“Só dá aulas”: o que faz (ou deveria fazer) um professor de universidade pública?

Jelleke Vanooteghem https://unsplash.com/@ilumire

“Só dá aulas”

Já trabalhei com o Ensino Médio – eu amava “dar aulas” para essa galera no meu querido Sarmento Leite e me orgulho demais dos colegas que, mesmo com a desvalorização salarial imposta na última década, mantém bons índices de desempenho com os estudantes[1]. E, atualmente, estou como professora universitária há 13 anos. Essa pergunta que está no título deste post eu escuto desde o início de minha carreira profissional como professora há 20 anos! Mas ainda hoje? Sério?

Ainda mais em tempos pandêmicos, com as universidades “”paradas”” (muitas aspas aqui), essa pergunta volta a ressoar por todos os lados e resolvi explicar o que faz um professor de universidade pública.

Não fazem nada?

Para começar, segundo a lei que rege o funcionalismo público civil (lei 8112/1990), este professor é um funcionário público que, na sua origem, portanto, deve atender ao serviço público, ou seja, seu trabalho serve a toda comunidade e à sociedade como um todo. Para ser servidor, precisa ser aprovado em um concurso público, aberto a todos que se encaixam nos requisitos da vaga.

Neste concurso, o candidato deve mostrar que sabe o conteúdo da vaga à qual está concorrendo. Isto é, deve mostrar que sabe “dar uma aula” e deve mostrar que sabe organizar um plano de trabalho no qual constem projetos de pesquisa, de extensão e, de aula, claro. Daí, já tiramos as três funções que, tanto o professor quanto a universidade pública têm (a propósito, a universidade também não é só um local de “ter aulas”), que são: ensino, pesquisa e extensão!

Aqui cabe um esclarecimento importante em relação a carreira de professores no Ensino Superior. Segundo a lei que rege o magistério público federal (lei 12772/2012) a carreira de professor tem classes conforme o nível estudo (graduado, Mestre ou Doutor) e pode ser D.E. (Dedicação Exclusiva) ou não. Alguns tem regime parcial de 40h ou 20h semanais.

A maioria dos professores de Ensino Superior são doutores (58% nas universidades brasileiras em 2018)[2] e tem D.E. (71% nas universidades brasileiras em 2018)[3]. Isso quer dizer que eles se dedicam somente à universidade e ao trabalho que nela desenvolvem, considerando o tripé de ensino, pesquisa e extensão conforme previsto no artigo 207 da Constituição Federal (CF) de 1988. Não podem ter outra renda, não podem trabalhar em outros lugares, não podem ter empresa ou receber remuneração para outra atividade fora da universidade de forma fixa (apenas para trabalhos pontuais – como consultorias ou cursos – e há um limite anual de renda “extra”). Isso somente é possível para aqueles que têm regime parcial.

Afinal, o que compõe esse tripé?[4]

  • ENSINO

Uma das funções da universidade é a formação de profissionais em áreas específicas. Isso é ENSINO. Aí está! Agora sim! É o “dar aulas”. Todo semestre, o professor universitário público, não importa o regime de trabalho que tem (D.E., 40 ou 20h) atende turmas de alunos nos cursos de graduação que atuam.

O tempo que ocupa para essa função é determinado pela universidade e pode variar dentro de seus órgãos internos. Isso chama-se autonomia universitária e é amparado no artigo 207 da CF e na Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (lei 9394/96).

Mas o “dar aulas” não é somente estar em sala de aula. Vejam que o conhecimento aumenta e se modifica muito ao longo do tempo e com isso, a necessidade do professor ter aulas atualizadas. Não adianta o professor dar a mesma aula desde o ano 2000 quando entrou na universidade, porque, com certeza, o conhecimento científico sobre sua temática de aula e as metodologias existentes para ENSINÁ-la se modificaram ao longo desse período.

