Aprendizado, trajetórias e vida acadêmica, ou sobre a pergunta “como eu nunca pensei isso antes”?

desenho com vários elementos que representam um local de Aprendizado: no primeiro plano uma escrivaninha, com livro, iluminária, óculos, um copo, caneca e um coelho de pelúcia. atrás há desenhos colados na parede, um relógio e uma gravura do blogs de ciência da unicamp
Para todas as coisas: dicionário
para que fiquem prontas: paciência
(Nando Reis, Diariamente)

Ao longo dos últimos 2 anos, mais do que em outros momentos, algumas situações me chamaram a atenção quanto à produção de conteúdos para mídias sociais, textos, seja para artigos ou para o blogs, ou ainda em momentos de reunião e discussão de artigos em grupos de estudo, pesquisa, espaços de aprendizado, reuniões de orientação ou cursos em que atuei como docente.

Em vários momentos, vi estudantes (graduação ou pós-graduação) se diminuindo frente a alguma análise ou discussão que eu (ou algum colega meu) traçava. As frases comuns são:

– Como eu não pensei nisso antes?
– Nossa eu li o mesmo artigo e não consegui ver isso!
– Faz anos (2-3 anos) que eu trabalho com isso e não tinha percebido essa relação!

Tais frases vêm acompanhadas de apontamentos de fracasso frente a uma análise, uma sugestão para correções, ou conversa de corredor mesmo. Ao questionar esse sentimento, um dia destes, ouvi as seguintes frases:

– Faz seis anos que eu estudo isso, eu devia ter percebido o que o professor X comentou no meu texto.

O diálogo prosseguiu, eu respondi que faz seis anos que ele estuda COM O PROFESSOR X, o que denota que o professor estuda há um tempo mais longo que isso. Tudo isso gera condições diferentes para as conclusões, relações e análises apontadas. Por fim, escutei “mas é que nós imaginamos vocês com a nossa idade já sendo incríveis assim”.

Essa frase ficou ressoando um tempo e, junto com outras situações comuns de sala de aula e orientação (que não se limitam a um ou dois anos), me fez pensar sobre as cobranças e o modo como vemos o trabalho do outro – e nos diminuímos frente a isso e, também, diminuímos as trajetórias dos outros e o que é uma profissão e se tornar profissional, em paralelo.

O que é se formar e qual o aprendizado nesse processo?

Este ano eu fiz 20 anos de formada em Licenciatura em Ciências Biológicas. Mesmo que com alguns hiatos desempregada, desde o final do curso eu iniciei a docência e, simultaneamente, ingressei em um grupo de pesquisa. Só como docente no ensino superior, este ano eu completei 17 anos. Não é carteirada profissional o que vai ser falado aqui, apenas estou tentando situar uma questão.

Quando estudamos educação, estudamos sobre processo de ensino-aprendizagem (dentre muitas outras coisas). Um dos autores que eu mais aprecio neste campo é Jorge Larrosa, que aponta que se tornar sujeito dentro de um processo de formação não é sobre o aprendizado nos fazer permanecer imodificado. Ele aponta para o quanto a palavra “formação” é sobre tomar forma de alguma coisa. É sobre iniciar o processo de aprendizado uma maneira e transformar-se ao longo do caminho.

E isso faz todo o sentido! O aprendizado não é um processo para passarmos incólumes. Nós definitivamente mudamos nosso modo de pensar e agir a partir dos conhecimentos adquiridos. Um aprendizado não é sobre algo apenas “conceitual e abstrato”, nós agimos a partir de conhecimentos acumulados e articulados com conhecimentos prévios que já tínhamos construído.

Ivan Izquierdo, um dos grandes neurocientistas brasileiros, costumava dizer em suas aulas que:

nós somos aquilo que lembramos e também aquilo que esquecemos

Ao falar sobre o quanto o conhecimento nos modifica, ele apontava os modos como acontecem sinapses, como a memória é formada e, quimicamente, molecularmente, fisiologicamente isso modifica nosso corpo (visto que o cérebro e todo o sistema nervoso é parte do corpo…).

Nós lembramos com o corpo todo

Comentou o professor em uma aula sobre memória, nos idos anos 2003.

E o que isto têm a ver com as questões levantadas anteriormente?

Para mim, ao longo do tempo que fui me estabelecendo na carreira (não que eu me ache uma grande pesquisadora e etc.), me parece bem simples de compreender que não sou a mesma Ana que se formou em maio de 2002. Uma Ana cheia de sonhos e esperanças com o que poderia fazer com o conhecimento. E uma Ana também cheia de receios sobre os empregos e formas de se manter financeiramente a partir dali.

