Primeira quiz do Caapora!
Para os bons entendedores de primatas, aqui está o primeiro quiz do Caapora! Digam o nome científico das duas espécies de primatas do Novo Mundo representadas no detalhe dessa pintura E o nome e o autor do quadro a qual esse detalhe pertence. Daremos a resposta em 48 horas.
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UPDATE
Parabéns a todos que deram a sua opinião ! Sim o Saguinus oedipus tava fácil. Para a identificação do “desbotado” eu concordo com o artigo que a Carla citou, do Dante Teixeira e Nelson Papavero (O tráfico de primatas brasileiros nos séculos XVI e XVII), onde os autores identificam a espécie como Leontopithecus rosalia, o mico-leão dourado. A morfologia denuncia: as orelhas cobertas por uma juba, como a Carla disse, só ocorrem nos micos leões (Leontopithecus) e no Callimico, que é inteiro negro. Os micos-leões também apresentam dígitos alongados em comparação aos outros micos e saguis. A coloração desbotada pode ser proveniente de algum indivíduo que tenha perdido a coloração devido aos nada fáceis meses passados a bordo de um navio já que, como o já mencionado artigo de Teixeira e Papavero cita, “quase todos [os micos-leões] morriam no mar”.
Meus argumentos a favor da imagem representar um L. rosalia são dois: o primeiro é que a espécie mais parecida, Saguinus melanoleucus, só foi descrita no século XX, pois ela ocorre em um território praticamente inexplorado na época em que o quadro foi feito (a espécie ocorre no oeste do Acre e leste do Peru).
O outro argumento, talvez o mais legal, é que o pintor escolheu essas espécies para colocar na mão da infanta Isabella Clara Eugênia (que era filha do Felipe II rei de Espanha) justamente para representar a união ibérica, que foi o longo período em que Portugal e suas colônias ficaram sob domínio espanhol (de 1580 até 1640). Saguinus oedipus é uma espécie endêmica da Colômbia, e Leontopithecus rosalia é um mamífero endêmico da Mata Atlântica do sudeste brasileiro. Logo, se unirmos isso ao gosto da família real espanhola por saguis e micos, parece sensato colocar um dos pequenos primatas que na época mais bem representava o Brasil, o mico-leão. É surpreendente que ainda hoje essa espécie bandeira (e aparentemente muito exportada no passado) represente a nossa fauna, estando presente até nas notas de 20 reais.
Para finalizar, aí vai uma imagem do quadro inteiro:
Bichos do Brasil: Atretochoana eiselti
As cecílias são os mais esquecidos dos vertebrados. A maioria das cerca de 200 espécies deste estranho grupo, de existência absolutamente desconhecida pela maioria dos seres humanos, se assemelha superficialmente muito mais a minhocas do que a outros vertebrados. Pequenos, sem membros, alongados e muitas vezes fossoriais, esses animais constituem a ordem Gymnophiona. Ao lado dos mais populares anuros (sapos, rãs e pererecas) e salamandras, formam a classe Amphibia.
Uma espécie de gimnofiona era para mim um dos maiores símbolos do quanto o Brasil ainda desconhece sua fauna. Essa espécie, Atretochoana eiselti, foi descrita em 1968 com base em um único e antigo exemplar depositado no museu de história natural de Viena. Trata-se da maior cecília do mundo, com quase um metro de comprimento e até dez centímetros de circunferência.
O mais surpreendente, no entanto, é que a Atretochoana simplesmente não possui pulmões. Essa característica não é única entre os tetrápodes: pulmões também estão ausentes muitas em muitas espécies de salamandras (inclusive no único gênero que ocorre no Brasil, Bolitoglossa), mas estas têm no máximo poucos centímetros de comprimento, fazendo da Atretochoana não só a maior cecília mas também, de longe, o maior tetrápode sem pulmão conhecido.
O frustrante é que esse espécime do museu de Viena, possivelmente coletado pelo naturalista austríaco Johann Natterer em suas viagens pelo Brasil no início do século 19, não possui qualquer informação associada, exceto que provém da América do Sul. Em 1998, um segundo exemplar foi descoberto, na coleção da Universidade de Brasília (UnB), mas sem quaisquer informações sobre a localidade de coleta. A Atretochoana possui uma morfologia consistente com hábitos aquáticos, e devido à ausência de pulmões e a seu grande tamanho, especulou-se que viveria em riachos frios e com corredeiras do Brasil central, condições em que a água é bastante oxigenada, favorecendo a respiração cutânea.
Portanto essa era a absurda situação até 2011: a maior gimnofiona do planeta, o maior tetrápode apulmonado do planeta, um animal enorme de quase um metro de comprimento, e podíamos apenas especular sobre qual seria seu hábitat e até distribuição geográfica! Quem sabe os dois únicos exemplares coletados seriam para sempre os últimos e únicos testemunhos de uma espécie que já se fora…
O mistério da Atretochoana começou a ser finalmente resolvido em 2011, quando herpetólogos do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA), receberam fotos de um grande animal capturado num matapi, uma armadilha para captura de camarão colocada em águas rasas. O animal não foi capturado, mas com base nas fotografias os cientistas o identificaram como um exemplar de Atretochoana eiselti. Surpreendentemente, as fotografias não foram realizadas num riacho frio e rápido do Brasil central, mas sim numa praia na ilha de Mosqueiro, logo ao norte de Belém, no estuário do rio Amazonas.
Pouco mais de um mês depois, os mesmos herpetólogos receberam novas fotos de Atretochoana, e desta vez exemplares foram coletados. A coleta ocorreu a 2500 km de Belém, numa piscina formada no leito seco do rio Madeira dias após o represamento do rio para a construção de hidroelétrica de Santo Antônio, em Rondônia. Subsequentemente, os herpetólogos do Museu Goeldi conseguiram obter espécimes também da região da ilha de Mosqueiro, possibilitando a publicação das primeiras informações sobre a espécie em seu ambiente natural e a análise de espécimes recém-coletados. Esse estudo foi publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi por Marinus Hoogmoed, Adriano Maciel e Juliano Coragem, e dele tiro todas as informações desse post.
A primeira conclusão permitida pela redescoberta é que, além de já deter os prêmios de maior cecília e maior tetrápode sem pulmões, a Atretochoana é séria concorrente ao título de animal mais nojento do planeta. Cinza, lisa e comprida, não dá para saber se parece mais uma sanguessuga anabolizada ou uma cobra deformada… E para piorar, dependendo do ângulo, ainda tem um leve aspecto fálico, o que levou parte da mídia a apelida-la de “penis snake”… (Falando nesse assunto, as gimnofionas são os únicos anfíbios que possuem um órgão copulatório especializado, chamado falodeu. Aposto que essa informação mudou sua vida, heim?)
A segunda conclusão é que as especulações sobre seu hábitat estavam totalmente erradas. Ambas as localidade conhecidas são de águas quentes e turvas. Na região do rio Madeira em que foi coletada, ainda há várias corredeiras, que aumentam a oxigenação da água, mas no estuário do Amazonas as águas são lentas. De modo geral, não é um ambiente em que se esperaria encontrar um animal que depende de respiração somente através da pele.
Os capilares sanguíneos da Atretochoana são muito próximos da pele, confirmando que ela muito provavelmente realiza respiração cutânea. No entanto, devido a seu grande tamanho corporal, muitas vezes maior que outros tetrápodes apulmonados, deve haver outras superfícies de troca gasosa. Hoogmoed e seus colegas especulam que essa respiração complementar pode ocorrer na cavidade bucofaríngea e não excluem a possibilidade de respiração intestinal ou até cloacal, como ocorre em algumas tartarugas (e aumentando as chances da Atretochoana no concurso de animal mais repugnante do mundo).
