Bichos do Brasil: urutaus e mães-da-lua
O nome popular já diz muito sobre essas aves: “urutau” vem do guarani guyra (ave) e tau (fantasma). Tratam-se dos membros da família Nyctibiidae, conhecidos como urutaus ou mães-da-lua, um dos grupos mais fascinantes (e bizarros) de aves brasileiras. Essa pequena família inclui sete espécies de aves noturnas, cinco das quais ocorrem no Brasil. Todas são incluídas no gênero Nyctibius e exclusivas dos neotrópicos (região biogeográfica que inclui a América do Sul, Central, partes do México e do extremo sul dos Estados Unidos).
Muita gente chama os urutaus de feios, mas eu prefiro dizer que eles são apenas estranhos. Os membros dessa família têm uma cabeça enorme e a boca descomunal, mas o bico é minúsculo. E ainda por cima seus enormes olhos são esbugalhados e amarelos. As pálpebras possuem uma engenhosa adaptação: duas pequenas incisões que permitem à ave enxergar mesmo com o olho fechado.
A plumagem é cinza ou amarronzada. Essas cores, em conjunção com o hábito de pousar em postura ereta na ponta de galhos verticais, conferem aos urutaus uma das melhores camuflagens dentre todas as aves do mundo. Essa postura é assumida até mesmo pelos filhotes mal saídos do ovo. Podem ter seus poleiros de descanso diurno em mourões de cerca ou outros troncos totalmente expostos, em plena luz do dia, tal é a excelência de sua camuflagem. Com certa freqüência são surpreendidos nesses poleiros, e, de tão estranhos que são, acabam virando até notícia de jornal, como foi o caso até mesmo em plena capital paulista.
Como se esses hábitos crípticos já não bastassem para dar um ar fantasmagórico aos urutaus, suas vocalizações podem ser ainda mais estranhas. Variam desde o melancólico lamento da mãe-da-lua (Nyctbius griseus) – citado diversas vezes por Guimarães Rosa em seu Grande Sertão: Veredas – até o aterrorizante berro da mãe-da-lua-gigante (Nyctibius grandis). Imagine o que os primeiros europeus a chegar a nossas terras não devem ter pensado ao ouvir essas vozes sinistras ecoando na noite…
Tudo isso levou o urutau a ser figura popular no folclore brasileiro. Uma das histórias mais difundidas conta que a mãe-da-lua seria uma jovem que perdeu seu amor. Era uma menina do sertão muito feia, mas muito inteligente. Certa noite, encontrou um belo príncipe nas redondezas e conseguiu impressioná-lo com sua inteligência. Quando o príncipe estava prestes a pedi-la em casamento, a lua cheia surgiu por detrás das montanhas, iluminando o rosto da jovem. Assustado com sua feiúra, o príncipe fugiu para nunca mais voltar. Desolada, a garota procurou uma feiticeira e pediu para ser transformada em uma ave, para buscar o príncipe onde quer que ele estivesse. A feiticeira consentiu, e assim nasceu a mãe-da-lua. No entanto, mesmo após longa procura, a garota em forma de ave não conseguiu encontrar o príncipe. Voltou à feiticeira e pediu para ser transformada de volta em gente, mas isso estava fora dos poderes da bruxa. Desde então, a garota vaga pela noite como uma ave feia e triste, e sempre que aparece a lua, solta seu pio melancólico “foi, foi, foi…”, lembrando do príncipe que a deixou.
Voltando agora ao aspecto mais científico, a família Nyctibiidae é parte da ordem Caprimulgiformes, que inclui outras aves noturnas, como os igualmente bizarros “frogmouths” (família Podargidae) da Ásia e Oceania e os mais familiares bacuraus e curiangos (Caprimulgidae). Suas características únicas, no entanto, e a existência de um urutau fóssil datado de 25 milhões de anos (Euronyctibius kurochnikii) não deixam dúvidas que se trata de um grupo muito antigo e distinto. Este fóssil provém da França, sugerindo que a família já teve uma distribuição bem mais ampla que a atual. A própria separação entre as espécies da família aparentemente é bastante antiga, já que, apesar de sua morfologia externa bastante homogênea, possuem enorme divergência genética e diversas diferenças no esqueleto, sugerindo que possam no futuro ser separados em gêneros distintos.
