Bichos do Brasil: Atretochoana eiselti

Atretochoana eiselti, mas pode chamar de bicho-feio-da-p****. Foto por Juliano Tupan.

As cecílias são os mais esquecidos dos vertebrados. A maioria das cerca de 200 espécies deste estranho grupo, de existência absolutamente desconhecida pela maioria dos seres humanos, se assemelha superficialmente muito mais a minhocas do que a outros vertebrados. Pequenos, sem membros, alongados e muitas vezes fossoriais, esses animais constituem a ordem Gymnophiona. Ao lado dos mais populares anuros (sapos, rãs e pererecas) e salamandras, formam a classe Amphibia.

Uma espécie de gimnofiona era para mim um dos maiores símbolos do quanto o Brasil ainda desconhece sua fauna. Essa espécie, Atretochoana eiselti, foi descrita em 1968 com base em um único e antigo exemplar depositado no museu de história natural de Viena.  Trata-se da maior cecília do mundo, com quase um metro de comprimento e até dez centímetros de circunferência.

O mais surpreendente, no entanto, é que a Atretochoana simplesmente não possui pulmões. Essa característica não é única entre os tetrápodes: pulmões também estão ausentes muitas em muitas espécies de salamandras (inclusive no único gênero que ocorre no Brasil, Bolitoglossa), mas estas têm no máximo poucos centímetros de comprimento, fazendo da Atretochoana não só a maior cecília mas também, de longe, o maior tetrápode sem pulmão conhecido.

O frustrante é que esse espécime do museu de Viena, possivelmente coletado pelo naturalista austríaco Johann Natterer em suas viagens pelo Brasil no início do século 19, não possui qualquer informação associada, exceto que provém da América do Sul. Em 1998, um segundo exemplar foi descoberto, na coleção da Universidade de Brasília (UnB), mas sem quaisquer informações sobre a localidade de coleta. A Atretochoana possui uma morfologia consistente com hábitos aquáticos, e devido à ausência de pulmões e a seu grande tamanho, especulou-se que viveria em riachos frios e com corredeiras do Brasil central, condições em que a água é bastante oxigenada, favorecendo a respiração cutânea.

Portanto essa era a absurda situação até 2011: a maior gimnofiona do planeta, o maior tetrápode apulmonado do planeta, um animal enorme de quase um metro de comprimento, e podíamos apenas especular sobre qual seria seu hábitat e até distribuição geográfica! Quem sabe os dois únicos exemplares coletados seriam para sempre os últimos e únicos testemunhos de uma espécie que já se fora…

O mistério da Atretochoana começou a ser finalmente resolvido em 2011, quando herpetólogos do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA), receberam fotos de um grande animal capturado num matapi, uma armadilha para captura de camarão colocada em águas rasas. O animal não foi capturado, mas com base nas fotografias os cientistas o identificaram como um exemplar de Atretochoana eiselti. Surpreendentemente, as fotografias não foram realizadas num riacho frio e rápido do Brasil central, mas sim numa praia na ilha de Mosqueiro, logo ao norte de Belém, no estuário do rio Amazonas.

A Atretochoana em comparação com uma cecília de tamanho mais usual para a ordem (Boulengerula niedeni). Fotos, respectivamente, de Hogmooed et al. e daqui

Pouco mais de um mês depois, os mesmos herpetólogos receberam novas fotos de Atretochoana, e desta vez exemplares foram coletados. A coleta ocorreu a 2500 km de Belém, numa piscina formada no leito seco do rio Madeira dias após o represamento do rio para a construção de hidroelétrica de Santo Antônio, em Rondônia. Subsequentemente, os herpetólogos do Museu Goeldi conseguiram obter espécimes também da região da ilha de Mosqueiro, possibilitando a publicação das primeiras informações sobre a espécie em seu ambiente natural e a análise de espécimes recém-coletados. Esse estudo foi publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi por Marinus Hoogmoed, Adriano Maciel e Juliano Coragem, e dele tiro todas as informações desse post.

A primeira conclusão permitida pela redescoberta é que, além de já deter os prêmios de maior cecília e maior tetrápode sem pulmões, a Atretochoana é séria concorrente ao título de animal mais nojento do planeta. Cinza, lisa e comprida, não dá para saber se parece mais uma sanguessuga anabolizada ou uma cobra deformada… E para piorar, dependendo do ângulo, ainda tem um leve aspecto fálico, o que levou parte da mídia a apelida-la de “penis snake”… (Falando nesse assunto, as gimnofionas são os únicos anfíbios que possuem um órgão copulatório especializado, chamado falodeu. Aposto que essa informação mudou sua vida, heim?)