A presença da Atretochoana em duas localidades tão distantes sugere que ela deve ser amplamente distribuída (ainda que talvez rara) na Amazônia brasileira e que seu desaparecimento por tantos anos foi devido simplesmente à falta de procurar no lugar certo. Seu mistério começou a ser desvendado, mas muito ainda resta para se descobrir sobre esse peculiar animal. A maior dúvida é fisiológica (como respira um animal deste tamanho, sem pulmões e em águas não particularmente ricas em oxigênio?), mas virtualmente nada se sabe ainda sobre sua história natural, hábitos e relações filogenéticas.
Como escreveram seus redescobridores: “Ainda temos um longo caminho a percorrer antes de considerar esta espécie ‘conhecida’”. E, pensando assim, quantas espécies será que podemos dizer que são realmente conhecidas?
Bichos do Brasil: urutaus e mães-da-lua
O nome popular já diz muito sobre essas aves: “urutau” vem do guarani guyra (ave) e tau (fantasma). Tratam-se dos membros da família Nyctibiidae, conhecidos como urutaus ou mães-da-lua, um dos grupos mais fascinantes (e bizarros) de aves brasileiras. Essa pequena família inclui sete espécies de aves noturnas, cinco das quais ocorrem no Brasil. Todas são incluídas no gênero Nyctibius e exclusivas dos neotrópicos (região biogeográfica que inclui a América do Sul, Central, partes do México e do extremo sul dos Estados Unidos).
Muita gente chama os urutaus de feios, mas eu prefiro dizer que eles são apenas estranhos. Os membros dessa família têm uma cabeça enorme e a boca descomunal, mas o bico é minúsculo. E ainda por cima seus enormes olhos são esbugalhados e amarelos. As pálpebras possuem uma engenhosa adaptação: duas pequenas incisões que permitem à ave enxergar mesmo com o olho fechado.
A plumagem é cinza ou amarronzada. Essas cores, em conjunção com o hábito de pousar em postura ereta na ponta de galhos verticais, conferem aos urutaus uma das melhores camuflagens dentre todas as aves do mundo. Essa postura é assumida até mesmo pelos filhotes mal saídos do ovo. Podem ter seus poleiros de descanso diurno em mourões de cerca ou outros troncos totalmente expostos, em plena luz do dia, tal é a excelência de sua camuflagem. Com certa freqüência são surpreendidos nesses poleiros, e, de tão estranhos que são, acabam virando até notícia de jornal, como foi o caso até mesmo em plena capital paulista.
Como se esses hábitos crípticos já não bastassem para dar um ar fantasmagórico aos urutaus, suas vocalizações podem ser ainda mais estranhas. Variam desde o melancólico lamento da mãe-da-lua (Nyctbius griseus) – citado diversas vezes por Guimarães Rosa em seu Grande Sertão: Veredas – até o aterrorizante berro da mãe-da-lua-gigante (Nyctibius grandis). Imagine o que os primeiros europeus a chegar a nossas terras não devem ter pensado ao ouvir essas vozes sinistras ecoando na noite…
Tudo isso levou o urutau a ser figura popular no folclore brasileiro. Uma das histórias mais difundidas conta que a mãe-da-lua seria uma jovem que perdeu seu amor. Era uma menina do sertão muito feia, mas muito inteligente. Certa noite, encontrou um belo príncipe nas redondezas e conseguiu impressioná-lo com sua inteligência. Quando o príncipe estava prestes a pedi-la em casamento, a lua cheia surgiu por detrás das montanhas, iluminando o rosto da jovem. Assustado com sua feiúra, o príncipe fugiu para nunca mais voltar. Desolada, a garota procurou uma feiticeira e pediu para ser transformada em uma ave, para buscar o príncipe onde quer que ele estivesse. A feiticeira consentiu, e assim nasceu a mãe-da-lua. No entanto, mesmo após longa procura, a garota em forma de ave não conseguiu encontrar o príncipe. Voltou à feiticeira e pediu para ser transformada de volta em gente, mas isso estava fora dos poderes da bruxa. Desde então, a garota vaga pela noite como uma ave feia e triste, e sempre que aparece a lua, solta seu pio melancólico “foi, foi, foi…”, lembrando do príncipe que a deixou.
Voltando agora ao aspecto mais científico, a família Nyctibiidae é parte da ordem Caprimulgiformes, que inclui outras aves noturnas, como os igualmente bizarros “frogmouths” (família Podargidae) da Ásia e Oceania e os mais familiares bacuraus e curiangos (Caprimulgidae). Suas características únicas, no entanto, e a existência de um urutau fóssil datado de 25 milhões de anos (Euronyctibius kurochnikii) não deixam dúvidas que se trata de um grupo muito antigo e distinto. Este fóssil provém da França, sugerindo que a família já teve uma distribuição bem mais ampla que a atual. A própria separação entre as espécies da família aparentemente é bastante antiga, já que, apesar de sua morfologia externa bastante homogênea, possuem enorme divergência genética e diversas diferenças no esqueleto, sugerindo que possam no futuro ser separados em gêneros distintos.
A família dos urutaus guarda ainda uma das espécies de aves brasileiras “perdidas e achadas” nas últimas décadas: o urutau-de-asa-branca (Nyctibius leucopterus), que ficou incríveis 168 anos desaparecido para a ciência. Essa espécie foi descoberta em 1821 no litoral da Bahia pelo naturalista Maximiliano de Wied-Neuwied. Desde sua descrição não se teve mais notícias dela até 1989, quando ela foi reencontrada nos arredores de Manaus, em plena Amazônia, a mais de 2500 km do litoral da Bahia. Os hábitos crípticos dos urutaus certamente contribuíram para essa espécie passar tanto tempo sumida. Mas, felizmente, quando ocorreu essa redescoberta a vocalização do urutau-de-asa-branca (um límpido assobio), até então desconhecida, pôde ser gravada. Munidos dessa gravação, ornitólogos utilizando a técnica do playback (em que aves, altamente territoriais, são atraídas pela reprodução do canto de sua própria espécie) localizaram a espécie em diversas localidades amazônicas, do Peru às Guianas, e, em 2003, de novo no litoral da Bahia.
Para saber mais: meu amigo e especialista em urutaus e bacuraus Thiago V. V. Costa estudou a anatomia dos urutaus. Seu trabalho pode ser conferido em Costa & Donatelli (2009). Cestari et al. (2011) estudaram o cuidado parental de Nyctibius griseus. O artigo inclui uma interessante foto do filhote já em posição ereta no “ninho” – se é que podemos chamar assim. Sobre as redescobertas de N. leucopterus, confira Cohn-Haft (1993) e Whitney et al. (2003). Para uma introdução popular a esses bichos bizarros, veja o texto de Fernando Straube na revista Atualidades Ornitológicas: Straube (2004).
Primatofobia e questões existenciais…
por Guilherme Garbino
Foi na primeira metade século XVI que Copérnico retirou a terra do centro do universo, trocando-a pelo Sol. Após correr um sério risco de ser queimado vivo, o cientista retirou suas alegações. Anos depois, Galileu Galilei, considerado um dos pais do método científico, fez a mesma afirmação e foi condenado a prisão domiciliar.
Incrivelmente, só dois séculos depois de Galileu ter jogado o planeta Terra para escanteio é que surgiram os primeiros indícios de um outro reposicionamento universal, o do lugar do ser humano no universo, assumindo nossa espécie a posição de “apenas outro grande símio”. Mais estranho ainda é pensar que o “Príncipe dos Botânicos”, Carl Linnaeus, o grande classificador do século XVIII e indubitavelmente um não-evolucionista, colocou o Homo sapiens dentro da ordem Primates.
