em nossa história recente que não apenas organizou práticas de infanticídio, como de seleção de nascimentos, arranjo de casamentos e, também, assassinatos em massa. Isto tudo, diga-se de passagem, com anuência da nação e como uma política pública de Estado. Mais ainda: tendo como fundamento teorias científicas (mesmo que tenham sido invalidadas posteriormente…).

Um pouco de história…

A partir do final do século XVII, mas principalmente nos dois séculos seguintes, temos um acontecimento que parece novo para o mundo ocidental que é a emergência da população. Até meados do século XVII ainda víamos a constituição dos estados muito próximas da noção feudal. Desse modo, o povo que morava na terra não era tido como uma população. Mas, sim, massa de gente que fazia parte da propriedade daquele feudo ou estado.

Com a constituição da população, nos séculos seguintes, vemos aparecer um conjunto de mecanismos, estratégias para controlá-la e mantê-la organizada. Ou seja, o conjunto de pessoas não é mais propriedade de um estado. Mas é sua razão de ser. O estado só consegue se estabelecer como nação se existe um povo que se sente parte. Isto é, sente-se conjunto que faz e produz para um bem comum (incluindo a si mesmo) e não mais para um rei, apenas. A noção de população só é possível de se ter a partir do século XIX e está relacionada a uma série de campos científicos emergentes. Quais? Alguns como a estatística e as ciências atuariais, os estudos demográficos, antropológicos e sociológicos...

E a biologia?

A biologia também é decorrente desta época. Na biologia duas grandes teorias sobressaem-se às demais, no que diz respeito aos seres vivos, especificamente. Mas também a um conjunto de indivíduos que vivem em conjunto. A primeira é a ideia defendida por Jean-Baptiste Lamarck, em seu livro Philosophie Zoologique (publicado originalmente em 1809). Lamarck dizia os seres vivos buscavam se adaptar ao ambiente, aumentando ou diminuindo o uso dos órgãos e estruturas de seus organismos. Além disso, as características adquiridas ao longo da vida poderiam ser passadas aos descendentes, caso fossem comuns a ambos os progenitores. Nessa perspectiva evolutiva, a modificação partia dos indivíduos, para melhor viver em seu ambiente.

Essas discussões terão impacto especial na França e farão parte, quando estendidas aos seres humanos, do movimento higienista. Este toma como medida preventiva para a degenerescência da espécie humana a educação e a modificação dos hábitos sociais. Dessa forma, o movimento higienista articula-se com as noções correntes de Saúde Pública e Medicina Sanitarista, que estão emergindo como grandes áreas da Medicina, entre o fim do século XVIII e início do século XIX. Assim, trata-se de uma tecnologia que procura controlar e modificar a probabilidade daqueles eventos que, individualmente são impossíveis de serem mensurados, mas populacionalmente são calculáveis, como nascimentos, risco de mortes, acidentes, adoecimentos, etc.

Para Darwin, que publicou 50 anos depois A origem das espécies, defendia que o ambiente seleciona os mais aptos a partir de uma diversidade intrínseca às espécies. Assim, os seres vivos de um grupopossuem características diversas e essas podem ser “selecionadas” pelo ambiente. Tal seleção natural ocorre através da sobrevivência e reprodução dos seres (passando, assim, suas características adiante). Ao contrário da explicação lamarckista, os seres vivos não têm condições de mudar “por si”, conforme as situações apresentadas pelo meio externo. Mas são por ele selecionados, os melhores, mais aptos, sobrevivem e passam à sua prole seus caracteres. Ou seja, há um novo modo de olhar para os organismos, como possuidores de fatores selecionáveis ou deletérios, passíveis de degeneração.

É a partir da noção da seleção natural e da sobrevivência do melhor que se possibilitou fundamentar a Eugenia, proposta por Francis Galton, em seu livro Hereditary Genius, em 1869. Neste livro, Galton apresenta um estudo feito na população Inglesa, em que defende que o talento é uma característica inata. Em seu livro posterior, Inquires into Human Faculty and Development, o pesquisador defende que, bem como o talento, a doença mental, o crime e a marginalidade também têm relação hereditária. Galton vai dizer que pretendia achar uma palavra que expressasse a ciência do melhoramento da linhagem, e afirma que esta não se restringe à união entre pessoas e à procriação, mas conhecer

“todas as influências que tendem, em qualquer grau, por mais remoto que seja, dar às raças, ou linhagens sanguíneas mais convenientes uma melhor possibilidade de prevalecer rapidamente sobre os menos convenientes” a fim de torná-las mais seguras e efetivas (Galton citado por Diwan, 2003, p. 41-42).