Para manter a atualização do que ensina aos seus graduandos, e assim, formar bons profissionais, o professor estuda e prepara aulas toda semana. Ainda tem a tarefa semanal de avaliar a aprendizagem dos estudantes, isto é, elaborar, disponibilizar, ler, corrigir trabalhos e provas, estabelecendo notas para cada uma das turmas das disciplinas. Vamos dizer então, se ele “dá aulas” duas tardes por semana na graduação, outros dois turnos ele usa para preparar as aulas, estudar para elas e avaliar trabalhos dos estudantes. Aí se vão quatro turnos de trabalho no ENSINO.

  • PESQUISA

A segunda função do professor universitário público D.E. é a PESQUISA! E aqui, entra outro tanto de atividades. O que é fazer pesquisa hoje? [5]É atualização de saber da área específica que o professor trabalha, isto é, produção de conhecimento. As universidades públicas são responsáveis por 95% do conhecimento produzido no país[6]. Como ele faz isso? O professor, geralmente, se vincula a um curso de pós-graduação de sua área. Cada universidade tem muitos destes cursos em todas áreas nas quais formam profissionais na graduação.

Inserido na pós-graduação, o professor desenvolve pesquisas em diferentes espaços na universidade – um laboratório, uma sala multidisciplinar ou outro. Ali, o professor orienta os estudantes em pesquisas próprias, mas quase sempre vinculadas à temática e pesquisa central do professor. Existem professores que orientam cinco, sete ou 15 estudantes simultaneamente, que, depois de formados na graduação, se dedicam a desenvolver projetos para receber os títulos de Especialista, Mestrado e/ou Doutorado. Esses orientandos e o professor formam o que chamamos de grupos de pesquisa.

Fazer pesquisa, atualmente, também implica divulgar o conhecimento para a comunidade científica de cada área, o que significa escrever artigos científicos. E também implica buscar auxílio financeiro para que seus projetos sejam desenvolvidos, pois para fazer pesquisa, precisamos de livros, acesso bom à internet, equipamentos, materiais diversos, reagentes e outros recursos. E todos eles precisam de verba!

Na busca desses recursos, o professor precisa escrever projetos e submetê-los para avaliação de agências de fomento que abrem editais específicos para tal, sejam essas agências governamentais ou privadas. A pesquisa ainda inclui participar de comissões de avaliação de artigos científicos, de artigos para eventos, de comitês de avaliação de projetos de editais.

Ou seja, o trabalho com PESQUISA na universidade pública requer tempo para: reuniões do grupo de pesquisa e orientação dos alunos (um turno); trabalho no laboratório ou espaço de pesquisa (um turno); escrita de artigos científicos, de projetos e de relatórios de pesquisa (um turno); leitura e avaliação de artigos dos orientandos, bem como, de revistas científicas (mais outro turno)…

Ah, e claro que, na pós-graduação, o professor “dá aulas” também, nos cursos de Especialização, Mestrado e/ou Doutorado para os estudantes pós-graduandos. E para tal, como na graduação, ele também deve preparar e estudar, atualizando seu tema da aula. Aí temos, aproximadamente, mais quatro turnos de PESQUISA e mais um de ENSINO de novo!

  • EXTENSÃO

Por fim, a última função, mas não menos importante, de um professor docente universitário público é a EXTENSÃO!! Antes, comentei que a maior parte de produção do conhecimento se faz dentro das universidades públicas e que uma função da pesquisa é divulgar este conhecimento para comunidade científica. E quem não é desse grupinho da comunidade científica? Como fica sabendo do saber, ou dos produtos, ou das tecnologias que são produzidas na universidade?

Pelo trabalho de extensão, cujo nome revela sua função: é uma extensão da produção da universidade para a comunidade no entorno dela. Assim, mais uma vez, o professor, tem de escrever projetos de extensão e executá-lo com a ajuda de uma equipe – outros colegas ou estudantes. Esse trabalho pode ser de divulgação científica, de trabalho com as comunidades periféricas, com determinada porção da população, com uma determinada instituição que não a universidade, com prefeituras ou associações de bairro, em hospitais ou museus, por exemplo.