Na décima edição de seu Systema Naturae, Linnaeus criou o gênero Homo. Originalmente, o gênero incluía duas espécies: Homo sapiens e Homo troglodytes. Como de praxe, o autor oferece uma diagnose de suas espécies. A descrição de H. sapiens são apenas três palavras: Nosce te ipsum (Conheça a ti mesmo). A segunda espécie de Homo, entretanto, claramente refere-se a uma criatura mitológica que, pelas fontes citadas por Linnaeus, seriam seres albinos habitantes de cavernas. Há também um relato do viajante holandês Jakob de Bondt que se refere a uma criatura que pode ser uma orangotango fêmea ou uma mulher com hipertricose. O Homo troglodytes de Linnaeus não tem nada a ver com o Simia troglodytes de Blumenbach, este último o nome científico do chimpanzé (hoje Pan troglodytes). O sistema binomial de nomenclatura admite o mesmo epíteto específico em gêneros diferentes.
A última espécie de Homo descrita por Linnaeus, o Homo Lar, também é uma criatura real, nesse caso gibão de lar (hoje Hylobates lar), que foi descrito, assim como outros primatas, em seu Mantissa Plantarum, embora, até onde sei, não se trate de uma espécie de planta. Três novas espécies de “símios” foram ainda posteriormente descritas por Linnaeus, em 1760, na dissertação de seu aluno, Hoppius, entitulada Anthropomorpha (até meados do século XIX era costume na Suécia que o professor escrevesse a tese e o aluno apenas arcasse com os custos!): Simia Satyrus, Simia Lucifer e Simia Pygmaeus; Todas baseadas em ilustrações das quais a única que se refere a uma criatura real é Simia Pygmaeus, o orangotango de Bornéu que o classificador sueco nomeou pygmaeus por pensar ser esse um membro da raça de pigmeus mencionada por Homero.
Embora essa primeira classificação tenha um teor otimista e de justiça filogenética (ao menos para mim, que leio isso em 2012), colocando os humanos firmemente na Ordem que incluía os outros macacos, lêmures, társios, colugos e morcegos, a classificação de Linnaeus, vale lembrar, tinha um caráter prático e artificial, agrupando os seres vivos, por vezes, com base em um único caráter similar compartilhado (no caso de Primates, o número de incisivos). Para termos alguma noção de como essa classificação do homem foi recebida numa Europa antropocêntria, o alemão Blumenbach, em 1775, apontou que o grande erro de Linnaeus foi misturar atributos dos símios com os do homem.
A escola francesa pós-revolução e os alemães, no entanto, insistiram em dar um lugar especial ao homem; nesse sentido, nomes muito conhecidos como Georges Cuvier, Étienne Geoffroy Saint-Hilaire e Johann Blumenbach separaram o Homo sapiens em uma ordem exclusiva de mamíferos, Bimana (“duas mãos”), e os outros primatas na ordem Quadrumana (“quatro mãos”). Sir Richard Owen, diretor do Museu Britânico, foi além e classificou o homem como único representante de Archencephala (ou cérebros dominantes) uma de suas quatro subclasses de Mammalia, com base em características supostamente únicas de nosso encéfalo. Na época essa idéia foi veementemente contestada, principalmente por Thomas H. Huxley.
O extremo talvez tenha sido atingido, em pleno século XX, por Julian Huxley, neto de T. H. Huxley, que em 1942 propôs separar o homem em um Reino a parte, o “Psicozoa”, argumentando que possuímos o caráter único de cultura e “domínio do mundo” (o que quer que isso queira dizer). Os homens, principalmente os do sexo masculino da Europa e dos EUA, simplesmente se recusavam a aceitar nosso passado simiesco.
Somente um século após Linnaeus outros naturalistas voltaram a incluir o homem em Primates. Ninguém menos que Charles Darwin, em seu livro de 1871, “The Descent of Man and selection in relation to Sex” (A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo), propôs, depois desse enorme hiato, que “o homem, sob um ponto de vista genealógico, pertence aos Catarhini (sic)”. Ao saber disso, a mulher do bispo de Worcester exclamou a famosa frase: “descendente de símios! Querido, vamos rezar para que isso não seja verdade, mas se for rezemos para que isso não se espalhe!”.
Essa aversão ao “rebaixamento” do homem fez com que mesmo os anatomistas mais experientes do ocidente ignorassem a evidência diante dos seus olhos. De fato, W.K. Gregory, em artigo publicado na Science, criou o termo “pitecofobia”, que fica perfeitamente definido nas próprias palavras do autor (em tradução livre minha): “Esse novo tipo de fobia pode, portanto, ser chamada de pitecofobia, ou o medo de símios, especialmente o medo de símios como parentes próximos ou ancestrais”. E depois adiciona, com sarcasmo: “Durante os últimos anos essa fobia se tornou quase pandêmica; especialmente nas comunidades rurais”.
Hoje o homem é classificado (pela maioria dos autores) como membro da famíla Hominidae, que também inclui os chimpanzés e bonobos (gênero Pan), gorilas (gênero Gorilla) e os orangotangos (Pongo), sendo que nosso gênero teria se separado de Pan há mais ou menos 6 milhões de anos. Existe ainda o que seria impensável pelos vitorianos do século XIX: a proposta da criação de um “direito dos grandes-símios”, de maneira similar aos Direitos Humanos, mas distinta dos Direitos Animais, o “Great Ape Project”.
Esse exemplo serve para nos mostrar como preconcepções errôneas e fortemente enviesadas fazem com que um corpo enorme de evidência seja ignorado, ou que haja uma “forçada de barra” para garantir nossa exclusividade, como fez J. Huxley. Como responsável por tantas outras mudanças de paradigma na biologia, a evolução de Darwin e Wallace cimentou o pedestal humano junto aos outros grandes símios e de lambuja respondeu duas das grandes perguntas existenciais que sempre acompanharam a humanidade: “quem somos e de onde viemos”. Para saber para onde vamos “ligue djá” para o seu vidente de confiança…
Resgates de fauna e suas verdades ocultas
por Rafael Marcondes, Luciano Moreira Lima & Guilherme Garbino
Recentemente foi amplamente noticiado a morte em massa de animais silvestres afogados devido ao enchimento da represa da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, que está sendo construída no Rio Madeira, próximo à cidade de Porto Velho – RO. De acordo com uma pessoa que trabalhou nas atividades de resgate de fauna durante o enchimento do lago da usina, o resgate foi ineficaz e houve um verdadeiro extermínio de animais na região. Antas, tatus, pacas, cotias e diversos outros bichos se afogaram, morreram e apodreceram nas águas do Madeira. O consórcio Santo Antônio Energia, responsável pela construção da usina respondeu que realmente ocorreram mortes, mas elas teriam sido míseros “1,8%” do total de animais resgatados, 25.517, e que desses, 97,7% haviam sido devolvidos “saudáveis” a natureza.
Um pequeno exercício matemático revela uma verdade oculta e macabra por traz são desses números. Vamos raciocinar um pouco… Uma espécie típica de ave passeriforme possui uma densidade populacional de 1 casal a cada 5 hectares, ou 1 indivíduo a cada 2,5 hectares (Terborgh et al. 1990). Segundo a própria Santo Antônio Energia, a área a ser alagada é de 16.400 hectares. Essa área comporta, portanto, cerca de 6.560 indivíduos de uma espécie típica de pássaro. Numa estimativa, conservadora, 200 espécies de passeriformes ocorrem na região do alto Rio Madeira. Multiplicando 6.560 por 200, chegamos a outra estimativa, também conservadora, de mais de 1 milhão de pássaros na área a ser inundada! Apenas de aves passeriformes! Não estamos contando as demais aves, nem répteis, anfíbios, mamíferos, borboletas e a míriade de outros invertebrados. Se os contássemos, facilmente a conta chegaria a bilhões de animais. Nesse contexto, a afirmação da empresa de que teriam sido 459, ou melhor, 459,306 para ser mais exato, os animais mortos pelo alagamento dispensa mais comentários.
Vamos deixar um pouco de lado os infortunados que não conseguiram embarcar na Arca de Noé e nos concentrar em analisar o destino desses quase 25 mil animais resgatados e devolvidos “saudáveis” a natureza. Um ótimo ponto de partida para nos enveredarmos nessa questão é um elucidativo artigo do Professor Marcos Rodrigues, da UFMG, publicado em 2006 na revista Natureza & Conservação. Nessa publicação o autor levanta uma série de questões sobre o destino dos animais realocados, compartilhadas abaixo.