A segunda conclusão é que as especulações sobre seu hábitat estavam totalmente erradas. Ambas as localidade conhecidas são de águas quentes e turvas. Na região do rio Madeira em que foi coletada, ainda há várias corredeiras, que aumentam a oxigenação da água, mas no estuário do Amazonas as águas são lentas. De modo geral, não é um ambiente em que se esperaria encontrar um animal que depende de respiração somente através da pele.

Os capilares sanguíneos da Atretochoana são muito próximos da pele, confirmando que ela muito provavelmente realiza respiração cutânea. No entanto, devido a seu grande tamanho corporal, muitas vezes maior que outros tetrápodes apulmonados, deve haver outras superfícies de troca gasosa. Hoogmoed e seus colegas especulam que essa respiração complementar pode ocorrer na cavidade bucofaríngea e não excluem a possibilidade de respiração intestinal ou até cloacal, como ocorre em algumas tartarugas (e aumentando as chances da Atretochoana no concurso de animal mais repugnante do mundo).

Vista em close da cara (?) de uma Atretochoana. Figura modificada de Hoogmooed et al.

A presença da Atretochoana em duas localidades tão distantes sugere que ela deve ser amplamente distribuída (ainda que talvez rara) na Amazônia brasileira e que seu desaparecimento por tantos anos foi devido simplesmente à falta de procurar no lugar certo. Seu mistério começou a ser desvendado, mas muito ainda resta para se descobrir sobre esse peculiar animal. A maior dúvida é fisiológica (como respira um animal deste tamanho, sem pulmões e em águas não particularmente ricas em oxigênio?), mas virtualmente nada se sabe ainda sobre sua história natural, hábitos e relações filogenéticas.

Como escreveram seus redescobridores: “Ainda temos um longo caminho a percorrer antes de considerar esta espécie ‘conhecida’”. E, pensando assim, quantas espécies será que podemos dizer que são realmente conhecidas?

Bichos do Brasil: urutaus e mães-da-lua

 

Uma mãe-da-lua (Nyctibius griseus) mostrando todo seu charme. Foto por Carlos Gussoni no site Wikiaves.

O nome popular já diz muito sobre essas aves: “urutau” vem do guarani guyra (ave) e tau (fantasma). Tratam-se dos membros da família Nyctibiidae, conhecidos como urutaus ou mães-da-lua, um dos grupos mais fascinantes (e bizarros) de aves brasileiras. Essa pequena família inclui sete espécies de aves noturnas, cinco das quais ocorrem no Brasil. Todas são incluídas no gênero Nyctibius e exclusivas dos neotrópicos (região biogeográfica que inclui a América do Sul, Central, partes do México e do extremo sul dos Estados Unidos).

Muita gente chama os urutaus de feios, mas eu prefiro dizer que eles são apenas estranhos. Os membros dessa família têm uma cabeça enorme e a boca descomunal, mas o bico é minúsculo. E ainda por cima seus enormes olhos são esbugalhados e amarelos. As pálpebras possuem uma engenhosa adaptação: duas pequenas incisões que permitem à ave enxergar mesmo com o olho fechado.

A plumagem é cinza ou amarronzada. Essas cores, em conjunção com o hábito de pousar em postura ereta na ponta de galhos verticais, conferem aos urutaus uma das melhores camuflagens dentre todas as aves do mundo. Essa postura é assumida até mesmo pelos filhotes mal saídos do ovo. Podem ter seus poleiros de descanso diurno em mourões de cerca ou outros troncos totalmente expostos, em plena luz do dia, tal é a excelência de sua camuflagem. Com certa freqüência são surpreendidos nesses poleiros, e, de tão estranhos que são, acabam virando até notícia de jornal, como foi o caso até mesmo em plena capital paulista.

Uma mãe-da-lua em sua postura de camuflagem. Observe os entalhes na margem da pálpebra que permitem que o animal enxergue mesmo o com os olhos fechados. Foto por Ricardo Q. T. Rodrigues no site Wikiaves.

Como se esses hábitos crípticos já não bastassem para dar um ar fantasmagórico aos urutaus, suas vocalizações podem ser ainda mais estranhas. Variam desde o melancólico lamento da mãe-da-lua (Nyctbius griseus) – citado diversas vezes por Guimarães Rosa em seu Grande Sertão: Veredas – até o aterrorizante berro da mãe-da-lua-gigante (Nyctibius grandis). Imagine o que os primeiros europeus a chegar a nossas terras não devem ter pensado ao ouvir essas vozes sinistras ecoando na noite…

