Arquivo Z – Mustela africana, a doninha-amazônica
Após alguns meses de silêncio forçado por conta de trabalho quase escravo – espero que meu chefe não leia isso -, o Caapora volta a ativa.
Desde que migramos para o ScienceBlogs, estava pretendendo iniciar uma série de postagens sobre animais brasileiros desconhecidos do público em geral, criaturas ofuscadas pela fama dos mico-leões, araras-azuis, tartarugas marinhas e demais integrantes da chamada “fauna carismática”. Pois bem, nada melhor que retomar as coisas cumprindo promessas do passado. Para inaugurar a série apresento a vocês uma doninha que poderia muito bem sofrer de crise de identidade.
Em 1735, o botânico sueco Carl Linné criou um novo sistema de classificação e nomenclatura dos seres vivos, o qual agrupava as espécies em ordem hierárquica e dava a cada uma delas um binômio exclusivo. Este engenhoso sistema foi capaz de colocar ordem no verdadeiro pandemônio que era a taxonomia e a sistemática até o início do séc. XVIII e acabou sendo tão bem aceito por zoólogos, botânicos e demais estudiosos de tudo o que é vivo, que mais de 200 anos após sua criação continua em uso praticamente sem alterações, uma impressionante façanha dentro da “metamorfose ambulante” que é a ciência.
Embora muitos pesquisadores estudiosos da biodiversidade, especialmente os não ligados diretamente a taxonomia, reclamem das mudanças ocasionais na nomenclatura e classificação de algumas espécies, um dos pilares do sistema criado por Linné é justamente a imutabilidade. De acordo com o “Principio da Prioridade” (artigo 23 do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica), o nome válido de um táxon é o nome mais antigo disponível atribuído ao mesmo, ou seja, uma vez batizada uma espécie seu nome jamais poderá ser alterado. Os casos de mudanças mencionados acima geralmente se referem a mudanças ao nível de gênero e refletem avanços no conhecimento sobre o relacionamento entre diferentes táxons. Jamais são permitidas alterações no nome científico de uma espécie por motivos outros que não a mudança de gênero por conta de novos arranjos sistemáticos ou a aplicação direta de alguma das regras do ICZN.
Imagine você, um taxonomista do século XIX, funcionário de um museu europeu e que recebe de uma das colônias de seu país um carregamento de espécimes incluindo algumas espécies até então novas para ciência. A maioria dos exemplares não possui qualquer etiqueta com informações mínimas como local e data de coleta, e ao ver a palavra “África”escrita do lado de fora da caixa, você é tentado a acreditar que os animais provavelmente foram coletados em algum lugar do continente Africano, quando na verdade parte deles é provenientes da América do Sul. Situações aparentemente inusitadas como esta, ocorriam com certa freqüência em muitos museus europeus até o final do século XIX e foram responsáveis por inúmeras injustiças nomenclaturais, como é o caso do animal que inaugura a série de postagens sobre animais brasileiros pouco conhecidos.
A doninha-amazônica (Mustela africana) é uma das sete espécies brasileiras da família Mustelidae, a maior família da Ordem Carnívora com cerca de 55 espécies, e que além das doninhas, inclui animais como os furões, a irara, a lontra e a ariranha. Como prova de quão interessante são esses animais transcrevo abaixo a frase da apresentação de um amigo, que terá sua identidade preservada, retirada de um site de relacionamentos: “Meu nome é X, sou um humano como todos vocês que estão lendo este texto, mas o que eu queria mesmo era ser um mustelídeo”.
Com quase 50 cm da ponta da cauda, que corresponde a aproximadamente metade do tamanho do corpo, até a ponta do focinho a doninha-amazônica pode ser considerada relativamente grande quando comparada a outros representantes do gênero. Vista por cima, parece ser toda marrom-avermelhado escuro, mas o queixo, as partes inferiores da pata e a barriga são claras, esta última com uma extensa mancha castanha no meio. As solas das patas são peladas e os dedos dos membros anteriores são parcialmente unidos por membranas interdigitais demonstrando que a espécie pode apresentar hábitos semiaquáticos. Até onde pude constatar, não são conhecidas imagens da doninha-amazônica em seu ambiente natural ou mesmo de animais em cativeiro, apenas fotos de peles de museus como a do espécime tipo exibido abaixo.
A doninha-amazônica foi descrita em 1838 pelo zoólogo francês Anselm Gaëtan Desmarest, o exemplar tipo (foto acima) muito provavelmente deve ter sido coletado pelo famoso Alexandre Rodrigues Ferreira, o primeiro naturalista brasileiro, e foi um dos milhares de espécimes saqueados do Museu da Ajuda de Portugal e levado para o Museu de História Natural de Paris durante a Invasão Napoleônica. Sem saber a procedência correta do exemplar que tinha em mãos, Desmarest se limitou a indicar a localidade tipo como “d’Afrique” e tratou de batizar a nova doninha como Mustela africana.
Em 1897, Emílio Goeldi, célebre zoólogo cujo nome foi imortalizado no Museu Paraense Emílio Goeldi, descreveu a partir de exemplares coletados no Pará a doninha Mustela brasiliensis. Em 1913 Angel Cabrera demonstrou que a espécie descrita por Goeldi era a mesma que havia sido batizada por Desmarest em 1838, evidenciando assim o erro do zoólogo francês. Regra existe para ser cumprida, Mustela brasiliensis passou a ser tratado como sinônimo de uma espécie que já havia sido descrita anteriormente, e Mustela africana passou a ser o nome das doninhas amazônicas.
Passados mais de 150 anos de sua descrição, Mustela africana é, ainda hoje, considerado um dos mamíferos mais enigmáticos da América do Sul e sua distribuição ainda não é conhecida em detalhes. Os poucos dados existentes apontam para uma ocorrência restrita a Bacia Amazônica, com registros conhecidos para o Brasil, Equador e Peru. Injustiças nomenclaturais a parte, o caso da doninha-amazônica nos mostra que não apenas as aparências, mas também os nomes e os zoólogos enganam e se enganam. Assim sendo, só nos resta aceitar a tirania do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica e nos conformar que a mais brasileira das doninhas será sempre “africana”!
Referências
Desmarest, A. G. (1818) Nouv. Diction. d’Hist. Nat., 19:376
Goeldi, E. (1897) Ein erstes authentisches Exemplar eines echten Wiesels
aus Brasilien. Zool. Jahrb., Abt. f. systematik, geogr. u. Biol.,
10:556-562, pi. 21, September 15, 1897.
Cabrera, A. (1913) Sobre algunas formas del género “Mustela.” Bol. d. 1. Real Soc.
Espaiiol d. Hist. Nat., 13:429-435, November, 1913.