O objetivo declarado dos resgates de fauna é salvar animais que de outra maneira se afogariam. Para isso, equipes de biólogos e veterinários capturam animais, principalmente vertebrados, durante o enchimento da represa. Os animais capturados passam um breve período em centros de reabilitação e em seguida são liberados em áreas que, teoricamente, possuem características semelhantes àquelas de onde foram retirados, mas onde, obviamente, não haverá alagamento.
Embora lógico a primeira vista, esse procedimento parece ignorar o fato que muitas das espécies incluídas nesse bolo são territorialistas. Nesses casos, cada indivíduo, casal ou bando, dependendo da espécie, defende uma área da floresta (ou cerrado, caatinga, etc.), mantendo um território geralmente com fronteiras muito bem delimitadas. As vantagens do animal manter um território estão relacionadas principalmente com competição por recursos, incluindo alimento, abrigo e parceiros reprodutivos. Por isso, muitas espécies defendem exaustivamente seus territórios, não tolerando indivíduos da mesma, ou, por vezes, até de outras espécies. Em um ecossistema em equilíbrio, geralmente a maior parte do espaço está ocupada por territórios de uma dada espécie, imediatamente onde termina o território de um indivíduo, já começa o de outro. Áreas “desocupadas” geralmente não apresentam recursos necessários para aquela espécie.
O leitor provavelmente já entendeu onde acabaremos chegando. Ora pois, os animais resgatados são soltos em áreas onde geralmente não há territórios vagos, o que, consequentemente, resultará em uma superpopulação local da espécie. O que acontecerá então com esses indivíduos? As opções não são muitas e, possivelmente, eles tentarão tomar o território de um indivíduo já estabelecido. No entanto, as chances de sucesso são baixas, pois o recém-chegado, além de não conhecer o novo local, provavelmente estará em má-forma e estressado, após fugir da inundação, ser mantido em gaiolas, transportado etc., diminuindo ainda mais suas chances.
Caso não morra por motivos resultantes de disputas territoriais, o “invasor” poderá tornar-se um “satélite”: indivíduos que vagam em busca de um território desocupado. As chances de sobrevivência de um satélite, no entanto, são baixas, pois ele tem menor acesso a recursos e constantemente tem que se envolver em disputas com indivíduos cujos territórios ele invade. Além disso, quanto maior o número de satélites, mais tempo os indivíduos territoriais tem que passar se defendendo, diminuindo assim o tempo dedicado a atividades como alimentação e reprodução. Ou seja, a introdução dos indivíduos translocados pode impactar seriamente as populações naturais já estabelecidas
Assim, fica claro que resgates de fauna são muito pouco efetivos frente ao número de animais afetados no alagamento causado por uma usina hidrelétrica de grandes proporções, ou pior, podem funcionar como um “tiro no pé”. No entanto, é uma atividade com grande repercussão na mídia (quem nunca viu na televisão cenas de animais sendo resgatados por helicópteros e depois saindo de gaiolas para a “liberdade” da floresta?) e popular frente à opinião pública, que acredita que os animais estão realmente sendo “salvos” e ignoram que outros centenas de milhões foram, literalmente, por água abaixo ou sentenciados a vagar sem rumo nem direção pela floresta tal qual refugiados de um verdadeiro massacre. Problema? Nenhum… Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente.
Post scriptum: Reproduzo aqui um pertinente comentário sobre o texto acima feito no FaceBook por Vitor de Queiroz Piacentini, o qual lança luz sobre mais um grave problema associado a resgates de fauna e não abordado diretamente no nosso texto.
O texto tá muito bom, e poderia ir até mais longe: os resgates em rios divisores de fauna (= espécies ou subespécies aparentadas substituindo-se em margens opostas dos rios) simplesmente ignoram o papel biogeográfico desses rios. O bicho-preguiça da margem direita tá há 694.750 anos sem contato com a população da margem esquerda? Não faz mal, solta tudo no mesmo buraco! Danem-se os padrões filogeográficos que a evolução levou anos construindo (os números do exemplo são hipotéticos, mas sei de fonte segura que mais de 200 preguiças de uma margem foram soltas na outra!)
Fontes:
Rodrigues, M. 2006. Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia. Natureza & Conservação, vol. 4, n. 1, p. 29-38. (A maior parte das informações, raciocínio e conclusões desse post foi adaptada deste excelente artigo.)
Terborgh, J. et al. 1990. Structure and organization of an Amazonian forest bird community. Ecological Monographs, vol. 60, p. 213-238.
Novas reflexões sobre o caso da ex-invisível e atual fedida Lagoa da Turfeira.
por Luciano Moreira Lima
NOTA IMPORTANTE: para quem está acompanhando o caso a partir de agora é bom ler o texto anterior também publicado aqui no Caapora (scienceblogs.com.br/caapora) para se situar melhor.
Sexta-feira está aí, é hora de recapitular os fatos…
Brejos, pântanos, manguezais e ecossistemas correlatos sempre foram alvo de um certo preconceito por parte da população geral. Além do Shrek, que -embora simpático- não deixa de ser um ogro, outras coisas não muito desejáveis são comumente associadas às área úmidas, mesmo que injustamente. A malária, por exemplo, tem origem no expressão “mal are”, pois se acreditava que só do sujeito respirar o “mal ar” dos brejos era tiro e queda pra tombar na cama.
Ogros pantanosos, doenças olfativas e outras injustiças cometidas contra as áreas úmidas à parte, é difícil deixar de lado uma característica que faz com que certas pessoas “torçam o nariz” para esses ecossistemas, e que acomete principalmente os manguezais, um característico cheirinho de enxofre. Quem já desbravou áreas de mangue sabe bem do que eu estou falando. É só afundar um pouco na lama que logo sobe aquele cheirinho mais forte. Não adianta olhar com cara feia para o amigo que vai caminhando na frente, a real causa cheiro é a decomposição intensa de matéria orgânica por uma miríade de bactérias que durante o processo acabam liberando enxofre.
Da Ilha de Marajó, no PA, à região de Guaraqueçaba, no PR, já percorri muitas áreas úmidas no encalço da passarada, mas nem os manguezais dos fundos da Baía de Guanabara superam o “mal are” que está exalando das áreas úmidas aterradas nas imediações da Lagoa da Turfeira. Dessa vez, no entanto, a culpa não é das bactérias, o mau cheiro é “daquilo mesmo que vocês estão pensando” que fizeram ali. Cheguei à conclusão que o “mal ar” está tão forte que tem levado a uma desbaratinização completa de algumas pessoas que visitaram a área a ponto destas afirmarem veementemente que havia sim sido detectado uma redução do espelho d’água e depois tentarem justificar o injustificável argumentando coisas do tipo: “não não, não matamos ninguém só amputamos um braço e uma perna, mas agora vamos monitorar o estado do paciente, vai morrer não, pode ficar tranquilo”.
Oooooh catinga!!!
Não vou entrar em detalhes sobre o disse-me-disse, mas muito tem se falado e algumas perguntas importantes ainda não foram respondidas:
Afinal, há ou não há um estudo de impacto ambiental sobre a malfadada obra? Se há, cadê?
Se não há, por que não há? Só estão dispensadas de apresentarem tal relatório empreendimentos considerados de baixo impacto, o que nos leva a outra pergunta importante: obras às margens de uma lagoa de quase 70 hectares são de baixo impacto?
Uma outra questão básica pode ser levantada aqui: se não houve estudo de impacto ambiental, não houve uma caracterização da lagoa, se não houve caracterização da lagoa como se sabe o nível que ela atinge durante a época da cheia. Sem saber isso, como estipular então onde começa o limite de proximidade a que a obra pode chegar (sendo ela 0,1 ou 1000 metros)? Essa fedeu muito, não?
