Bichos do Brasil: Atretochoana eiselti

Atretochoana eiselti, mas pode chamar de bicho-feio-da-p****. Foto por Juliano Tupan.

As cecílias são os mais esquecidos dos vertebrados. A maioria das cerca de 200 espécies deste estranho grupo, de existência absolutamente desconhecida pela maioria dos seres humanos, se assemelha superficialmente muito mais a minhocas do que a outros vertebrados. Pequenos, sem membros, alongados e muitas vezes fossoriais, esses animais constituem a ordem Gymnophiona. Ao lado dos mais populares anuros (sapos, rãs e pererecas) e salamandras, formam a classe Amphibia.

Uma espécie de gimnofiona era para mim um dos maiores símbolos do quanto o Brasil ainda desconhece sua fauna. Essa espécie, Atretochoana eiselti, foi descrita em 1968 com base em um único e antigo exemplar depositado no museu de história natural de Viena.  Trata-se da maior cecília do mundo, com quase um metro de comprimento e até dez centímetros de circunferência.

O mais surpreendente, no entanto, é que a Atretochoana simplesmente não possui pulmões. Essa característica não é única entre os tetrápodes: pulmões também estão ausentes muitas em muitas espécies de salamandras (inclusive no único gênero que ocorre no Brasil, Bolitoglossa), mas estas têm no máximo poucos centímetros de comprimento, fazendo da Atretochoana não só a maior cecília mas também, de longe, o maior tetrápode sem pulmão conhecido.

O frustrante é que esse espécime do museu de Viena, possivelmente coletado pelo naturalista austríaco Johann Natterer em suas viagens pelo Brasil no início do século 19, não possui qualquer informação associada, exceto que provém da América do Sul. Em 1998, um segundo exemplar foi descoberto, na coleção da Universidade de Brasília (UnB), mas sem quaisquer informações sobre a localidade de coleta. A Atretochoana possui uma morfologia consistente com hábitos aquáticos, e devido à ausência de pulmões e a seu grande tamanho, especulou-se que viveria em riachos frios e com corredeiras do Brasil central, condições em que a água é bastante oxigenada, favorecendo a respiração cutânea.

Portanto essa era a absurda situação até 2011: a maior gimnofiona do planeta, o maior tetrápode apulmonado do planeta, um animal enorme de quase um metro de comprimento, e podíamos apenas especular sobre qual seria seu hábitat e até distribuição geográfica! Quem sabe os dois únicos exemplares coletados seriam para sempre os últimos e únicos testemunhos de uma espécie que já se fora…

O mistério da Atretochoana começou a ser finalmente resolvido em 2011, quando herpetólogos do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA), receberam fotos de um grande animal capturado num matapi, uma armadilha para captura de camarão colocada em águas rasas. O animal não foi capturado, mas com base nas fotografias os cientistas o identificaram como um exemplar de Atretochoana eiselti. Surpreendentemente, as fotografias não foram realizadas num riacho frio e rápido do Brasil central, mas sim numa praia na ilha de Mosqueiro, logo ao norte de Belém, no estuário do rio Amazonas.

A Atretochoana em comparação com uma cecília de tamanho mais usual para a ordem (Boulengerula niedeni). Fotos, respectivamente, de Hogmooed et al. e daqui

Pouco mais de um mês depois, os mesmos herpetólogos receberam novas fotos de Atretochoana, e desta vez exemplares foram coletados. A coleta ocorreu a 2500 km de Belém, numa piscina formada no leito seco do rio Madeira dias após o represamento do rio para a construção de hidroelétrica de Santo Antônio, em Rondônia. Subsequentemente, os herpetólogos do Museu Goeldi conseguiram obter espécimes também da região da ilha de Mosqueiro, possibilitando a publicação das primeiras informações sobre a espécie em seu ambiente natural e a análise de espécimes recém-coletados. Esse estudo foi publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi por Marinus Hoogmoed, Adriano Maciel e Juliano Coragem, e dele tiro todas as informações desse post.

A primeira conclusão permitida pela redescoberta é que, além de já deter os prêmios de maior cecília e maior tetrápode sem pulmões, a Atretochoana é séria concorrente ao título de animal mais nojento do planeta. Cinza, lisa e comprida, não dá para saber se parece mais uma sanguessuga anabolizada ou uma cobra deformada… E para piorar, dependendo do ângulo, ainda tem um leve aspecto fálico, o que levou parte da mídia a apelida-la de “penis snake”… (Falando nesse assunto, as gimnofionas são os únicos anfíbios que possuem um órgão copulatório especializado, chamado falodeu. Aposto que essa informação mudou sua vida, heim?)