Tudo isso levou o urutau a ser figura popular no folclore brasileiro. Uma das histórias mais difundidas conta que a mãe-da-lua seria uma jovem que perdeu seu amor. Era uma menina do sertão muito feia, mas muito inteligente. Certa noite, encontrou um belo príncipe nas redondezas e conseguiu impressioná-lo com sua inteligência. Quando o príncipe estava prestes a pedi-la em casamento, a lua cheia surgiu por detrás das montanhas, iluminando o rosto da jovem. Assustado com sua feiúra, o príncipe fugiu para nunca mais voltar. Desolada, a garota procurou uma feiticeira e pediu para ser transformada em uma ave, para buscar o príncipe onde quer que ele estivesse. A feiticeira consentiu, e assim nasceu a mãe-da-lua. No entanto, mesmo após longa procura, a garota em forma de ave não conseguiu encontrar o príncipe. Voltou à feiticeira e pediu para ser transformada de volta em gente, mas isso estava fora dos poderes da bruxa. Desde então, a garota vaga pela noite como uma ave feia e triste, e sempre que aparece a lua, solta seu pio melancólico “foi, foi, foi…”, lembrando do príncipe que a deixou.

Uma mãe-da-lua gigante (Nyctibius grandis), a maior espécie da família e dona de aterrorizante vocalização. Foto por Celuta Machado.

Voltando agora ao aspecto mais científico, a família Nyctibiidae é parte da ordem Caprimulgiformes, que inclui outras aves noturnas, como os igualmente bizarros “frogmouths” (família Podargidae) da Ásia e Oceania e os mais familiares bacuraus e curiangos (Caprimulgidae). Suas características únicas, no entanto, e a existência de um urutau fóssil datado de 25 milhões de anos (Euronyctibius kurochnikii) não deixam dúvidas que se trata de um grupo muito antigo e distinto. Este fóssil provém da França, sugerindo que a família já teve uma distribuição bem mais ampla que a atual. A própria separação entre as espécies da família aparentemente é bastante antiga, já que, apesar de sua morfologia externa bastante homogênea, possuem enorme divergência genética e diversas diferenças no esqueleto, sugerindo que possam no futuro ser separados em gêneros distintos.

A família dos urutaus guarda ainda uma das espécies de aves brasileiras “perdidas e achadas” nas últimas décadas: o urutau-de-asa-branca (Nyctibius leucopterus), que ficou incríveis 168 anos desaparecido para a ciência. Essa espécie foi descoberta em 1821 no litoral da Bahia pelo naturalista Maximiliano de Wied-Neuwied. Desde sua descrição não se teve mais notícias dela até 1989, quando ela foi reencontrada nos arredores de Manaus, em plena Amazônia, a mais de 2500 km do litoral da Bahia. Os hábitos crípticos dos urutaus certamente contribuíram para essa espécie passar tanto tempo sumida. Mas, felizmente, quando ocorreu essa redescoberta a vocalização do urutau-de-asa-branca (um límpido assobio), até então desconhecida, pôde ser gravada. Munidos dessa gravação, ornitólogos utilizando a técnica do playback (em que aves, altamente territoriais, são atraídas pela reprodução do canto de sua própria espécie) localizaram a espécie em diversas localidades amazônicas, do Peru às Guianas, e, em 2003, de novo no litoral da Bahia.

O raro urutau-de-asa-branca (Nyctibius leucopterus). Foto por Andrew Whittaker.

Para saber mais: meu amigo e especialista em urutaus e bacuraus Thiago V. V. Costa estudou a anatomia dos urutaus. Seu trabalho pode ser conferido em Costa & Donatelli (2009). Cestari et al. (2011) estudaram o cuidado parental de Nyctibius griseus. O artigo inclui uma interessante foto do filhote já em posição ereta no “ninho” –  se é que podemos chamar assim. Sobre as redescobertas de N. leucopterus, confira Cohn-Haft (1993) e Whitney et al. (2003). Para uma introdução popular a esses bichos bizarros, veja o texto de Fernando Straube na revista Atualidades Ornitológicas: Straube (2004).

Resgates de fauna e suas verdades ocultas

por Rafael Marcondes, Luciano Moreira Lima & Guilherme Garbino

Recentemente foi amplamente noticiado a morte em massa de animais silvestres afogados devido ao enchimento da represa da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, que está sendo construída no Rio Madeira, próximo à cidade de Porto Velho – RO. De acordo com uma pessoa que trabalhou nas atividades de  resgate de fauna durante o enchimento do lago da usina, o resgate foi ineficaz e houve um verdadeiro extermínio de animais na região. Antas, tatus, pacas, cotias e diversos outros bichos se afogaram, morreram e apodreceram nas águas do Madeira. O consórcio Santo Antônio Energia, responsável pela construção da usina respondeu que realmente ocorreram mortes, mas elas teriam sido míseros “1,8%” do total de animais resgatados, 25.517, e que desses, 97,7% haviam sido devolvidos “saudáveis” a natureza.