Tem também a questão da licença de instalação, mas primeiro vamos esperar a resposta a essas perguntas mais básicas.
Desde a minha ida na lagoa na fatídica tarde do último sábado (21/04) fiquei imaginando que uma foto aérea atual seria perfeita para demonstrar o estrago. E não é que ontem a foto apareceu? Aproveito para agradecer ao Celso Dutra que gentilmente postou a imagem no meu FaceBook, e também ao André Pol que produziu o esquema abaixo mostrando que de fato houve sim o aterro de áreas alagas, pelo menos 5, também de acordo com o André. Na foto é possível ver ainda o quão colado na lagoa está o empreendimento, pelo visto as capivaras vão ter que se adaptar e passar a pastar as algas do fundo do espelho d’água.
A única dúvida que faz tempo já deixou de existir é sobre a importância conservacionista da Lagoa da Turfeira e áreas úmidas adjacentes, fato apontado diversas vezes até mesmo por aqueles que querem destruir a área. Paradoxal não? Fica mais uma pergunta: se já estava todo mundo careca de saber que a área é importante, por que não criaram a reserva antes? Mas tudo bem, pensemos no “antes tarde do que nunca”. Já que a reserva será criada, que tal ser tranformada em uma opção de lazer, com visitação controlada, que vai completamente ao encontro da vocação ambiental do município de Resende?
Abaixo seguem duas fotos para servirem como exemplo de parques em áreas úmidas que além de conservarem a biodiversidade, promovem a eduacão ambiental e geram recursos. Qualquer um que admire a natureza e tenha tido a chance de passear um pouco fora do país sabe que mundo afora, especialmente em paises como o Japão da Nissan, existem inúmeras reservas como essas da foto, grande parte delas inclusive como uma diversidade de aves muito MENOR que a da Lagoa da Turfeira.
Falando em Nissan e Japão, o famoso jornalista Ricardo Boechat (que literalmente mandou a prefeitura de Resende pra PQP – duvida?! eu também duvidei… ouça aqui) fez mais uma excelente e mal cheirosa pergunta: Será que o governo japonês autorizaria a construção de uma fábrica da Nissan em um local equivalente à nossa Lagoa da Turfeira? Será? Será? Não precisa assistir Globo Repórter e ouvir o Sérgio Chapellin falando “depois do intervalo, os segredos da longevidade dos japoneses” para saber que a resposta para a pergunta do Boechat. Afinal não é à toa que no Japão se vive mais, se sabe mais e trapalhadas políticas são motivo de comoção nacional, e isso tudo passa claramente pela relação do povo japonês com a natureza.
Fica então a pergunta final endereçada para a Nissan e seu presidente no Brasil Sr. Carlos Goshn: com tanta área de pasto abandonada Resende afora vocês vão mesmo querer construir a fábrica em um local que a coloca como uma séria ameaça a última grande área úmida remanescente da região Sul Fluminense? Pois se for o caso e essa importante empresa multinacional não der a mínima para um termo tão em moda quanto responsabilidade sócio-ambiental, é bom vocês irem se acostumando com o cheiro, porque com certeza, vez ou outra o negócio vai feder.
Depois da vergonha do Código Florestal, mais uma vez a sanidade ambiental do governo brasileiro está sendo colocada à prova. Agora é esperar e ver o que o que o laudo oriundo da visita do INEA irá concluir.
Aproveito para agradecer em meu nome e em nome da Lagoa da Turfeira e sua biodiversidade a todos que de alguma forma estão acompanhando, compartilhando, e lutando, especialmente o vereador Dr. Gláucio Julianelli e a jornalista Ana Lúcia Corrêa de Souza que assumiram posições no pelotão de frente.
A invisível Lagoa da Turfeira, uma tragédia ambiental anunciada…
por Luciano Moreira Lima
Uma das últimas grandes áreas úmidas da região sul fluminense corre sério risco de desaparecer
Das milhares de pessoas que diariamente passam pelo km 299 da Rod. Presidente Dutra (BR 116), poucas devem notar que contornada a oeste por uma abrupta curva do rio Paraíba do Sul está uma das últimas grandes áreas úmidas naturais da região sul fluminense, a Lagoa da Turfeira (também conhecida como Lagoa da Kodak devido a proximidade com uma antiga fábrica da referida empresa). Essa situação, no entanto, causa pouco espanto já que a grande lagoa parece não ser invisível apenas para os motoristas concentrados na estrada. Não adianta procurar pelos seus cerca de 700.000 metros2 em um detalhado mapa hidrográfico do município de Resende produzido em parceria com a prefeitura municipal –disponível aqui –. Você não verá a indicação de nem um pingo d’água em seu local. Fato no mínimo inusitado, uma vez que lagoas até 10 vezes menores são corretamente indicadas no mapa e se dos dermos conta que a Lagoa da Turfeira pode ser claramente observada a mais de 10.000 metros de altitude via Google Earth.
Se uma área equivalente a mais de 70 campos de futebol pode passar desapercebida, imagine aqueles que a habitam, como o diminuto tricolino (Pseudocolopteryx sclateri) de topete invocado e míseros 9,5 cms. Não bastasse o tamanho, esse bonito passarinho vive apenas no meio de densas moitas de taboa (Typha domingensis), uma das plantas mais características de áreas alagadas no Brasil. Ornitólogos e observadores de aves sabem que para poder observá-lo não basta apenas vontade é preciso se embrenhar-se no taboal, muitas vezes afundar com água acima do joelho e ficar de ouvidos atentos ao seu discretíssimo canto – ouça aqui – .
Mais de 11 anos de visitas regulares a Lagoa da Turfeira e seu entorno imediato realizadas em parceria com o amigo e também ornitólogo Bruno Rennó, resultaram no registro não apenas do discreto tricolino mas também de pelo menos outras 169 espécies de aves silvestres no local. Nesse total, que representa cerca de 20% das aves do Estado do Rio de Janeiro, estão incluídas espécies ameaçadas de extinção em âmbito estadual e diversas aves migratórias paras quais a lagoa representa um importante refúgio.
Os resultados desse estudo – parcialmente apresentados no XVI Congresso Brasileiro de Ornitologia – tornaram evidente a importância da Lagoa da Turfeira para conservação da biodiversidade fluminense e auxiliaram na sensibilização do poder público municipal para que algo fosse feito em prol da sua preservação . Dessa forma, em 2010 a Agência do Meio Ambiente do Município de Resende elaborou o documento “Estudo Técnico Preliminar para Constituição de Área Protegida no Banhado da Kodak”, e entre as principais conclusões estavam:
“A criação e implantação de unidade de conservação no Banhado da Kodak alinha-se aos compromissos internacionais do Brasil de proteger o ambiente, conforme metas estabelecidas pela ONU, em se tratando do Ano Internacional da Biodiversidade.
A criação e implantação da unidade acarretará ainda um aumento do ICMS do município, conforme prevê a Lei no 5.100 de 04 de outubro de 2007 e o Decreto no 41.101 de 27 de dezembro de 2007.
Constata-se, portanto, que a unidade trará grandes benefícios para o município […]”
Dois anos se passaram após finalização desse documento e aos poucos a Lagoa foi novamente caindo no esquecimento dos órgão governamentais, até a semana passada. Na última quinta-feira (19/04), alertado por amigos, descobri que a prefeitura Municipal de Resende havia orgulhosamente publicado uma imagem da Lagoa invisível em sua página do Facebook acompanhada de alguns parágrafos de notícia. No entanto, ao invés do título fazer qualquer menção a alguma ação visando a conservação da área lá estava: “As obras da Nissan”. Meio sem rumo e sem querer acreditar no que eu havia lido me dei conta que não apenas não seria feito nada para conservar a Lagoa como também estava sendo orgulhosamente anunciada o que poderia se tornar em uma das maiores tragédias ambientais recentes da região sul fluminense. Esperei o final de semana chegar e fui para casa em Resende ver com meus próprios olhos a situação da área.