A família dos urutaus guarda ainda uma das espécies de aves brasileiras “perdidas e achadas” nas últimas décadas: o urutau-de-asa-branca (Nyctibius leucopterus), que ficou incríveis 168 anos desaparecido para a ciência. Essa espécie foi descoberta em 1821 no litoral da Bahia pelo naturalista Maximiliano de Wied-Neuwied. Desde sua descrição não se teve mais notícias dela até 1989, quando ela foi reencontrada nos arredores de Manaus, em plena Amazônia, a mais de 2500 km do litoral da Bahia. Os hábitos crípticos dos urutaus certamente contribuíram para essa espécie passar tanto tempo sumida. Mas, felizmente, quando ocorreu essa redescoberta a vocalização do urutau-de-asa-branca (um límpido assobio), até então desconhecida, pôde ser gravada. Munidos dessa gravação, ornitólogos utilizando a técnica do playback (em que aves, altamente territoriais, são atraídas pela reprodução do canto de sua própria espécie) localizaram a espécie em diversas localidades amazônicas, do Peru às Guianas, e, em 2003, de novo no litoral da Bahia.
Para saber mais: meu amigo e especialista em urutaus e bacuraus Thiago V. V. Costa estudou a anatomia dos urutaus. Seu trabalho pode ser conferido em Costa & Donatelli (2009). Cestari et al. (2011) estudaram o cuidado parental de Nyctibius griseus. O artigo inclui uma interessante foto do filhote já em posição ereta no “ninho” – se é que podemos chamar assim. Sobre as redescobertas de N. leucopterus, confira Cohn-Haft (1993) e Whitney et al. (2003). Para uma introdução popular a esses bichos bizarros, veja o texto de Fernando Straube na revista Atualidades Ornitológicas: Straube (2004).
Novas reflexões sobre o caso da ex-invisível e atual fedida Lagoa da Turfeira.
por Luciano Moreira Lima
NOTA IMPORTANTE: para quem está acompanhando o caso a partir de agora é bom ler o texto anterior também publicado aqui no Caapora (scienceblogs.com.br/caapora) para se situar melhor.
Sexta-feira está aí, é hora de recapitular os fatos…
Brejos, pântanos, manguezais e ecossistemas correlatos sempre foram alvo de um certo preconceito por parte da população geral. Além do Shrek, que -embora simpático- não deixa de ser um ogro, outras coisas não muito desejáveis são comumente associadas às área úmidas, mesmo que injustamente. A malária, por exemplo, tem origem no expressão “mal are”, pois se acreditava que só do sujeito respirar o “mal ar” dos brejos era tiro e queda pra tombar na cama.
Ogros pantanosos, doenças olfativas e outras injustiças cometidas contra as áreas úmidas à parte, é difícil deixar de lado uma característica que faz com que certas pessoas “torçam o nariz” para esses ecossistemas, e que acomete principalmente os manguezais, um característico cheirinho de enxofre. Quem já desbravou áreas de mangue sabe bem do que eu estou falando. É só afundar um pouco na lama que logo sobe aquele cheirinho mais forte. Não adianta olhar com cara feia para o amigo que vai caminhando na frente, a real causa cheiro é a decomposição intensa de matéria orgânica por uma miríade de bactérias que durante o processo acabam liberando enxofre.
Da Ilha de Marajó, no PA, à região de Guaraqueçaba, no PR, já percorri muitas áreas úmidas no encalço da passarada, mas nem os manguezais dos fundos da Baía de Guanabara superam o “mal are” que está exalando das áreas úmidas aterradas nas imediações da Lagoa da Turfeira. Dessa vez, no entanto, a culpa não é das bactérias, o mau cheiro é “daquilo mesmo que vocês estão pensando” que fizeram ali. Cheguei à conclusão que o “mal ar” está tão forte que tem levado a uma desbaratinização completa de algumas pessoas que visitaram a área a ponto destas afirmarem veementemente que havia sim sido detectado uma redução do espelho d’água e depois tentarem justificar o injustificável argumentando coisas do tipo: “não não, não matamos ninguém só amputamos um braço e uma perna, mas agora vamos monitorar o estado do paciente, vai morrer não, pode ficar tranquilo”.
Oooooh catinga!!!
Não vou entrar em detalhes sobre o disse-me-disse, mas muito tem se falado e algumas perguntas importantes ainda não foram respondidas:
Afinal, há ou não há um estudo de impacto ambiental sobre a malfadada obra? Se há, cadê?
Se não há, por que não há? Só estão dispensadas de apresentarem tal relatório empreendimentos considerados de baixo impacto, o que nos leva a outra pergunta importante: obras às margens de uma lagoa de quase 70 hectares são de baixo impacto?