Um dos milhões de animais afogados pelo enchimento do lago da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia. Fonte - aqui -

Um pequeno exercício matemático revela uma verdade oculta e macabra por traz são desses números. Vamos raciocinar um pouco… Uma espécie típica de ave passeriforme possui uma densidade populacional de 1 casal a cada 5 hectares, ou 1 indivíduo a cada 2,5 hectares (Terborgh et al. 1990). Segundo a própria Santo Antônio Energia, a área a ser alagada é de 16.400 hectares. Essa área comporta, portanto, cerca de 6.560 indivíduos de uma espécie típica de pássaro. Numa estimativa, conservadora, 200 espécies de passeriformes ocorrem na região do alto Rio Madeira. Multiplicando 6.560 por 200, chegamos a outra estimativa, também conservadora, de mais de 1 milhão de pássaros na área a ser inundada! Apenas de aves passeriformes! Não estamos contando as demais aves, nem répteis, anfíbios, mamíferos, borboletas e a míriade de outros invertebrados. Se os contássemos, facilmente a conta chegaria a bilhões de animais. Nesse contexto, a afirmação da empresa de que teriam sido 459, ou melhor, 459,306 para ser mais exato, os animais mortos pelo alagamento dispensa mais comentários.

Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia, ainda em fase de construção. Com as obras completamente concluídas mais de 16.000 hectares de florestas estarão para sempre submersos.

Vamos deixar um pouco de lado os infortunados que não conseguiram embarcar na Arca de Noé e nos concentrar em analisar o destino desses quase 25 mil animais resgatados e devolvidos “saudáveis” a natureza. Um ótimo ponto de partida para nos enveredarmos nessa questão é um elucidativo artigo do Professor Marcos Rodrigues, da UFMG, publicado em 2006 na revista Natureza & Conservação. Nessa publicação o autor levanta uma série de questões sobre o destino dos animais realocados, compartilhadas abaixo.

O objetivo declarado dos resgates de fauna é salvar animais que de outra maneira se afogariam. Para isso, equipes de biólogos e veterinários capturam animais, principalmente vertebrados, durante o enchimento da represa. Os animais capturados passam um breve período em centros de reabilitação e em seguida são liberados em áreas que, teoricamente, possuem características semelhantes àquelas de onde foram retirados, mas onde, obviamente, não haverá alagamento.

Embora lógico a primeira vista, esse procedimento parece ignorar o fato que muitas das espécies incluídas nesse bolo são territorialistas. Nesses casos, cada indivíduo, casal ou bando, dependendo da espécie, defende uma área da floresta (ou cerrado, caatinga, etc.), mantendo um território geralmente com fronteiras muito bem delimitadas. As vantagens do animal manter um território estão relacionadas principalmente com competição por recursos, incluindo alimento, abrigo e parceiros reprodutivos. Por isso, muitas espécies defendem exaustivamente seus territórios, não tolerando indivíduos da mesma, ou, por vezes, até de outras espécies. Em um ecossistema em equilíbrio, geralmente a maior parte do espaço está ocupada por territórios de uma dada espécie, imediatamente onde termina o território de um indivíduo, já começa o de outro. Áreas “desocupadas” geralmente não apresentam recursos necessários para aquela espécie.

O leitor provavelmente já entendeu onde acabaremos chegando. Ora pois, os animais resgatados são soltos em áreas onde geralmente não há territórios vagos, o que, consequentemente, resultará em uma superpopulação local da espécie. O que acontecerá então com esses indivíduos? As opções não são muitas e, possivelmente, eles tentarão tomar o território de um indivíduo já estabelecido. No entanto, as chances de sucesso são baixas, pois o recém-chegado, além de não conhecer o novo local, provavelmente estará em má-forma e estressado, após fugir da inundação, ser mantido em gaiolas, transportado etc., diminuindo ainda mais suas chances.

Caso não morra por motivos resultantes de disputas territoriais, o “invasor” poderá tornar-se um “satélite”: indivíduos que vagam em busca de um território desocupado. As chances de sobrevivência de um satélite, no entanto, são baixas, pois ele tem menor acesso a recursos e constantemente tem que se envolver em disputas com indivíduos cujos territórios ele invade. Além disso, quanto maior o número de satélites, mais tempo os indivíduos territoriais tem que passar se defendendo, diminuindo assim o tempo dedicado a atividades como alimentação e reprodução. Ou seja, a introdução dos indivíduos translocados pode impactar seriamente as populações naturais já estabelecidas

Assim, fica claro que resgates de fauna são muito pouco efetivos frente ao número de animais afetados no alagamento causado por uma usina hidrelétrica de grandes proporções, ou pior, podem funcionar como um “tiro no pé”. No entanto, é uma atividade com grande repercussão na mídia (quem nunca viu na televisão cenas de animais sendo resgatados por helicópteros e depois saindo de gaiolas para a “liberdade” da floresta?) e popular frente à opinião pública, que acredita que os animais estão realmente sendo “salvos” e ignoram que outros centenas de milhões foram, literalmente, por água abaixo ou sentenciados a vagar sem rumo nem direção pela floresta tal qual refugiados de um verdadeiro massacre. Problema? Nenhum… Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente.