A segunda conclusão é que as especulações sobre seu hábitat estavam totalmente erradas. Ambas as localidade conhecidas são de águas quentes e turvas. Na região do rio Madeira em que foi coletada, ainda há várias corredeiras, que aumentam a oxigenação da água, mas no estuário do Amazonas as águas são lentas. De modo geral, não é um ambiente em que se esperaria encontrar um animal que depende de respiração somente através da pele.

Os capilares sanguíneos da Atretochoana são muito próximos da pele, confirmando que ela muito provavelmente realiza respiração cutânea. No entanto, devido a seu grande tamanho corporal, muitas vezes maior que outros tetrápodes apulmonados, deve haver outras superfícies de troca gasosa. Hoogmoed e seus colegas especulam que essa respiração complementar pode ocorrer na cavidade bucofaríngea e não excluem a possibilidade de respiração intestinal ou até cloacal, como ocorre em algumas tartarugas (e aumentando as chances da Atretochoana no concurso de animal mais repugnante do mundo).

Vista em close da cara (?) de uma Atretochoana. Figura modificada de Hoogmooed et al.

A presença da Atretochoana em duas localidades tão distantes sugere que ela deve ser amplamente distribuída (ainda que talvez rara) na Amazônia brasileira e que seu desaparecimento por tantos anos foi devido simplesmente à falta de procurar no lugar certo. Seu mistério começou a ser desvendado, mas muito ainda resta para se descobrir sobre esse peculiar animal. A maior dúvida é fisiológica (como respira um animal deste tamanho, sem pulmões e em águas não particularmente ricas em oxigênio?), mas virtualmente nada se sabe ainda sobre sua história natural, hábitos e relações filogenéticas.

Como escreveram seus redescobridores: “Ainda temos um longo caminho a percorrer antes de considerar esta espécie ‘conhecida’”. E, pensando assim, quantas espécies será que podemos dizer que são realmente conhecidas?

Resgates de fauna e suas verdades ocultas

por Rafael Marcondes, Luciano Moreira Lima & Guilherme Garbino

Recentemente foi amplamente noticiado a morte em massa de animais silvestres afogados devido ao enchimento da represa da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, que está sendo construída no Rio Madeira, próximo à cidade de Porto Velho – RO. De acordo com uma pessoa que trabalhou nas atividades de  resgate de fauna durante o enchimento do lago da usina, o resgate foi ineficaz e houve um verdadeiro extermínio de animais na região. Antas, tatus, pacas, cotias e diversos outros bichos se afogaram, morreram e apodreceram nas águas do Madeira. O consórcio Santo Antônio Energia, responsável pela construção da usina respondeu que realmente ocorreram mortes, mas elas teriam sido míseros “1,8%” do total de animais resgatados, 25.517, e que desses, 97,7% haviam sido devolvidos “saudáveis” a natureza.

Um dos milhões de animais afogados pelo enchimento do lago da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia. Fonte - aqui -

Um pequeno exercício matemático revela uma verdade oculta e macabra por traz são desses números. Vamos raciocinar um pouco… Uma espécie típica de ave passeriforme possui uma densidade populacional de 1 casal a cada 5 hectares, ou 1 indivíduo a cada 2,5 hectares (Terborgh et al. 1990). Segundo a própria Santo Antônio Energia, a área a ser alagada é de 16.400 hectares. Essa área comporta, portanto, cerca de 6.560 indivíduos de uma espécie típica de pássaro. Numa estimativa, conservadora, 200 espécies de passeriformes ocorrem na região do alto Rio Madeira. Multiplicando 6.560 por 200, chegamos a outra estimativa, também conservadora, de mais de 1 milhão de pássaros na área a ser inundada! Apenas de aves passeriformes! Não estamos contando as demais aves, nem répteis, anfíbios, mamíferos, borboletas e a míriade de outros invertebrados. Se os contássemos, facilmente a conta chegaria a bilhões de animais. Nesse contexto, a afirmação da empresa de que teriam sido 459, ou melhor, 459,306 para ser mais exato, os animais mortos pelo alagamento dispensa mais comentários.

Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia, ainda em fase de construção. Com as obras completamente concluídas mais de 16.000 hectares de florestas estarão para sempre submersos.

Vamos deixar um pouco de lado os infortunados que não conseguiram embarcar na Arca de Noé e nos concentrar em analisar o destino desses quase 25 mil animais resgatados e devolvidos “saudáveis” a natureza. Um ótimo ponto de partida para nos enveredarmos nessa questão é um elucidativo artigo do Professor Marcos Rodrigues, da UFMG, publicado em 2006 na revista Natureza & Conservação. Nessa publicação o autor levanta uma série de questões sobre o destino dos animais realocados, compartilhadas abaixo.