Uma outra questão básica pode ser levantada aqui: se não houve estudo de impacto ambiental, não houve uma caracterização da lagoa, se não houve caracterização da lagoa como se sabe o nível que ela atinge durante a época da cheia. Sem saber isso, como estipular então onde começa o limite de proximidade a que a obra pode chegar (sendo ela 0,1 ou 1000 metros)? Essa fedeu muito, não?
Tem também a questão da licença de instalação, mas primeiro vamos esperar a resposta a essas perguntas mais básicas.
Desde a minha ida na lagoa na fatídica tarde do último sábado (21/04) fiquei imaginando que uma foto aérea atual seria perfeita para demonstrar o estrago. E não é que ontem a foto apareceu? Aproveito para agradecer ao Celso Dutra que gentilmente postou a imagem no meu FaceBook, e também ao André Pol que produziu o esquema abaixo mostrando que de fato houve sim o aterro de áreas alagas, pelo menos 5, também de acordo com o André. Na foto é possível ver ainda o quão colado na lagoa está o empreendimento, pelo visto as capivaras vão ter que se adaptar e passar a pastar as algas do fundo do espelho d’água.
A única dúvida que faz tempo já deixou de existir é sobre a importância conservacionista da Lagoa da Turfeira e áreas úmidas adjacentes, fato apontado diversas vezes até mesmo por aqueles que querem destruir a área. Paradoxal não? Fica mais uma pergunta: se já estava todo mundo careca de saber que a área é importante, por que não criaram a reserva antes? Mas tudo bem, pensemos no “antes tarde do que nunca”. Já que a reserva será criada, que tal ser tranformada em uma opção de lazer, com visitação controlada, que vai completamente ao encontro da vocação ambiental do município de Resende?
Abaixo seguem duas fotos para servirem como exemplo de parques em áreas úmidas que além de conservarem a biodiversidade, promovem a eduacão ambiental e geram recursos. Qualquer um que admire a natureza e tenha tido a chance de passear um pouco fora do país sabe que mundo afora, especialmente em paises como o Japão da Nissan, existem inúmeras reservas como essas da foto, grande parte delas inclusive como uma diversidade de aves muito MENOR que a da Lagoa da Turfeira.
Falando em Nissan e Japão, o famoso jornalista Ricardo Boechat (que literalmente mandou a prefeitura de Resende pra PQP – duvida?! eu também duvidei… ouça aqui) fez mais uma excelente e mal cheirosa pergunta: Será que o governo japonês autorizaria a construção de uma fábrica da Nissan em um local equivalente à nossa Lagoa da Turfeira? Será? Será? Não precisa assistir Globo Repórter e ouvir o Sérgio Chapellin falando “depois do intervalo, os segredos da longevidade dos japoneses” para saber que a resposta para a pergunta do Boechat. Afinal não é à toa que no Japão se vive mais, se sabe mais e trapalhadas políticas são motivo de comoção nacional, e isso tudo passa claramente pela relação do povo japonês com a natureza.
Fica então a pergunta final endereçada para a Nissan e seu presidente no Brasil Sr. Carlos Goshn: com tanta área de pasto abandonada Resende afora vocês vão mesmo querer construir a fábrica em um local que a coloca como uma séria ameaça a última grande área úmida remanescente da região Sul Fluminense? Pois se for o caso e essa importante empresa multinacional não der a mínima para um termo tão em moda quanto responsabilidade sócio-ambiental, é bom vocês irem se acostumando com o cheiro, porque com certeza, vez ou outra o negócio vai feder.
Depois da vergonha do Código Florestal, mais uma vez a sanidade ambiental do governo brasileiro está sendo colocada à prova. Agora é esperar e ver o que o que o laudo oriundo da visita do INEA irá concluir.
Aproveito para agradecer em meu nome e em nome da Lagoa da Turfeira e sua biodiversidade a todos que de alguma forma estão acompanhando, compartilhando, e lutando, especialmente o vereador Dr. Gláucio Julianelli e a jornalista Ana Lúcia Corrêa de Souza que assumiram posições no pelotão de frente.