Post scriptum: Reproduzo aqui um pertinente comentário sobre o texto acima feito no FaceBook por Vitor de Queiroz Piacentini, o qual lança luz sobre mais um grave problema associado a resgates de fauna e não abordado diretamente no nosso texto.

O texto tá muito bom, e poderia ir até mais longe: os resgates em rios divisores de fauna (= espécies ou subespécies aparentadas substituindo-se em margens opostas dos rios) simplesmente ignoram o papel biogeográfico desses rios. O bicho-preguiça da margem direita tá há 694.750 anos sem contato com a população da margem esquerda? Não faz mal, solta tudo no mesmo buraco! Danem-se os padrões filogeográficos que a evolução levou anos construindo (os números do exemplo são hipotéticos, mas sei de fonte segura que mais de 200 preguiças de uma margem foram soltas na outra!)

O que os olhos não veem...

Fontes:

Rodrigues, M. 2006. Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia. Natureza & Conservação, vol. 4, n. 1, p. 29-38. (A maior parte das informações, raciocínio e conclusões desse post foi adaptada deste excelente artigo.)

Terborgh, J. et al. 1990. Structure and organization of an Amazonian forest bird community. Ecological Monographs, vol. 60, p. 213-238.

Tinha um joão-porca no meio do caminho…

por Luciano Moreira Lima

Poucos lugares podem ser tão produtivos para o ornitólogo ou observador de aves quanto pequenas estradas que se embrenham floresta a dentro, especialmente as abandonadas. Quando comparadas as estreitas e escuras trilhas, o chão geralmente mais limpo e o campo de visão expandido tornam o caminhar nesses locais mais silencioso e atento, em horários propícios a cada dez passos se topa com um ou outro ser emplumado.

Para aqueles com equipamento fotográfico a tiracolo a situação é ainda mais proveitosa. A luz, sempre escassa no sub-bosque sombrio da mata, é mais abundante próximo as bordas permitindo uma abertura mais fechada e um ISO mais baixo, resultando em imagens mais nítidas e com menos ruído, o que pode fazer toda diferença na hora de um bom click.

Já era meio de tarde e a passarada meio quieta permitiu que algumas borboletas e libélulas diminuíssem meu passo em uma caminhada por uma estrada abandonada nas proximidades do centro de visitantes no Parque Nacional do Itatiaia. Depois de alguns clicks retomei o curso e alguns passos a frente lá estava o amigo Bruno Rennó com o olho atento pra dentro do mato. Dava dois passos para direita, dois para esquerda, botava o olho no visor da câmera e assim que me viu pelo canto do olho acenou para que eu me aproximasse em silêncio.

Repare no sorriso. Odonata, Parque Nacional do Itatiaia - RJ, (c) Luciano Moreira Lima. Caso você saiba deixo nos comentários sugestões sobre a identificação do gênero ou espécie. Canon 300mm f/4 + extender 1.4x, ISO 600, f/9, 1/125, flash de preenchimento.

Lepidoptera, Parque Nacional do Itatiaia - RJ, (c) Luciano Moreira Lima. Sugestões sobre a identificação do gênero ou espécie são bem vindas, deixe nos comentários. Canon 300mm f/4 + extender 1.4x, ISO 1600, f/8, 1/160, flash de preenchimento.

Repare nos olhos azuis estilo Ana Paula Arósio, clique na imagem para ver ampliada. Lepidoptera, Parque Nacional do Itatiaia - RJ, (c) Luciano Moreira Lima. Canon 300mm f/4 + extender 1.4x, ISO 800, f/9, 1/80, flash de preenchimento.

Perguntei curioso ainda a certa distância:

– Que têm aí Bruno Carlos? –

Me respondeu com o olho grudado no visor da câmera enquanto mirava pra dentro da mata:

– Chega aí! Têm um Lochmias “dando mole” –

Para aqueles que ainda não foram apresentados, Lochmias nematura, é o único representante do seu gênero e um parente não muito distante do famoso joão-de-barro, Furnarius rufus. No entanto, talvez pelo comportamento mais arredio, não teve o merecido reconhecimento de seu primo, cujo nome popular faz alusão a incrível habilidade de construir ninhos de barro que mais parecem verdadeiras casas (algumas vezes até mesmo prédios – veja no WikiAves – ) e acabou sendo batizado pelo povo de joão-porca, um nome vulgar, no mínimo vulgar.