O objetivo declarado dos resgates de fauna é salvar animais que de outra maneira se afogariam. Para isso, equipes de biólogos e veterinários capturam animais, principalmente vertebrados, durante o enchimento da represa. Os animais capturados passam um breve período em centros de reabilitação e em seguida são liberados em áreas que, teoricamente, possuem características semelhantes àquelas de onde foram retirados, mas onde, obviamente, não haverá alagamento.

Embora lógico a primeira vista, esse procedimento parece ignorar o fato que muitas das espécies incluídas nesse bolo são territorialistas. Nesses casos, cada indivíduo, casal ou bando, dependendo da espécie, defende uma área da floresta (ou cerrado, caatinga, etc.), mantendo um território geralmente com fronteiras muito bem delimitadas. As vantagens do animal manter um território estão relacionadas principalmente com competição por recursos, incluindo alimento, abrigo e parceiros reprodutivos. Por isso, muitas espécies defendem exaustivamente seus territórios, não tolerando indivíduos da mesma, ou, por vezes, até de outras espécies. Em um ecossistema em equilíbrio, geralmente a maior parte do espaço está ocupada por territórios de uma dada espécie, imediatamente onde termina o território de um indivíduo, já começa o de outro. Áreas “desocupadas” geralmente não apresentam recursos necessários para aquela espécie.

O leitor provavelmente já entendeu onde acabaremos chegando. Ora pois, os animais resgatados são soltos em áreas onde geralmente não há territórios vagos, o que, consequentemente, resultará em uma superpopulação local da espécie. O que acontecerá então com esses indivíduos? As opções não são muitas e, possivelmente, eles tentarão tomar o território de um indivíduo já estabelecido. No entanto, as chances de sucesso são baixas, pois o recém-chegado, além de não conhecer o novo local, provavelmente estará em má-forma e estressado, após fugir da inundação, ser mantido em gaiolas, transportado etc., diminuindo ainda mais suas chances.

Caso não morra por motivos resultantes de disputas territoriais, o “invasor” poderá tornar-se um “satélite”: indivíduos que vagam em busca de um território desocupado. As chances de sobrevivência de um satélite, no entanto, são baixas, pois ele tem menor acesso a recursos e constantemente tem que se envolver em disputas com indivíduos cujos territórios ele invade. Além disso, quanto maior o número de satélites, mais tempo os indivíduos territoriais tem que passar se defendendo, diminuindo assim o tempo dedicado a atividades como alimentação e reprodução. Ou seja, a introdução dos indivíduos translocados pode impactar seriamente as populações naturais já estabelecidas

Assim, fica claro que resgates de fauna são muito pouco efetivos frente ao número de animais afetados no alagamento causado por uma usina hidrelétrica de grandes proporções, ou pior, podem funcionar como um “tiro no pé”. No entanto, é uma atividade com grande repercussão na mídia (quem nunca viu na televisão cenas de animais sendo resgatados por helicópteros e depois saindo de gaiolas para a “liberdade” da floresta?) e popular frente à opinião pública, que acredita que os animais estão realmente sendo “salvos” e ignoram que outros centenas de milhões foram, literalmente, por água abaixo ou sentenciados a vagar sem rumo nem direção pela floresta tal qual refugiados de um verdadeiro massacre. Problema? Nenhum… Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente.

Post scriptum: Reproduzo aqui um pertinente comentário sobre o texto acima feito no FaceBook por Vitor de Queiroz Piacentini, o qual lança luz sobre mais um grave problema associado a resgates de fauna e não abordado diretamente no nosso texto.

O texto tá muito bom, e poderia ir até mais longe: os resgates em rios divisores de fauna (= espécies ou subespécies aparentadas substituindo-se em margens opostas dos rios) simplesmente ignoram o papel biogeográfico desses rios. O bicho-preguiça da margem direita tá há 694.750 anos sem contato com a população da margem esquerda? Não faz mal, solta tudo no mesmo buraco! Danem-se os padrões filogeográficos que a evolução levou anos construindo (os números do exemplo são hipotéticos, mas sei de fonte segura que mais de 200 preguiças de uma margem foram soltas na outra!)

O que os olhos não veem...

Fontes:

Rodrigues, M. 2006. Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia. Natureza & Conservação, vol. 4, n. 1, p. 29-38. (A maior parte das informações, raciocínio e conclusões desse post foi adaptada deste excelente artigo.)

Terborgh, J. et al. 1990. Structure and organization of an Amazonian forest bird community. Ecological Monographs, vol. 60, p. 213-238.

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