A invisível Lagoa da Turfeira, uma tragédia ambiental anunciada…
por Luciano Moreira Lima
Uma das últimas grandes áreas úmidas da região sul fluminense corre sério risco de desaparecer
Das milhares de pessoas que diariamente passam pelo km 299 da Rod. Presidente Dutra (BR 116), poucas devem notar que contornada a oeste por uma abrupta curva do rio Paraíba do Sul está uma das últimas grandes áreas úmidas naturais da região sul fluminense, a Lagoa da Turfeira (também conhecida como Lagoa da Kodak devido a proximidade com uma antiga fábrica da referida empresa). Essa situação, no entanto, causa pouco espanto já que a grande lagoa parece não ser invisível apenas para os motoristas concentrados na estrada. Não adianta procurar pelos seus cerca de 700.000 metros2 em um detalhado mapa hidrográfico do município de Resende produzido em parceria com a prefeitura municipal –disponível aqui –. Você não verá a indicação de nem um pingo d’água em seu local. Fato no mínimo inusitado, uma vez que lagoas até 10 vezes menores são corretamente indicadas no mapa e se dos dermos conta que a Lagoa da Turfeira pode ser claramente observada a mais de 10.000 metros de altitude via Google Earth.
Se uma área equivalente a mais de 70 campos de futebol pode passar desapercebida, imagine aqueles que a habitam, como o diminuto tricolino (Pseudocolopteryx sclateri) de topete invocado e míseros 9,5 cms. Não bastasse o tamanho, esse bonito passarinho vive apenas no meio de densas moitas de taboa (Typha domingensis), uma das plantas mais características de áreas alagadas no Brasil. Ornitólogos e observadores de aves sabem que para poder observá-lo não basta apenas vontade é preciso se embrenhar-se no taboal, muitas vezes afundar com água acima do joelho e ficar de ouvidos atentos ao seu discretíssimo canto – ouça aqui – .
Mais de 11 anos de visitas regulares a Lagoa da Turfeira e seu entorno imediato realizadas em parceria com o amigo e também ornitólogo Bruno Rennó, resultaram no registro não apenas do discreto tricolino mas também de pelo menos outras 169 espécies de aves silvestres no local. Nesse total, que representa cerca de 20% das aves do Estado do Rio de Janeiro, estão incluídas espécies ameaçadas de extinção em âmbito estadual e diversas aves migratórias paras quais a lagoa representa um importante refúgio.
Os resultados desse estudo – parcialmente apresentados no XVI Congresso Brasileiro de Ornitologia – tornaram evidente a importância da Lagoa da Turfeira para conservação da biodiversidade fluminense e auxiliaram na sensibilização do poder público municipal para que algo fosse feito em prol da sua preservação . Dessa forma, em 2010 a Agência do Meio Ambiente do Município de Resende elaborou o documento “Estudo Técnico Preliminar para Constituição de Área Protegida no Banhado da Kodak”, e entre as principais conclusões estavam:
“A criação e implantação de unidade de conservação no Banhado da Kodak alinha-se aos compromissos internacionais do Brasil de proteger o ambiente, conforme metas estabelecidas pela ONU, em se tratando do Ano Internacional da Biodiversidade.
A criação e implantação da unidade acarretará ainda um aumento do ICMS do município, conforme prevê a Lei no 5.100 de 04 de outubro de 2007 e o Decreto no 41.101 de 27 de dezembro de 2007.
Constata-se, portanto, que a unidade trará grandes benefícios para o município […]”
Dois anos se passaram após finalização desse documento e aos poucos a Lagoa foi novamente caindo no esquecimento dos órgão governamentais, até a semana passada. Na última quinta-feira (19/04), alertado por amigos, descobri que a prefeitura Municipal de Resende havia orgulhosamente publicado uma imagem da Lagoa invisível em sua página do Facebook acompanhada de alguns parágrafos de notícia. No entanto, ao invés do título fazer qualquer menção a alguma ação visando a conservação da área lá estava: “As obras da Nissan”. Meio sem rumo e sem querer acreditar no que eu havia lido me dei conta que não apenas não seria feito nada para conservar a Lagoa como também estava sendo orgulhosamente anunciada o que poderia se tornar em uma das maiores tragédias ambientais recentes da região sul fluminense. Esperei o final de semana chegar e fui para casa em Resende ver com meus próprios olhos a situação da área.
Era por volta de 14:00 do último sábado (21/04). Da Dutra já era possível ver uma gigantesca área de terra exposta meio enevoada pela poeira levantada pelo ir e vir constante de uma verdadeira frota de máquinas escavadeiras e caminhões. Segui pela estrada de chão paralela a lagoa e encarado pelo olhar apreensivo das pessoas que lá trabalhavam fui desviando das escavadeira e caminhões. O barulho constante dos motores e a poeira contribuíam deixando o cenário de destruição ainda mais desolado e logo me dei conta que eu não era o único perdido por ali, uma garça-branca-grande (Ardea alba) e duas garças-brancas-pequenas (Egretta thula) voavam sem rumo entre duas poças já lamacentas sendo repetidamente espantadas pelas máquinas.