Se aprender é tornar-se uma coisa diferente do que éramos antes, me parece bem plausível dizer a vocês que eu me tornei uma outra pessoa. Tanto quanto dizer que não, a graduação não basta. Nós aprendemos a ser profissionais sendo profissionais. Ao longo do tempo, vamos aprendendo como agir e pensar na prática. Mas não é sobre deixar de lado a teoria, nós aprendemos a agir e pensar a partir de uma base técnica científica que aprendemos na escola e na universidade, sim! Mesmo que às vezes nós não consigamos perceber exatamente onde alguns conceitos abstratos aprendidos com o tempo se fazem presentes e foram necessários. O aprendizado (ou os aprendizados, pois são plurais) não são assim tão mecanicamente utilizados ou aplicados.

Não é sobre “eu ter usado báskara” hoje ou não.

É sobre eu ter aprendido a: estudar, me concentrar (ou não), a organizar meu tempo para desempenhar tarefas, elaborar resoluções para problemas complexos (o que parece intuitivo, nem sempre é inato). Tudo isso e, também, conhecimento acumulado e articulado de maneira coletiva e individual também.

Isto quer dizer que além do “conteúdo programático escolar”, nós aprendemos a nos comportar dentro de uma sociedade com uma série de exigências. E quando começamos nossa carreira, isto vai ser exigido de nós, de maneira prática. E os conhecimentos servem, também, para expressar isso – de maneira abstrata, conceitual, teórica ou prática – em situações em que o trabalho acadêmico faz parte.

Ao longo de 20 anos, ninguém também permanece com os mesmos comportamentos e aprendizados da universidade. O trabalho de um docente universitário e pesquisador é aprender mais, a partir da pesquisa e estudos.

Ou seja: seguir me modificando é o pressuposto básico da minha profissão.

Na verdade, qualquer pessoa aprende e se modifica ao longo da vida – não apenas por nosso corpo envelhecer. Mas exatamente por o processo de amadurecimento e envelhecimento diz respeito, de novo, a formar memórias e utilizá-las (modificando-as no processo de vivência) nas mais variadas situações. Não se passa pela vida permanecendo incólume!

Diminuir-se por não ter algum conhecimento específico (ou conseguir fazer uma análise específica) não faz sentido algum, fora te fazer mal. 

É importante conhecer o processo de produção do conhecimento. É importante perceber a trajetória que vocês já estabeleceram e como se modificaram desde que se embrenharam em uma vida acadêmica. Para perceberem que a formação levou um tempo até chegarem onde estão.

Neste caminho, também perceber que se erra bastante, se é ingênuo muitas vezes, nem sempre somos justos uns com os outros – e principalmente conosco mesmo.

Talvez, junto a isso, seja fundamental não nos compararmos com pessoas que tiveram trajetórias diferentes das nossas, em tempos diferentes.

As pessoas não nascem prontas, nem expressam ideias complexas para situações aparentemente simples do nada.

Essa sensação de impotência, muitas vezes, é gerada exatamente por tomarmos esses processos de análise de uma situação (que pode ser um resultado científico, obtido durante um experimento), como uma percepção óbvia.

Sempre parece óbvio, depois de dito. E sempre parece simples, quando na verdade algo óbvio e simples, pode ser resultado de um “bocado” de anos lendo artigos científicos que se expressa em alguns minutos olhando um gráfico ou um resultado, obtido por nossos alunos em seus experimentos.

Às vezes não é sobre sermos melhores, é sobre sermos mais velhos (risos). E ser mais velho não é ruim, mas é ter vivido mais tempo, mais coisas e perceber as coisas com outra trajetória.

Não sei se estas ideias delineadas dizem algo a ti, leitor, mas a questão é que a comparação não faz sentido.

Finalizando

Uma das questões que talvez seja importante (embora eu não saiba dizer quando isto tornou-se mais palpável para mim) é pensar onde queres chegar com essa trajetória acadêmica que estás trabalhando. Seja na pós-graduação, seja na divulgação científica. O que queres com isso?

E entender que esta resposta não é sobre alcançar amanhã o resultado, mas planejar o tempo de execução, e ir ajustando conforme os percalços vierem (pois eles vem…).

Referências

Textos de Izquierdo, Ivan:

(2002) Memória Porto Alegre: ArtMed.

(Vídeo) ___ e Varela, Drauzio (2019) Memória

___, Bevilaqua, Lia RM e Cammarota, Martín (2006) A arte de esquecer, Estudos Avançados, v. 20, n. 58 [Acessado 15 Setembro 2022], pp. 289-296

___, Myskiw, Jociane de Carvalho, Benetti, Fernando, Furini, Cristiane Regina Guerino (2013) Memória: tipos e Mecanismos – achados recentes, Revista USP, n98, p 9-16

Textos de Larrosa, Jorge:

(1996) Narrativa, identidade y de sidentificación. In: Larrosa, Jorge La experiencia de la lectura. Barcelona: Laertes, 1996.

(2002) Notas sobre a experiência e o saber da experiência

(2003) Pedagogia Profana, Belo Horizonte: Autêntica.

Outros textos do PEmCie sobre o tema aprendizado, leitura, formação

Docência: uma contínua rotina sobre o impermanente

Sobre a paixão pelo conhecimento

Sobre Ana Arnt 55 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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