Eugenia como ideal da humanidade

Com tais premissas, a Eugenia se estabelece como ciência, ao final do século XIX, unindo forças em diversos campos científicos. Além disso, busca modos de ação intervencionistas, preocupando-se em não degenerar a espécie humana. Galton sugere que se estude as linhagens familiares. Dessa forma, casamentos poderiam ser arranjados, a fim de impedir junção de características indesejáveis. Segundo ele, aqueles que portassem fatores degenerados deveriam, “pelo bem de todos”, não ter filhos. Em situações mais drásticas deveriam ser esterilizados. Ora! Para fazer viver com a qualidade almejada, era necessário fazer morrer. Bem como, permitir e incentivar a morte daqueles que não se enquadram neste novo projeto social.

Nós podemos inferir que, certamente, a sociedade que apoiava as idéias de Galton, como a recém fundada Sociedade de Educação Eugenista (1907) em Londres e a Sociedade de Eugenia (1903) nos Estados Unidos, e a Sociedade Brasileira de Eugenia (1918), não via nos pobres, dementes, criminosos, feios e não-brancos o futuro das nações. Dessa forma, ao atingir seu ápice, o movimento eugênico torna-se legitimação do assassinato dos “degenerados” pelo bem comum e pela não degenerescência da humanidade, especialmente nas políticas e ações nazistas. É claro que a eugenia é completamente desqualificado após os eventos da Segunda Guerra. A Eugenia logo perde o status de ciência, é banida completamente em qualquer procedimento e estudo populacional humano, ou projeto político de nação.

E agora? Acabou a eugenia?

Não temos mais seleção ou planejamento para a espécie humana? Todos aqueles que nascem, nos dias de hoje, são aceitos e queridos socialmente?

O que apontei no texto não foi, de modo algum, uma desqualificação das teorias evolucionistas. Todavia, quis apontar como, a partir de uma teoria defendida em um momento histórico, fundamentou-se o que se costuma chamar de racismo de estado. Ou seja, uma fundamentação para segregar, de acordo com alguns grupos sociais específicos, determinadas pessoas, umas em relação a outras. O que penso ser produtivo para essa discussão é como a raça se torna alvo de controle e vigilância e o racismo condição para que se possa exercer o direito de matar. O foco de ação, nesse sentido, seria extirpar da população todos aqueles que trazem em si perigos à nossa condição como espécie humana.

Os acontecimentos recentes nos espaços da UNICAMP mostram que estamos longe de percebermos a diferença entre nós como não-problemáticas. Assim, evocar o poder branco, com imagens de suástica associado aos dizeres, incluir a ameaça de “vai ter chacina” é, claramente, uma mensagem. De busca de supremacia, de busca de legitimar-se como acima de quem “nunca deveria ter ocupado aquele espaço”. É ameaça física, se valendo de atributos que não justificam, em nenhuma área científica, hierarquias ou soberanias. É, também, apoiar-se em ideais biológicos irreais, para legitimar a vontade de violência.

No entanto, não pode ser tratado como brincadeira ou leviandade. É crime – e sem qualquer pudor de usar grandes discursos que já extirparam milhões de vida e de possibilidade de gerar vida. Assim, ver o uso do discurso eugênico em paredes de uma instância de produção de conhecimento como uma universidade pública é, infelizmente, marca de que ainda se pensa que há lugares em que somente um grupo seleto de pessoas deveria habitar (e teria direito a isso). É ver que há quem se ofenda com a existência, sim, de negros e indígenas ocupando este espaço. E isto em meio às históricas (e legítimas!) batalhas por cotas raciais e étnicas que a UNICAMP vivenciado.

Se temos batalhado para resgatar dívidas sociais, temos também batalhado para resistir à nossa horrenda história de ser fundamento científico para racismo e superioridade de uns sobre outros – e junto com isso, justificativa de mortes, com anuência de políticas cruéis e olhos vendados da justiça.

No post de hoje, não há conclusão. Nada além da vontade de se narrar inconforme com a situação. E seguir batalhando para que o discurso científico não perpetue o horror, nem legitime violência.

Por fim (eu disse que seria longo…): sigamos, ao lado dos que resistem, bravamente.

Para contextualizar a semana

Biblioteca da Unicamp é alvo de pichações racistas e ameaças

Nota de Repúdio da UNICAMP

Para saber mais

DIWAN, P. (2007) Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto.

FOUCAULT, M (2002) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.

SCHWARCZ, L.M. (2003). O espetáculo da Miscigenação. In: Domingues, Heloísa M. Bertol; Sá, Magali Romero &Glick, Thomas (org.) A recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003 (Coleção História e Saúde), p.165-180.

SENRA, Nelson. (2005). O Saber e o Poder das estatísticas: uma história das relações dos esteticistas com os Estados Nacionais e com as Ciências. Rio de Janeiro: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv83121.pdf

Para escutar junto com o texto:

Ana Tijoux, Schock

Mulamba, Mulamba.

Victoria Santa Cruz, Gritaram-me negra

 

Sobre Ana Arnt 56 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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