Era por volta de 14:00 do último sábado (21/04). Da Dutra já era possível ver uma gigantesca área de terra exposta meio enevoada pela poeira levantada pelo ir e vir constante de uma verdadeira frota de máquinas escavadeiras e caminhões. Segui pela estrada de chão paralela a lagoa e encarado pelo olhar apreensivo das pessoas que lá trabalhavam fui desviando das escavadeira e caminhões. O barulho constante dos motores e a poeira contribuíam deixando o cenário de destruição ainda mais desolado e logo me dei conta que eu não era o único perdido por ali, uma garça-branca-grande (Ardea alba) e duas garças-brancas-pequenas (Egretta thula) voavam sem rumo entre duas poças já lamacentas sendo repetidamente espantadas pelas máquinas.
Procurei em vão pela área onde em 2001 havia feito o primeiro registro documentado da triste-pia (Dolichonyx oryzivorus) no Estado do Rio de Janeiro – veja a publicação científica aqui – e onde também observávamos com frequência o ameaçado coleiro-do-brejo (Sporophila collaris). Tarde demais, a passarada havia simplesmente virado terra nua. Um pouco mais para frente em uma área que ainda mantinha um pouco de vegetação uma concentração impressionante de aves, onde chamava atenção o colorido dos chopim-do-brejo (Pseudoleistes guirahuro) e da polícia-inglesa-do-sul (Leistes superciliaris), lembravam refugiados aglomerando-se as centenas e fugindo de um verdadeiro massacre.
Um pouco mais pra frente na estrada dirigi até o alto de uma colina e de lá pude avaliar melhor o estrago. A extensão da área aterrada era impressionante e embora até aquele momento tenha sido poupado o espelho d’água principal diversas áreas úmidas existentes ao seu redor foram completamente aterradas. De lá também pude rever também algo que sempre me causou especial presságio. Um antigo canal localizado no canto nordeste ligando-a ao Rio Paraíba do Sul, embora hoje esteja parcialmente assoreado já funcionou como sangradouro de suas águas podendo novamente ser utilizado para extinguí-la. No caminho de volta, entrei por uma estrada que acabava de ser aberta e estranhamente terminava no espelho d’ água, fiquei ainda mais apreensivo me perguntando a função daquele caminho.
Por conta do mestrado sou obrigado a morar em São Paulo e aos poucos vou me acostumando com os engarrafamentos, poluição e violência urbana. Por isso, nada contra a montadora de carros, tampouco contra o dito progresso que prevê que a população de Resende aumente cerca de 50.000 pessoas nos próximos 5 anos. Mas, vale lembrar que lagoas são caracterizadas como áreas de preservação permanente, por isso são áreas intocáveis.
Além disso, certamente deve ter sido produzido um estudo de impacto ambiental para uma obra dessa magnitude, o qual certamente também deve ter identificado que qualquer atividade que afete a lagoa poderá resultar em uma tragédia irreversível para biodiversidade da região. Sendo assim, gostaria também de ter tido a oportunidade de participar de alguma audiência pública onde o destino da Lagoa da Turfeira pudesse ser seriamente debatido.
Embora seu entorno já tenha sido bastante impactado ainda há tempo de salvar o que restou da última grande área úmida natural da região meridional do vale do Rio Paraíba do Sul. A implementação de uma unidade de conservação no local, em âmbito municipal ou estadual, seria não apenas uma forma de garantir a existência a longo prazo da Lagoa da Turfeira e sua rica biodiversidade, mas também a oportunidade de criação de um espaço onde através de trilhas interpretativas e um centro de visitação a população resendense conquistasse uma nova opção de lazer que vai totalmente de encontro a vocação ambiental do município. Vale lembrar o grande potencial da área para prática de uma das atividades ao ar livre que mais crescem no país a observação de aves. Não por acaso, a Lagoa da Turfeira ocupa três páginas do livro “A Birdwatching guide to South-East Brazil”, o qual traz informações detalhadas sobre alguns dos principais locais para observação de aves no sudeste do país. Sem contar nas inúmeras fotos clicadas no local e disponíveis no site WikiAves – veja aqui – e que demonstram que os ambientes da lagoa são frequentemente procurados por observadores de aves.
Por volta das 16:30 o céu nublado evolui para uma chuva fraca que ajudou a esconder os olhos cheios. De fato a ignorância é o melhor caminho para felicidade. Minha tristeza maior não era por ser testemunha ocular de tamanha agressão a natureza, mas principalmente por saber a importância daquele lugar para a vida e conhecer pelo nome e sobrenome todos aqueles fadados a buscar em vão um novo lar. Voltei para casa desolado mas disposto a fazer todo o possível para mostrar que as cores e os sons das milhares de vida que dependem da Lagoa da Turfeira fazem que ela seja considerada qualquer coisa, menos invisível. Cientes que a tragédia estava anunciada depende de nós deixar ou não que ela aconteça.
Tinha um joão-porca no meio do caminho…
por Luciano Moreira Lima
Poucos lugares podem ser tão produtivos para o ornitólogo ou observador de aves quanto pequenas estradas que se embrenham floresta a dentro, especialmente as abandonadas. Quando comparadas as estreitas e escuras trilhas, o chão geralmente mais limpo e o campo de visão expandido tornam o caminhar nesses locais mais silencioso e atento, em horários propícios a cada dez passos se topa com um ou outro ser emplumado.
Para aqueles com equipamento fotográfico a tiracolo a situação é ainda mais proveitosa. A luz, sempre escassa no sub-bosque sombrio da mata, é mais abundante próximo as bordas permitindo uma abertura mais fechada e um ISO mais baixo, resultando em imagens mais nítidas e com menos ruído, o que pode fazer toda diferença na hora de um bom click.
Já era meio de tarde e a passarada meio quieta permitiu que algumas borboletas e libélulas diminuíssem meu passo em uma caminhada por uma estrada abandonada nas proximidades do centro de visitantes no Parque Nacional do Itatiaia. Depois de alguns clicks retomei o curso e alguns passos a frente lá estava o amigo Bruno Rennó com o olho atento pra dentro do mato. Dava dois passos para direita, dois para esquerda, botava o olho no visor da câmera e assim que me viu pelo canto do olho acenou para que eu me aproximasse em silêncio.
Perguntei curioso ainda a certa distância:
– Que têm aí Bruno Carlos? –
Me respondeu com o olho grudado no visor da câmera enquanto mirava pra dentro da mata:
– Chega aí! Têm um Lochmias “dando mole” –
Para aqueles que ainda não foram apresentados, Lochmias nematura, é o único representante do seu gênero e um parente não muito distante do famoso joão-de-barro, Furnarius rufus. No entanto, talvez pelo comportamento mais arredio, não teve o merecido reconhecimento de seu primo, cujo nome popular faz alusão a incrível habilidade de construir ninhos de barro que mais parecem verdadeiras casas (algumas vezes até mesmo prédios – veja no WikiAves – ) e acabou sendo batizado pelo povo de joão-porca, um nome vulgar, no mínimo vulgar.
A voz do povo é a voz de Deus, mas para aqueles indignados com um nome tão ultrajante segue a explicação extraída do livro sagrado dos ornitólogos tupiniquins, Ornitologia Brasileira, de Helmut Sick:
“Habita as margens de córregos de densa vegetação, onde pula no solo ou vai de pedra em pedra entrando mesmo na água rasa à caça de insetos e larvas; às vezes apanha folhas inteiras caídas na água à cata de presas, inspeciona a lama de chiqueiros e esgotos (daí a série de nomes vernaculares pouco airosos de que é objeto), vira folhas e torrões de terra com o bico.”
Pessoalmente acho seu nome injusto, pois foram poucas as vezes que vi o joão-porca forrageando próximo a áreas mal cheirosas que lhe justificassem tal adjetivação. Ao contrário, a espécie pode quase sempre ser observada buscando animalejos entre as pedras de córregos limpíssimos que serpenteiam pela mata e onde sua voz – ouça no WikiAves – geralmente se mistura ao chuá incessante de alguma cachoeira próxima.