Há inúmeras possibilidades de extensão que envolvem, além da já citada divulgação de conhecimento, o retorno do investimento social na universidade para a população como um todo! Você sabia, por exemplo, que muitos dos museus, jardins botânicos ou espaços de cultura que você frequenta são mantidos pelas universidades públicas? Muitas delas mantêm também hospitais universitários públicos com recursos físicos, estruturais, de capital e humanos. Todos estes são espaços de extensão universitária com foco no atendimento direto ao público já mais consolidados historicamente!

Também lembro a vocês, aqueles movimentos de maio de 2019 do tipo “ciência na rua”, em prol de uma educação de qualidade. O objetivo desses eventos era mostrar todo o trabalho/pesquisa/conhecimento desenvolvido nas universidades para a comunidade, como um grande evento de EXTENSÃO!! Foi importante para muitos professores entenderem também qual sua função com essa atividade do tripé da universidade! Infelizmente, a extensão ainda é a “prima pobre” da universidade pública. Há, mesmo com um crescente, pouco investimento e poucos projetos de extensão. Mas é função do docente universitário. Digamos que aí vai outro turno de trabalho na EXTENSÃO!

No total…

Bom, voltando a contagem: são dois turnos, mais dois, mais um no ENSINO; quatro turnos semanais na PESQUISA e um turno na EXTENSÃO, somando 10 turnos de trabalho! É possível para o professor “jogar” estes turnos a cada semana conforme a necessidade. Isto é, estes dez turnos aqui variam de semana a semana conforme as demandas vão surgindo no trabalho! Exceto o tempo de dedicação às aulas na graduação, que é mais fixo, o professor pode se envolver mais na pesquisa ou na extensão de acordo com a característica individual ou de sua área. Mas todo tripé é sua função!!!

Um exemplo real

Vejamos meu exemplo (sou professora com Doutorado e sou D.E.): duas tardes de aulas na graduação na Biologia; dois turnos de preparo das aulas sobre Educação em Biologia.

Ainda, reunião com grupo de pesquisa PEmCie, estudos sobre meu tema de pesquisa “História e Filosofia da Ciência”, reuniões com cada um dos orientandos do grupo (um doutorando, duas mestrandas, dois bolsistas de iniciação científica, duas professoras), leitura dos artigos deles e organização de trabalhos dos orientandos e escrita de artigos e projeto de pesquisa (vai aí uns, sei lá, uns quantos turnos de trabalho, hehe).

Estou revitalizando meu projeto de extensão que incluía divulgação científica nas escolas e agora estamos focando nas tecnologias digitais para tal. Assim, como para muitos, meu ponto fraco também ainda é a extensão, que ainda ocupa menos tempo na minha semana!

Quanto deu aí? Muitos turnos, não é? Deu para “encher” uma semana de trabalho? Dá pra incluir até o sábado, muitas vezes! Ah, sim… E eu ainda trabalho com os estágios docentes nas escolas, então visitas periódicas a essas instituições parceiras estão, também, na minha rotina. Mas enfim, acho que expliquei que não servimos para “dar aulas”, e atingi meu objetivo aqui. Não acha?

Ahhhh, e não esqueçamos que muitos professores, exercem cargos de gestão (seria uma quarta função nesse tripé), assumindo, temporariamente, coordenações de curso de graduação, de pós-graduação, diretoria de seções nas pró-reitorias ou em departamentos e institutos; ou mesmo, gerenciando pró-reitorias e reitorias. Como são temporários, não coloquei esse trabalho administrativo na conta, mas posso afirmar, por experiência própria como coordenadora por 2,5 anos, que é um baita trabalho, cansativo e, muitas vezes, burocrático!

E tem mais, um professor D.E. participa de atividades temporárias na universidade como: comissão de graduação, de pós-graduação, de seleção de mestrado/de doutorado, bancas de avaliação de teses e dissertações, orientador de trabalho de conclusão de curso, comissões eleitorais, comissões de curso. Pode assumir gestão sindical ou comissão de organização de eventos. E ainda tem participação em eventos científicos e apresentação de trabalhos em congressos, participação em reuniões de todo e qualquer tipo, etc., etc., etc.