A voz do povo é a voz de Deus, mas para aqueles indignados com um nome tão ultrajante segue a explicação extraída do livro sagrado dos ornitólogos tupiniquins, Ornitologia Brasileira, de Helmut Sick:

 “Habita as margens de córregos de densa vegetação, onde pula no solo ou vai de pedra em pedra entrando mesmo na água rasa à caça de insetos e larvas; às vezes apanha folhas inteiras caídas na água à cata de presas, inspeciona a lama de chiqueiros e esgotos (daí a série de nomes vernaculares pouco airosos de que é objeto), vira folhas e torrões de terra com o bico.” 

Pessoalmente acho seu nome injusto, pois foram poucas as vezes que vi o joão-porca forrageando próximo a áreas mal cheirosas que lhe justificassem tal adjetivação. Ao contrário, a espécie pode quase sempre ser observada buscando animalejos entre as pedras de córregos limpíssimos que serpenteiam pela mata e onde sua voz – ouça no WikiAves –  geralmente se mistura ao chuá incessante de alguma cachoeira próxima.

Cachoeira na parte baixa do Parque Nacional do Itatiaia, hábitat do joão-porca fotografado a pouco metros dali. (c) Luciano Moreira Lima. Canon 300mm f/4, ISO 800, f22, 0.6.

Nesse cenário, Lochmias parece comporta-se como um equivalente ecológico das aves do gênero Cinclus, família Cinclidae, espécies de pássaros semi-aquáticos que habitam rios em diversas regiões do mundo, mas que não ocorrem no Brasil. No entanto, até onde se sabe, Lochmias não é capaz de mergulhar como fazem os Cinclus. Falar em Cinclus e Lochmias nos remete ao misterioso Thamnophilus aquaticus, supostamente descoberto por J. T. Descourtilz e mencionado por Silva Maia (1851) em um parágrafo sobre uma “Especie nova e curiosa de passaro brasileiro” – veja aqui -. Embora o gênero Thamnophilus pertença a família Thamnophilidae, ou seja, diferente do Lochmias, não vejo explicação melhor para as observações de Descourtilz do que um joão-porca que se atreveu explorar atrás da cortina d’água de uma cachoeira ou situação parecida.

Mas voltemos a estrada abandonada no Itatiaia… Lochmias que se preze raramente “dá mole” pra foto e nas poucas vezes que presenciei essa situação, não durou mais que 30 segundos. Por isso apressei o passo ao ouvir a resposta do Bruno, mas me aproximei sem muita confiança, pois duvidava que o pássaro estivesse ainda ao alcance da minha lente. Dito e feito, só deu tempo de ver o bicho adentrar na brenha.

No entanto, um ou outro galho mais exposto no meio da ramaria me diziam que aquela podia ser uma chance muito boa de conseguir um registro fotográfico do joão-porca, objetivo que várias vezes já havia perseguido sem conseguir sucesso. Ipod na mão, reproduzi baixo por poucos segundos seu chamado característico e quase imediatamente o pássaro se aproximou pousando em um galho caído cuja uma das pontas era justamente um dos lugares que eu havia previsto que daria uma boa foto. Com olhar curioso foi ao poucos se movendo até chegar justamente na posição onde eu havia idealizado, enquanto isso o dedo permaneceu grudado no disparador da câmera.

Olhar curioso do joão-porca, Lochmias nematura, observando através da ramaria. Parque Nacional do Itatiaia - RJ. (c) Luciano Moreira Lima. Canon 7D, Canon 300mm f/4 + extender 1.4x, ISO 600, f/5.6, 1/60, flash de preenchimento.

João-porca, Lochmias nematura, fazendo pose no "limpo". Parque Nacional do Itatiaia - RJ. (c) Luciano Moreira Lima. Canon 300mm f/4 + extender 1.4x, ISO 600, f/5.6, 1/60, flash de preenchimento.