Procurei em vão pela área onde em 2001 havia feito o primeiro registro documentado da triste-pia (Dolichonyx oryzivorus) no Estado do Rio de Janeiro – veja a publicação científica aqui – e onde também observávamos com frequência o ameaçado coleiro-do-brejo (Sporophila collaris). Tarde demais, a passarada havia simplesmente virado terra nua. Um pouco mais para frente em uma área que ainda mantinha um pouco de vegetação uma concentração impressionante de aves, onde chamava atenção o colorido dos chopim-do-brejo (Pseudoleistes guirahuro) e da polícia-inglesa-do-sul (Leistes superciliaris), lembravam refugiados aglomerando-se as centenas e fugindo de um verdadeiro massacre.
Um pouco mais pra frente na estrada dirigi até o alto de uma colina e de lá pude avaliar melhor o estrago. A extensão da área aterrada era impressionante e embora até aquele momento tenha sido poupado o espelho d’água principal diversas áreas úmidas existentes ao seu redor foram completamente aterradas. De lá também pude rever também algo que sempre me causou especial presságio. Um antigo canal localizado no canto nordeste ligando-a ao Rio Paraíba do Sul, embora hoje esteja parcialmente assoreado já funcionou como sangradouro de suas águas podendo novamente ser utilizado para extinguí-la. No caminho de volta, entrei por uma estrada que acabava de ser aberta e estranhamente terminava no espelho d’ água, fiquei ainda mais apreensivo me perguntando a função daquele caminho.
Por conta do mestrado sou obrigado a morar em São Paulo e aos poucos vou me acostumando com os engarrafamentos, poluição e violência urbana. Por isso, nada contra a montadora de carros, tampouco contra o dito progresso que prevê que a população de Resende aumente cerca de 50.000 pessoas nos próximos 5 anos. Mas, vale lembrar que lagoas são caracterizadas como áreas de preservação permanente, por isso são áreas intocáveis.
Além disso, certamente deve ter sido produzido um estudo de impacto ambiental para uma obra dessa magnitude, o qual certamente também deve ter identificado que qualquer atividade que afete a lagoa poderá resultar em uma tragédia irreversível para biodiversidade da região. Sendo assim, gostaria também de ter tido a oportunidade de participar de alguma audiência pública onde o destino da Lagoa da Turfeira pudesse ser seriamente debatido.
Embora seu entorno já tenha sido bastante impactado ainda há tempo de salvar o que restou da última grande área úmida natural da região meridional do vale do Rio Paraíba do Sul. A implementação de uma unidade de conservação no local, em âmbito municipal ou estadual, seria não apenas uma forma de garantir a existência a longo prazo da Lagoa da Turfeira e sua rica biodiversidade, mas também a oportunidade de criação de um espaço onde através de trilhas interpretativas e um centro de visitação a população resendense conquistasse uma nova opção de lazer que vai totalmente de encontro a vocação ambiental do município. Vale lembrar o grande potencial da área para prática de uma das atividades ao ar livre que mais crescem no país a observação de aves. Não por acaso, a Lagoa da Turfeira ocupa três páginas do livro “A Birdwatching guide to South-East Brazil”, o qual traz informações detalhadas sobre alguns dos principais locais para observação de aves no sudeste do país. Sem contar nas inúmeras fotos clicadas no local e disponíveis no site WikiAves – veja aqui – e que demonstram que os ambientes da lagoa são frequentemente procurados por observadores de aves.
Por volta das 16:30 o céu nublado evolui para uma chuva fraca que ajudou a esconder os olhos cheios. De fato a ignorância é o melhor caminho para felicidade. Minha tristeza maior não era por ser testemunha ocular de tamanha agressão a natureza, mas principalmente por saber a importância daquele lugar para a vida e conhecer pelo nome e sobrenome todos aqueles fadados a buscar em vão um novo lar. Voltei para casa desolado mas disposto a fazer todo o possível para mostrar que as cores e os sons das milhares de vida que dependem da Lagoa da Turfeira fazem que ela seja considerada qualquer coisa, menos invisível. Cientes que a tragédia estava anunciada depende de nós deixar ou não que ela aconteça.