“Ah, mas eu conheço um professor que só vai à universidade pra dar aulas”

“Eu conheço o fulano, que foi meu professor, e não faz tudo isso não”. É, infelizmente, conhecemos professores universitários assim! Eu conheço alguns! Como em qualquer profissão, há quem não possa ser tomado de exemplo e, definitivamente não são a maioria. No entanto, aposto nos meus colegas que trabalham bastante para um bom desenvolvimento na/da universidade para/com a sociedade!

E o que eu posso dizer para você? Espelhe-se naqueles que levam seu trabalho a sério e o conduzem de forma a promover melhorias para a nossa sociedade. E se aqueles que não o fazem ainda te incomodarem muito: “dê um toque” para eles, comente sobre a necessidade de fazermos nosso papel e mostrarmos toda a potência de uma universidade pública!

Meu foco eram os tempos pandêmicos né? Mas tive que me estender um pouco na explicação para vocês entenderem melhor. E como tudo isso funciona na quarentena fica para um próximo post!


Para saber mais:

[1] Rede pública do RS alcança primeiro lugar no ranking do Enem https://educacao.rs.gov.br/rede-estadual-de-ensino-do-rs-alcanca-primeiro-lugar-no-ranking-do-enem

[2] [3] Dados INEP: Sinopse Estatística da Educação Superior 2018. http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-sinopse

[4] Artigo sobre o tripé ensino-pesquisa-extensão: MOITAL, Filomena, Maria G. da S. C.; ANDRADE, Fernando Cezar B de. Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de indissociabilidade na pós-graduação. Revista Brasileira de Educação, vol.14, nº. 41. Rio de Janeiro, maio/ago. 2009. Disponível em  https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782009000200006&lng=pt&tlng=pt

[5] Artigo sobre a pesquisa e pesquisa em educação no Brasil: KUENZER, Acacia Zeneida; MORAES, Maria Célia M. Temas e tramas na pós-graduação em educação. Revista Educação e Sociedade, v.26, nº93. Campinas, set/dez/2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302005000400015&lng=pt&tlng=pt

[6] Dados da Academia brasileira de ciências: http://www.abc.org.br/2019/04/15/universidades-publicas-respondem-por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/

Livro: REZENDE, Sergio Machado. Momentos da Ciência e tecnologia no Brasil. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2010.

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Sobre Lavínia Schwantes 4 Artigos
Biológa, formada no século passado na UFRGS; atua como professora na área há mais de 20 anos. Encantada pela educação em ciências, trabalha formando professores de Ciências e Biologia. Pesquisa a ciência, sua produção e sua filosofia, e como pode ser ensinada, tendo aí concentrado seus estudos, projetos, publicações científicas, leituras e orientações de graduação e pós-graduação junto ao Grupo PEmCie no CEAMECIM na Universidade Federal do Rio Grande-FURG.

4 Comentários

  1. Esclarecedora análise! É isso aí: Ensino, Pesquisa, Extensão e Gestão. Mesmo que os cargos de gestão tenham um caráter temporário, quando neles estamos, consomem muito nosso tempo. É bom ressaltar que em RARAS ocasiões existe a possibilidade de se ter um professor temporário para ministrar as aulas do professor que ocupa esse cargo.

    • Oi Julio. Isso aí!
      A gestão que não entra nesse tripé nos ocupa bastante e ainda mais nestes tempos pandêmicos em que as instituições estão tende de se reinventar! E a substituição é SEMPRE e cada vez mais, raríssima!!!

  2. Depois desta explanação, ficamos sabendo a importância (capital) do ensino para a sociedade.É através dos professores que a ciência progride focando sempre no bem-estar da humanidade Parabéns aos professores de nosso país, mesmo aos que limitam ao primeiro "degrau" do "tripé" que apresentaste.

    • Oi Charlie. Isso mesmo, pai (hehe!).
      A profissão de professor é umas das mais relevantes para o desenvolvimento de um país.
      É uma pena que os cortes orçamentários dos governo sempre "cortam na carne" da educação!!

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