As duas fotos acima foram as melhores da sequência que eu consegui. No final, acho que a foto do joão-porca com o olhar curioso entre os vultos da folhagem ilustra muito bem o comportamento tímido da espécie e por isso gostei mais dessa do que daquela em que o passarinho faz pose no lugar que eu havia ansiosamente desejado. Fotografia de natureza, especialmente de aves, pode ser um pouco frustrante às vezes, mas em outras o que você achava que estava bom pode fica ainda melhor…

Perdido e achado: o tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca

por Rafael Marcondes

Muita gente costuma achar que a maioria dos animais e plantas já são bem conhecidos e não falta muito a se descobrir. Um dos objetivos do Caapora é revelar que essa crença está muito longe da realidade: nossa fauna é tão diversa e o Brasil é tão grande e relativamente pouco explorado cientificamente que todo ano são descritas dezenas de novas espécies de animais no nosso país, incluindo até mesmo aves, que supostamente estão entre os grupos de animais mais bem estudados. Mas talvez mais interessante e surpreendente do que a descrição de novas espécies é o fato de que há diversos casos de aves que foram descritas há décadas ou às vezes quase um século atrás e nunca mais foram vistas! Os últimos anos, felizmente, têm visto uma série de redescobertas destas espécies conhecidas apenas de sua descrição. Como minha primeira contribuição nessa empreitada do Caapora para revelar as camadas mais obscuras da fauna brasileira, o tema desse post é uma dessas aves “perdidas e achadas”: o tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca.

O tiê-bicudo foi descrito pelo zoólogo francês Jacques Berlioz em 1939 com base em um único macho coletado no ano anterior por J. A. Vellard, um especialista em aranhas que era o naturalista de uma expedição pelo Brasil do famoso antropólogo Claude Lévi-Strauss. Esse espécime, o holótipo da espécie (principal indivíduo no qual se baseia a descrição de uma espécie nova), encontra-se até hoje no Muséum National d’Histoire Naturelle, em Paris e, segundo Berlioz, foi coletado em “Juruena, northeast of Cuyaba”.

Por mais de seis décadas que seguiram à sua descoberta o tiê-bicudo jamais voltou a ser encontrado, tornando-se uma das maiores incógnitas da ornitologia neotropical. Por praticamente 64 anos tudo que se sabia sobre a espécies resumia-se ao espécime coletado por Vellard e as poucas informações fornecidas em sua descrição. Informações básicas permaneceram completamente ignoradas por todo esse tempo, como por exemplo a morfologia da fêmea, vocalização, alimentação e demais aspectos sobre sua biologia. Não por acaso o tiê-bicudo chegou praticamente a ser considerado extinto.

Lévi-Strauss acampado à beira do rio Machado, onde ficou quinze dias entre outubro e novembro de 1938, com alguns índios tupi-cavaíba. Agarrando-se à bota dele, está a macaquinha Lucinda, que o antropólogo adotou durante a viagem. Clique na imagem para ser direcionado a reportagem da revista Leituras da História sobre esse famoso antropólogo que chefiou a expedição em que foi descoberto o tiê-bicudo.

Os poucos ornitólogos que se empenharam em redescobrir a espécie esbarravam em uma outra dificuldade além de sua raridade: o rio Juruena fica a noroeste de Cuiabá, não a nordeste, como mencionado por Berlioz, o que levantava certa suspeita sobre o real local de coleta da espécie. Essa história só começou a mudar em 2003, quando o tiê-bicudo foi encontrado no Parque Nacional das Emas, no estado de Goiás, surpreendentemente a 750 km de distância do rio Juruena! (Buzzeti & Carlos, 2005) Desde então, o tiê-bicudo, inclusive fêmeas, tem sido regularmente observado nessa localidade.

Mas a virada mesmo para o tiê-bicudo só veio três anos depois, em 2006, quando o ornitólogo Carlos Ernesto Candia-Gallardo, da Universidade de São Paulo, gravou e fotografou um macho da espécie às margens do rio Juruena, na região da Chapada dos Parecis, estado do Mato Grosso. Esse registro acabou levando ao primeiro estudo da espécie desde sua descrição, publicado por Candia-Gallardo em 2010 na revista Bird Conservation International, em parceria com Luís Fábio Silveira e Adriana Akeni Kuniy. É desse artigo que retiro a maior parte da informação nesse post.

Tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca. Fotografado por Carlos Candia-Gallardo no local de sua descoberta original. Clique na imagem para ver mais fotos da espécie no Wikiaves.

A gravação do canto da espécie nesse primeiro encontro permitiu, através da técnica do play-back (em que aves, altamente territoriais, são atraídas pela reprodução do canto de sua própria espécie), a localização de mais indivíduos em diversas localidades na mesma região. Descobriu-se que o hábitat preferencial da espécie são matas ou campinas alagadas ao longo de rios, contrariando a descrição original da espécie, que dava o hábitat como “arid forest or scrub”. Isso talvez ajude a explicar por que o tiê-bicudo passou tantos anos desaparecido: os ornitólogos estavam simplesmente procurando no hábitat errado!

Clique para ouvir a vocalização da espécie gravada por Bruno Salaroli e disponível no site Wikiaves.