Nesse cenário, Lochmias parece comporta-se como um equivalente ecológico das aves do gênero Cinclus, família Cinclidae, espécies de pássaros semi-aquáticos que habitam rios em diversas regiões do mundo, mas que não ocorrem no Brasil. No entanto, até onde se sabe, Lochmias não é capaz de mergulhar como fazem os Cinclus. Falar em Cinclus e Lochmias nos remete ao misterioso Thamnophilus aquaticus, supostamente descoberto por J. T. Descourtilz e mencionado por Silva Maia (1851) em um parágrafo sobre uma “Especie nova e curiosa de passaro brasileiro” – veja aqui -. Embora o gênero Thamnophilus pertença a família Thamnophilidae, ou seja, diferente do Lochmias, não vejo explicação melhor para as observações de Descourtilz do que um joão-porca que se atreveu explorar atrás da cortina d’água de uma cachoeira ou situação parecida.
Mas voltemos a estrada abandonada no Itatiaia… Lochmias que se preze raramente “dá mole” pra foto e nas poucas vezes que presenciei essa situação, não durou mais que 30 segundos. Por isso apressei o passo ao ouvir a resposta do Bruno, mas me aproximei sem muita confiança, pois duvidava que o pássaro estivesse ainda ao alcance da minha lente. Dito e feito, só deu tempo de ver o bicho adentrar na brenha.
No entanto, um ou outro galho mais exposto no meio da ramaria me diziam que aquela podia ser uma chance muito boa de conseguir um registro fotográfico do joão-porca, objetivo que várias vezes já havia perseguido sem conseguir sucesso. Ipod na mão, reproduzi baixo por poucos segundos seu chamado característico e quase imediatamente o pássaro se aproximou pousando em um galho caído cuja uma das pontas era justamente um dos lugares que eu havia previsto que daria uma boa foto. Com olhar curioso foi ao poucos se movendo até chegar justamente na posição onde eu havia idealizado, enquanto isso o dedo permaneceu grudado no disparador da câmera.
As duas fotos acima foram as melhores da sequência que eu consegui. No final, acho que a foto do joão-porca com o olhar curioso entre os vultos da folhagem ilustra muito bem o comportamento tímido da espécie e por isso gostei mais dessa do que daquela em que o passarinho faz pose no lugar que eu havia ansiosamente desejado. Fotografia de natureza, especialmente de aves, pode ser um pouco frustrante às vezes, mas em outras o que você achava que estava bom pode fica ainda melhor…
Morcego Chupacabra Peruano? Não, o vampiro gigante é nosso!
por Guilherme Garbino
Recentemente, espalhou-se pela internet a foto acima, um famigerado “morcego gigante” que teria sido encontrado no Peru. O interessante é que ao invés de ser confundido com o Batman, como seria de se esperar, a pobre criatura foi logo tida como um prova irrefutável que o chupacabra ainda está entre nós.
O fotógrafo, intencionalmente ou não, utilizou um truque óptico que já foi usado inclusive para propagar viralmente outro caso criptozoológico; o famoso solífugo (ou “sun-spider” do vernacular em inglês) gigante do Iraque (http://www.brownreclusespider.org/camel-spider/giant-camel-spider.htm). No caso do “morcego gigante”, o “truque”, de colocar o animal em primeiro plano com os soldados em segundo fica facilmente evidenciado ao olharmos o tamanho da “faquinha” fincada acima do arcabouço de bambu que suspende o animal.
Embora estejam entre os maiores morcegos do mundo, as espécies do gênero Pteropus (que em latim quer dizer “pés com asas”), e da qual faz parte o nosso “morcego gigante” não ultrapassam os 1,2 metros de envergadura de asa. Como não encontrei a fonte original da foto, imagino, a partir da distribuição geral dos Pteropus maiores (P. neohibernicus e P. vampyrus ou o Acerodon jubatus), que ela tenha sido tirada em algum lugar do sudeste Asiático ou no arquipélago Malaio, ou seja, muiiiito longe das selvas peruanas.
Esse caso criptozológico, me lembrou dos relatos sobre o suposto morcego vampiro gigante da América do Sul. Um mito moderno cujos fundamentos se estendem até a mitologia Maia, na forma do deus Camazotz, um monstro com cabeça de morcego associado à morte e a noite.
Todas as três espécies de morcegos hematófagos viventes ocorrem no Brasil e, dentre elas, a maior e mais comum, Desmodus rotundus, atinge uma envergadura de aproximadamente 20 centímetros. Os morcegos hematófagos fósseis, no entanto, evidenciam que algumas espécies poderiam ser até 25% maiores que o Desmodus rotundus. Não é a toa que esses morcegos hematófagos extintos receberam nomes muito criativos como Desmodus stockii (em homenagem ao autor de Drácula, Bram Stocker) e Desmodus draculae.
No Brasil, um crânio (subfóssil) de D. draculae foi encontrado em uma caverna do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR). O trabalho da profa. Eleonora Trajano e do Mario de Vivo de 1991 descreve esse registro e vai um pouco além ao suspeitar que a idade do subfóssil seja relativamente recente e que a espécie pode ainda estar presente na região! Acho improvável, no entanto, que uma espécie de morcego relativamente grande não tenha sido capturada em uma das regiões cársticas mais bem amostradas para morcegos do país.
Quando o assunto é tamanho, entre os morcegos brasileiros, a maior espécie de morcego, com aproximadamente 80 centímeros de envergadura, é Vampyrum spectrum que, apesar desse nome, não tem nada de vampiro. De fato, os gêneros Vampyriscus, Vampyrops (= Platyrrhinus), Vampyrodes e o simpático Vampyressa são todos frugívoros, enquanto que os gêneros verdadeiramente hematófagos (Desmodus, Diphylla e Diaemus) foram, pode ser dizer, injustiçados em seu batismo. Desmodus significa algo como “dentes amarrados juntos” e Diphylla quer dizer “duas folhas”. Apenas o último gênero a ser descrito, Diaemus tem a ver com o hábito que lhes dá fama: Diaemus vem do grego diaimos, que significa “manchado de sangue”.
No excelente artigo de G.G. Simpson (1984) (que escrevia bem sobre muitas coisas), o autor ataca a criptozoologia como ciência, argumentando que nós humanos somos os animais mais crédulos, ingênuos e enganosos que existem. Por isso (segundo ele) acreditamos também no criacionismo e em UFOs, além da criptozoologia. Finalizando com chave de ouro, o autor cita magistralmente o cristão Tertuliano para ilustrar a condição da mente humana: Credo quia impossibile (acredito porque é impossível).
Fontes de conhecimento:
Simpson, G. G. 1984. Mammals and Cryptozoology. Proceedings of the American Philosophical Society, 128(1): 1–19
Trajano, E. ; Vivo, M. 1991. Desmodus draculae Morgan, Linares & Ray, 1988, reported for southeastern Brazil, with paleoecological comments (Phyllostomidae, Desmodontinae). Mammalia, 55(3): 456-459.
sugerido sobre morcegos e criptozoologia:
Schutt,B. 2008. Dark Banquet: blood and the curious lives of blood-feeding creatures.Crown. 336p.
Perdido e achado: o tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca
por Rafael Marcondes
Muita gente costuma achar que a maioria dos animais e plantas já são bem conhecidos e não falta muito a se descobrir. Um dos objetivos do Caapora é revelar que essa crença está muito longe da realidade: nossa fauna é tão diversa e o Brasil é tão grande e relativamente pouco explorado cientificamente que todo ano são descritas dezenas de novas espécies de animais no nosso país, incluindo até mesmo aves, que supostamente estão entre os grupos de animais mais bem estudados. Mas talvez mais interessante e surpreendente do que a descrição de novas espécies é o fato de que há diversos casos de aves que foram descritas há décadas ou às vezes quase um século atrás e nunca mais foram vistas! Os últimos anos, felizmente, têm visto uma série de redescobertas destas espécies conhecidas apenas de sua descrição. Como minha primeira contribuição nessa empreitada do Caapora para revelar as camadas mais obscuras da fauna brasileira, o tema desse post é uma dessas aves “perdidas e achadas”: o tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca.