Caapora, o retorno…
Após um longo período de hibernação o Caapora desperta. Os leitores antigos perceberão que as recentes mudanças no visual do seu habitat natural aqui no Scienceblogs Brasil são apenas uma das novidades dessa nova fase. Agora, além deste que lhes escreve, Luciano Lima, fazem parte do “corpo editorial” do Caapora os amigos e também zoólogos Guilherme Garbino e Rafael Marcondes, os quais aproveito para agradecer por terem aceitado o convite para fazer parte desse projeto cujo único ressarcimento é a oportunidade de aprender através do compartilhamento de conhecimento.
O Caapora pretende continuar a fazer jus ao seu significado em tupi, “aquele que vive no mato”, levando seus leitores em jornadas pelas matas, cerrados, caatingas e brejos desse país e cumprindo o seu papel sócio-ambiental de divulgar informações sobre as camadas menos conhecidas da biodiversidade ofuscadas pela popular fauna carismática.
Ao lado podem ser encontradas informações mais detalhadas sobre Rafael e Guilherme e sobre mim, já que minha vida deu um bom upgrade desde as últimas palavras compartilhadas por aqui há mais de dois anos.
Arquivo Z – Mustela africana, a doninha-amazônica
Após alguns meses de silêncio forçado por conta de trabalho quase escravo – espero que meu chefe não leia isso -, o Caapora volta a ativa.
Desde que migramos para o ScienceBlogs, estava pretendendo iniciar uma série de postagens sobre animais brasileiros desconhecidos do público em geral, criaturas ofuscadas pela fama dos mico-leões, araras-azuis, tartarugas marinhas e demais integrantes da chamada “fauna carismática”. Pois bem, nada melhor que retomar as coisas cumprindo promessas do passado. Para inaugurar a série apresento a vocês uma doninha que poderia muito bem sofrer de crise de identidade.
Em 1735, o botânico sueco Carl Linné criou um novo sistema de classificação e nomenclatura dos seres vivos, o qual agrupava as espécies em ordem hierárquica e dava a cada uma delas um binômio exclusivo. Este engenhoso sistema foi capaz de colocar ordem no verdadeiro pandemônio que era a taxonomia e a sistemática até o início do séc. XVIII e acabou sendo tão bem aceito por zoólogos, botânicos e demais estudiosos de tudo o que é vivo, que mais de 200 anos após sua criação continua em uso praticamente sem alterações, uma impressionante façanha dentro da “metamorfose ambulante” que é a ciência.
Embora muitos pesquisadores estudiosos da biodiversidade, especialmente os não ligados diretamente a taxonomia, reclamem das mudanças ocasionais na nomenclatura e classificação de algumas espécies, um dos pilares do sistema criado por Linné é justamente a imutabilidade. De acordo com o “Principio da Prioridade” (artigo 23 do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica), o nome válido de um táxon é o nome mais antigo disponível atribuído ao mesmo, ou seja, uma vez batizada uma espécie seu nome jamais poderá ser alterado. Os casos de mudanças mencionados acima geralmente se referem a mudanças ao nível de gênero e refletem avanços no conhecimento sobre o relacionamento entre diferentes táxons. Jamais são permitidas alterações no nome científico de uma espécie por motivos outros que não a mudança de gênero por conta de novos arranjos sistemáticos ou a aplicação direta de alguma das regras do ICZN.
Imagine você, um taxonomista do século XIX, funcionário de um museu europeu e que recebe de uma das colônias de seu país um carregamento de espécimes incluindo algumas espécies até então novas para ciência. A maioria dos exemplares não possui qualquer etiqueta com informações mínimas como local e data de coleta, e ao ver a palavra “África”escrita do lado de fora da caixa, você é tentado a acreditar que os animais provavelmente foram coletados em algum lugar do continente Africano, quando na verdade parte deles é provenientes da América do Sul. Situações aparentemente inusitadas como esta, ocorriam com certa freqüência em muitos museus europeus até o final do século XIX e foram responsáveis por inúmeras injustiças nomenclaturais, como é o caso do animal que inaugura a série de postagens sobre animais brasileiros pouco conhecidos.
A doninha-amazônica (Mustela africana) é uma das sete espécies brasileiras da família Mustelidae, a maior família da Ordem Carnívora com cerca de 55 espécies, e que além das doninhas, inclui animais como os furões, a irara, a lontra e a ariranha. Como prova de quão interessante são esses animais transcrevo abaixo a frase da apresentação de um amigo, que terá sua identidade preservada, retirada de um site de relacionamentos: “Meu nome é X, sou um humano como todos vocês que estão lendo este texto, mas o que eu queria mesmo era ser um mustelídeo”.