A redescoberta também levou à primeira descrição detalhada da fêmea do tiê-bicudo, com base em um espécime coletado e depositado no Museu de Zoologia da USP, onde ficará para sempre disponível a todos os pesquisadores interessados em estudar a espécie.

Os pesquisadores que redescobriram o tiê-bicudo também esclareceram com precisão a localidade-tipo da espécie (localidade onde foi coletado o holótipo). Pesquisando nos diários de Castro Faria, um antropólogo brasileiro que também acompanhava a expedição de Lévi-Strauss, descobriram que na data em que o tiê-bicudo foi coletado, Vellard estava acampado na Estação Telegráfica de Juruena (a noroeste de Cuiabá, confirmando o erro na descrição original). Essa estação era parte da linha telegráfica completada em 1915 pela comissão liderada pelo marechal Cândido Rondon, e que até a década de 1960 era o único acesso àquela região.

Observou-se que o tiê-bicudo vive geralmente solitário ou em casais, e alimenta-se de insetos e principalmente sementes. Esse hábito alimentar não é comum dentre os Thraupidae, a família em que o tiê-bicudo tem sido classificado e que também inclui os demais tipos de tiês, as saíras, saís e sanhaços. Isso nos leva a um dos aspectos mais surpreendentes sobre o tiê-bicudo: ele talvez sequer seja um tiê! O comportamento em geral da espécie, incluindo hábitos alimentares e a vocalização, e os padrões de plumagem assemelham-se mais aos de espécies de outra família, os Emberizidae, que inclui aves como os tico-ticos, os cardeais e os papa-capins. Especificamente, a plumagem, formato do bico e hábitat do tiê-bicudo são muito semelhantes aos do papa-capim-de-coleira, Dolospingus fringilloides, uma espécie pouco conhecida da família Emberizidae que vive no norte do Brasil, Venezuela e Colômbia. Estudos do esqueleto e moleculares (lembrando que apesar da redescoberta, o tiê-bicudo ainda é absolutamente desconhecido do ponto de vista genético e da anatomia interna) poderão revelar o verdadeiro parentesco do tiê(?)-bicudo.

O capítulo mais recente na história do tiê-bicudo veio em 2010, quando o ornitólogo Guilherme R. R. Brito e colegas, do Museu Nacional da UFRJ, descobriram na Serra do Cachimbo, no Pará, mais uma nova população da espécie. Essa população está a 400km do alto Juruena e a 1000km do Parque Nacional das Emas. Para uma espécie que passou décadas desaparecida, a distribuição do tiê-bicudo está se revelando mais ampla do se imaginava, ressaltando que uma das principais razões para o “sumiço” foi a simples falta de exploração científica. Sabendo onde e como procurar, aos poucos o tiê-bicudo está se revelando. Quantas espécies desaparecidas ou novas será que não estão por aí nesse Brasil, esperando serem (re)descobertas?

Infelizmente, esse post tem que terminar com um parágrafo sombrio. O tiê-bicudo está criticamente ameaçado de extinção, e estima-se que existam apenas entre 50 e 250 indivíduos vivos da espécie, somando as populações do Parque Nacional das Emas e do alto rio Juruena (BirdLife, 2011) – a nova população, na Serra do Cachimbo, ainda não entrou nesse cálculo. Seu hábitat, áreas alagáveis às margens de rios, é naturalmente fragmentado e vulnerável, e toda a região do Centro-Oeste brasileiro está sob forte expansão agrícola, principalmente da soja. Para piorar a situação, a região do alto Juruena é alvo de projetos de nada menos do que doze usinas hidrelétricas, sendo duas de grande porte. Pelo menos cinco já estão em construção (http://www.oeco.com.br/reportagens/37-reportagens/23761-o-bicudo-e-as-barragens). Os alagamentos causados por essas usinas podem suprimir grande parte do hábitat da espécie. Talvez o tiê-bicudo tenha sido redescoberto apenas para logo ser perdido de novo, dessa vez para sempre. Ou bem a tempo de ser salvo.

Referências:

BirdLife, 2011. Species factsheet: Conothraupis mesoleuca.

Brito, G. R. R. et al. 2011. First record of the Cone-Billed Tanager (Conothraupis mesoleuca) in Pará state, Brazil, with inferences about its potential distribution. Libro de Resumenes – IX Congresso de Ornitologia Neotropical.

Buzzeti, D. e Carlos, B. A. 2005. A redescoberta do tiê-bicudo (Conothraupis mesoleuca) (Berlioz, 1939). Atualidades Ornitológicas, vol. 127, p. 4–5.

Candia-Gallardo, C. E., et al. 2010. A new population of the Cone-billed Tanager Conothraupis mesoleuca, with information on the biology, behaviour and type locality of the species. Bird Conservation International. vol. 20, n. 2, p. 149-160.

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