O tiê-bicudo foi descrito pelo zoólogo francês Jacques Berlioz em 1939 com base em um único macho coletado no ano anterior por J. A. Vellard, um especialista em aranhas que era o naturalista de uma expedição pelo Brasil do famoso antropólogo Claude Lévi-Strauss. Esse espécime, o holótipo da espécie (principal indivíduo no qual se baseia a descrição de uma espécie nova), encontra-se até hoje no Muséum National d’Histoire Naturelle, em Paris e, segundo Berlioz, foi coletado em “Juruena, northeast of Cuyaba”.
Por mais de seis décadas que seguiram à sua descoberta o tiê-bicudo jamais voltou a ser encontrado, tornando-se uma das maiores incógnitas da ornitologia neotropical. Por praticamente 64 anos tudo que se sabia sobre a espécies resumia-se ao espécime coletado por Vellard e as poucas informações fornecidas em sua descrição. Informações básicas permaneceram completamente ignoradas por todo esse tempo, como por exemplo a morfologia da fêmea, vocalização, alimentação e demais aspectos sobre sua biologia. Não por acaso o tiê-bicudo chegou praticamente a ser considerado extinto.
Os poucos ornitólogos que se empenharam em redescobrir a espécie esbarravam em uma outra dificuldade além de sua raridade: o rio Juruena fica a noroeste de Cuiabá, não a nordeste, como mencionado por Berlioz, o que levantava certa suspeita sobre o real local de coleta da espécie. Essa história só começou a mudar em 2003, quando o tiê-bicudo foi encontrado no Parque Nacional das Emas, no estado de Goiás, surpreendentemente a 750 km de distância do rio Juruena! (Buzzeti & Carlos, 2005) Desde então, o tiê-bicudo, inclusive fêmeas, tem sido regularmente observado nessa localidade.
Mas a virada mesmo para o tiê-bicudo só veio três anos depois, em 2006, quando o ornitólogo Carlos Ernesto Candia-Gallardo, da Universidade de São Paulo, gravou e fotografou um macho da espécie às margens do rio Juruena, na região da Chapada dos Parecis, estado do Mato Grosso. Esse registro acabou levando ao primeiro estudo da espécie desde sua descrição, publicado por Candia-Gallardo em 2010 na revista Bird Conservation International, em parceria com Luís Fábio Silveira e Adriana Akeni Kuniy. É desse artigo que retiro a maior parte da informação nesse post.
A gravação do canto da espécie nesse primeiro encontro permitiu, através da técnica do play-back (em que aves, altamente territoriais, são atraídas pela reprodução do canto de sua própria espécie), a localização de mais indivíduos em diversas localidades na mesma região. Descobriu-se que o hábitat preferencial da espécie são matas ou campinas alagadas ao longo de rios, contrariando a descrição original da espécie, que dava o hábitat como “arid forest or scrub”. Isso talvez ajude a explicar por que o tiê-bicudo passou tantos anos desaparecido: os ornitólogos estavam simplesmente procurando no hábitat errado!
Clique para ouvir a vocalização da espécie gravada por Bruno Salaroli e disponível no site Wikiaves.
A redescoberta também levou à primeira descrição detalhada da fêmea do tiê-bicudo, com base em um espécime coletado e depositado no Museu de Zoologia da USP, onde ficará para sempre disponível a todos os pesquisadores interessados em estudar a espécie.
Os pesquisadores que redescobriram o tiê-bicudo também esclareceram com precisão a localidade-tipo da espécie (localidade onde foi coletado o holótipo). Pesquisando nos diários de Castro Faria, um antropólogo brasileiro que também acompanhava a expedição de Lévi-Strauss, descobriram que na data em que o tiê-bicudo foi coletado, Vellard estava acampado na Estação Telegráfica de Juruena (a noroeste de Cuiabá, confirmando o erro na descrição original). Essa estação era parte da linha telegráfica completada em 1915 pela comissão liderada pelo marechal Cândido Rondon, e que até a década de 1960 era o único acesso àquela região.
Observou-se que o tiê-bicudo vive geralmente solitário ou em casais, e alimenta-se de insetos e principalmente sementes. Esse hábito alimentar não é comum dentre os Thraupidae, a família em que o tiê-bicudo tem sido classificado e que também inclui os demais tipos de tiês, as saíras, saís e sanhaços. Isso nos leva a um dos aspectos mais surpreendentes sobre o tiê-bicudo: ele talvez sequer seja um tiê! O comportamento em geral da espécie, incluindo hábitos alimentares e a vocalização, e os padrões de plumagem assemelham-se mais aos de espécies de outra família, os Emberizidae, que inclui aves como os tico-ticos, os cardeais e os papa-capins. Especificamente, a plumagem, formato do bico e hábitat do tiê-bicudo são muito semelhantes aos do papa-capim-de-coleira, Dolospingus fringilloides, uma espécie pouco conhecida da família Emberizidae que vive no norte do Brasil, Venezuela e Colômbia. Estudos do esqueleto e moleculares (lembrando que apesar da redescoberta, o tiê-bicudo ainda é absolutamente desconhecido do ponto de vista genético e da anatomia interna) poderão revelar o verdadeiro parentesco do tiê(?)-bicudo.
O capítulo mais recente na história do tiê-bicudo veio em 2010, quando o ornitólogo Guilherme R. R. Brito e colegas, do Museu Nacional da UFRJ, descobriram na Serra do Cachimbo, no Pará, mais uma nova população da espécie. Essa população está a 400km do alto Juruena e a 1000km do Parque Nacional das Emas. Para uma espécie que passou décadas desaparecida, a distribuição do tiê-bicudo está se revelando mais ampla do se imaginava, ressaltando que uma das principais razões para o “sumiço” foi a simples falta de exploração científica. Sabendo onde e como procurar, aos poucos o tiê-bicudo está se revelando. Quantas espécies desaparecidas ou novas será que não estão por aí nesse Brasil, esperando serem (re)descobertas?
Infelizmente, esse post tem que terminar com um parágrafo sombrio. O tiê-bicudo está criticamente ameaçado de extinção, e estima-se que existam apenas entre 50 e 250 indivíduos vivos da espécie, somando as populações do Parque Nacional das Emas e do alto rio Juruena (BirdLife, 2011) – a nova população, na Serra do Cachimbo, ainda não entrou nesse cálculo. Seu hábitat, áreas alagáveis às margens de rios, é naturalmente fragmentado e vulnerável, e toda a região do Centro-Oeste brasileiro está sob forte expansão agrícola, principalmente da soja. Para piorar a situação, a região do alto Juruena é alvo de projetos de nada menos do que doze usinas hidrelétricas, sendo duas de grande porte. Pelo menos cinco já estão em construção (http://www.oeco.com.br/reportagens/37-reportagens/23761-o-bicudo-e-as-barragens). Os alagamentos causados por essas usinas podem suprimir grande parte do hábitat da espécie. Talvez o tiê-bicudo tenha sido redescoberto apenas para logo ser perdido de novo, dessa vez para sempre. Ou bem a tempo de ser salvo.
Referências:
BirdLife, 2011. Species factsheet: Conothraupis mesoleuca.
Brito, G. R. R. et al. 2011. First record of the Cone-Billed Tanager (Conothraupis mesoleuca) in Pará state, Brazil, with inferences about its potential distribution. Libro de Resumenes – IX Congresso de Ornitologia Neotropical.
Buzzeti, D. e Carlos, B. A. 2005. A redescoberta do tiê-bicudo (Conothraupis mesoleuca) (Berlioz, 1939). Atualidades Ornitológicas, vol. 127, p. 4–5.