Com quase 50 cm da ponta da cauda, que corresponde a aproximadamente metade do tamanho do corpo, até a ponta do focinho a doninha-amazônica pode ser considerada relativamente grande quando comparada a outros representantes do gênero. Vista por cima, parece ser toda marrom-avermelhado escuro, mas o queixo, as partes inferiores da pata e a barriga são claras, esta última com uma extensa mancha castanha no meio. As solas das patas são peladas e os dedos dos membros anteriores são parcialmente unidos por membranas interdigitais demonstrando que a espécie pode apresentar hábitos semiaquáticos. Até onde pude constatar, não são conhecidas imagens da doninha-amazônica em seu ambiente natural ou mesmo de animais em cativeiro, apenas fotos de peles de museus como a do espécime tipo exibido abaixo.
A doninha-amazônica foi descrita em 1838 pelo zoólogo francês Anselm Gaëtan Desmarest, o exemplar tipo (foto acima) muito provavelmente deve ter sido coletado pelo famoso Alexandre Rodrigues Ferreira, o primeiro naturalista brasileiro, e foi um dos milhares de espécimes saqueados do Museu da Ajuda de Portugal e levado para o Museu de História Natural de Paris durante a Invasão Napoleônica. Sem saber a procedência correta do exemplar que tinha em mãos, Desmarest se limitou a indicar a localidade tipo como “d’Afrique” e tratou de batizar a nova doninha como Mustela africana.
Em 1897, Emílio Goeldi, célebre zoólogo cujo nome foi imortalizado no Museu Paraense Emílio Goeldi, descreveu a partir de exemplares coletados no Pará a doninha Mustela brasiliensis. Em 1913 Angel Cabrera demonstrou que a espécie descrita por Goeldi era a mesma que havia sido batizada por Desmarest em 1838, evidenciando assim o erro do zoólogo francês. Regra existe para ser cumprida, Mustela brasiliensis passou a ser tratado como sinônimo de uma espécie que já havia sido descrita anteriormente, e Mustela africana passou a ser o nome das doninhas amazônicas.
Passados mais de 150 anos de sua descrição, Mustela africana é, ainda hoje, considerado um dos mamíferos mais enigmáticos da América do Sul e sua distribuição ainda não é conhecida em detalhes. Os poucos dados existentes apontam para uma ocorrência restrita a Bacia Amazônica, com registros conhecidos para o Brasil, Equador e Peru. Injustiças nomenclaturais a parte, o caso da doninha-amazônica nos mostra que não apenas as aparências, mas também os nomes e os zoólogos enganam e se enganam. Assim sendo, só nos resta aceitar a tirania do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica e nos conformar que a mais brasileira das doninhas será sempre “africana”!
Referências
Desmarest, A. G. (1818) Nouv. Diction. d’Hist. Nat., 19:376
Goeldi, E. (1897) Ein erstes authentisches Exemplar eines echten Wiesels
aus Brasilien. Zool. Jahrb., Abt. f. systematik, geogr. u. Biol.,
10:556-562, pi. 21, September 15, 1897.
Cabrera, A. (1913) Sobre algunas formas del género “Mustela.” Bol. d. 1. Real Soc.
Espaiiol d. Hist. Nat., 13:429-435, November, 1913.
Foto da semana – Diga ahhhhhhh (Leptophis sp)
Após uma semana explorando a selva de pedra carioca, nada melhor que estar de volta a Búzios e o que sobrou de sua Mata Atlântica. Embora já esteja morando há quase dois meses na minha nova residência ainda não tive tempo de conhecer todos os inquilinos que habitam o quintal ou os vizinhos que rondam pelas redondezas. No último sábado, enquanto virava e desvirava o churrasco, me deparei com esta belíssima cobra-cipó pendurada na bananeira ao lado da churrasqueira de onde me observava atentamente. De nada adiantou oferecê-la churrasco e cerveja, ela não estava de muito bom humor e tentou a todo custo me manter a distância com sua bocarra escancarada.
O gênero Leptophis é composto por serpentes que são na sua maioria semi-arborícolas e de hábitos diurnos. Cerca de 90% da sua dieta é composta por pererecas que são capturadas por busca ativa entre folha e cavidade de árvores e bromélias.
