Tinha um joão-porca no meio do caminho…
por Luciano Moreira Lima
Poucos lugares podem ser tão produtivos para o ornitólogo ou observador de aves quanto pequenas estradas que se embrenham floresta a dentro, especialmente as abandonadas. Quando comparadas as estreitas e escuras trilhas, o chão geralmente mais limpo e o campo de visão expandido tornam o caminhar nesses locais mais silencioso e atento, em horários propícios a cada dez passos se topa com um ou outro ser emplumado.
Para aqueles com equipamento fotográfico a tiracolo a situação é ainda mais proveitosa. A luz, sempre escassa no sub-bosque sombrio da mata, é mais abundante próximo as bordas permitindo uma abertura mais fechada e um ISO mais baixo, resultando em imagens mais nítidas e com menos ruído, o que pode fazer toda diferença na hora de um bom click.
Já era meio de tarde e a passarada meio quieta permitiu que algumas borboletas e libélulas diminuíssem meu passo em uma caminhada por uma estrada abandonada nas proximidades do centro de visitantes no Parque Nacional do Itatiaia. Depois de alguns clicks retomei o curso e alguns passos a frente lá estava o amigo Bruno Rennó com o olho atento pra dentro do mato. Dava dois passos para direita, dois para esquerda, botava o olho no visor da câmera e assim que me viu pelo canto do olho acenou para que eu me aproximasse em silêncio.
Perguntei curioso ainda a certa distância:
– Que têm aí Bruno Carlos? –
Me respondeu com o olho grudado no visor da câmera enquanto mirava pra dentro da mata:
– Chega aí! Têm um Lochmias “dando mole” –
Para aqueles que ainda não foram apresentados, Lochmias nematura, é o único representante do seu gênero e um parente não muito distante do famoso joão-de-barro, Furnarius rufus. No entanto, talvez pelo comportamento mais arredio, não teve o merecido reconhecimento de seu primo, cujo nome popular faz alusão a incrível habilidade de construir ninhos de barro que mais parecem verdadeiras casas (algumas vezes até mesmo prédios – veja no WikiAves – ) e acabou sendo batizado pelo povo de joão-porca, um nome vulgar, no mínimo vulgar.
A voz do povo é a voz de Deus, mas para aqueles indignados com um nome tão ultrajante segue a explicação extraída do livro sagrado dos ornitólogos tupiniquins, Ornitologia Brasileira, de Helmut Sick:
“Habita as margens de córregos de densa vegetação, onde pula no solo ou vai de pedra em pedra entrando mesmo na água rasa à caça de insetos e larvas; às vezes apanha folhas inteiras caídas na água à cata de presas, inspeciona a lama de chiqueiros e esgotos (daí a série de nomes vernaculares pouco airosos de que é objeto), vira folhas e torrões de terra com o bico.”
Pessoalmente acho seu nome injusto, pois foram poucas as vezes que vi o joão-porca forrageando próximo a áreas mal cheirosas que lhe justificassem tal adjetivação. Ao contrário, a espécie pode quase sempre ser observada buscando animalejos entre as pedras de córregos limpíssimos que serpenteiam pela mata e onde sua voz – ouça no WikiAves – geralmente se mistura ao chuá incessante de alguma cachoeira próxima.
Nesse cenário, Lochmias parece comporta-se como um equivalente ecológico das aves do gênero Cinclus, família Cinclidae, espécies de pássaros semi-aquáticos que habitam rios em diversas regiões do mundo, mas que não ocorrem no Brasil. No entanto, até onde se sabe, Lochmias não é capaz de mergulhar como fazem os Cinclus. Falar em Cinclus e Lochmias nos remete ao misterioso Thamnophilus aquaticus, supostamente descoberto por J. T. Descourtilz e mencionado por Silva Maia (1851) em um parágrafo sobre uma “Especie nova e curiosa de passaro brasileiro” – veja aqui -. Embora o gênero Thamnophilus pertença a família Thamnophilidae, ou seja, diferente do Lochmias, não vejo explicação melhor para as observações de Descourtilz do que um joão-porca que se atreveu explorar atrás da cortina d’água de uma cachoeira ou situação parecida.
Mas voltemos a estrada abandonada no Itatiaia… Lochmias que se preze raramente “dá mole” pra foto e nas poucas vezes que presenciei essa situação, não durou mais que 30 segundos. Por isso apressei o passo ao ouvir a resposta do Bruno, mas me aproximei sem muita confiança, pois duvidava que o pássaro estivesse ainda ao alcance da minha lente. Dito e feito, só deu tempo de ver o bicho adentrar na brenha.
No entanto, um ou outro galho mais exposto no meio da ramaria me diziam que aquela podia ser uma chance muito boa de conseguir um registro fotográfico do joão-porca, objetivo que várias vezes já havia perseguido sem conseguir sucesso. Ipod na mão, reproduzi baixo por poucos segundos seu chamado característico e quase imediatamente o pássaro se aproximou pousando em um galho caído cuja uma das pontas era justamente um dos lugares que eu havia previsto que daria uma boa foto. Com olhar curioso foi ao poucos se movendo até chegar justamente na posição onde eu havia idealizado, enquanto isso o dedo permaneceu grudado no disparador da câmera.
As duas fotos acima foram as melhores da sequência que eu consegui. No final, acho que a foto do joão-porca com o olhar curioso entre os vultos da folhagem ilustra muito bem o comportamento tímido da espécie e por isso gostei mais dessa do que daquela em que o passarinho faz pose no lugar que eu havia ansiosamente desejado. Fotografia de natureza, especialmente de aves, pode ser um pouco frustrante às vezes, mas em outras o que você achava que estava bom pode fica ainda melhor…