Foto da semana – Periquitão-maracanã (Aratinga leucophthalma)
Apesar de muitíssimo mais comum que a raríssima arara-azul-de-lear (Anadorhynchus leari) ganhadora do concurso deste ano, o periquitão-maracanã (Aratinga leucophthalma), também popularmente conhecido como maritaca, pode ser facilmente observado nas áreas urbanas de muitas cidades brasileiras. Não obstante, a ubiquidade está longe de diminuir sua beleza, especialmente quando ilumidado por uma providencial luz de fim de tarde.
Resultados do 3° Concurso Avistar – Itaú BBA de Fotografia “Aves Brasileiras”
Acabam de ser divulgados os ganhadores do 3° Concurso Avistar – Itaú BBA de Fotografia – “Aves Brasileiras”. A belíssima foto abaixo,”Balé das Araras”, de autoria do amigo Ciro Albano, foi a grande ganhadora na categoria “Melhor Foto”. O restante das fotos premiadas podem ser conferidas no site do evento que este ano contou com mais de 6500 concorrentes. O Caapora aproveita ensejo para parabenizar Guto Carvalho, idealizador do concurso e do “Avistar – Encontro Brasileiro de Observação de Aves”, pelo indispensável trabalha que vem realizando em prol da popularização da observação de aves no Brasil.
Foto da Semana (o retorno) – Atobá-pardo (Sula leucogaster)
tchhhhhhh câmbio, alguém na escuta…
Depois de um período um tanto quanto lacônico o Caapora vai aos poucos voltando a ativa.
Para celebrar o retorno e colocar um pouco mais de cores no hábitat novo do Caapora aqui no Scienceblogs Brasil nada melhor que reinaugurar a série fotos da semana.
As duas aves acima são atobás-pardos (Sula leucogaster), foram clicadas na Praia Grande em Arraial do Cabo – RJ. Sempre achei “atobá-pardo” um nome injusto para um bicho tão bonito, mas vá lá, existem injustiças nomenclaturais bem maiores, falarei um pouco mais sobre isso em uma próxima postagem. Voltando ao atobás… os Sulidae são aves interessantíssimas, seu principal alimento são peixes, os quais são pescados através de mergulhos kamikazes (assista esse vídeo no you tube para entende melhor). Por conta de sua maneira única de obter alimento estas aves possuem diversas adaptações notáveis, sendo a falta de narinas uma das mais incríveis. Prometo dedicar uma postagem futura exclusiva a esses interessantes bípedes emplumados.
Preguiças marinhas nadadoras!
Até hoje não consegui atingir o nirvana do zoólogo praticante, ou seja, descobrir e descrever uma nova espécie. Mas tudo bem, culpa minha ter escolhido a ornitologia e não outros campos menos explorados da zoologia. Certa vez ouvi a confissão de um ex-ornitólogo e, atualmente, influente ictiólogo do MZUSP, de que ele havia se convertido à ictiologia pois caso quisesse poderia descrever tantas espécies novas de peixes que sobraria homenagem até para a sogra.
Embora não tenha batizado nenhuma espécie desconhecida, quase diariamente, de mato em mato e livro em livro, experimento em doses homeopáticas o prazer de se deparar com uma criatura incógnita. Arrisco-me a dizer que entre os prazeres do intelecto poucos são capazes de concorrer com a sensação arrebatadora de se descobrir sobre a existência de uma criatura que até então se ocultava na vegetação cerrada da humilde ignorância.
Embora enebriante, como todo novo achado, descobrir um animal já descoberto têm também um quê de frustração indagada, algo do tipo “como eu não sabia nada sobre isso?”. Assim me aconteceu com o extinto gliptodonte, um tatu de tamanho de um fusca, a raríssima doninha-amazônica (Mustela africana), que apesar do epíteto “africana” é uma espécie restrita a bacia amazônica, e muitas outras criaturas incríveis. Poucas destas descobertas, no entanto, me renderam tamanha surpresa quanto quando soube pela primeira vez da existência dos Thalassocnus.
Recentemente paleontólogos brasileiros divulgaram a descoberta de um fóssil quase completo de uma extinta preguiça terrestre que viveu há míseros 11 mil anos atrás na atual região da Chapada Diamantina, interior da Bahia. Embora ainda fosse um indivíduo jovem, o exemplar de Ahytherium aureum baiano possuía mais de três metros de comprimento e estima-se que pesava cerca de 500 quilos.
Como se não bastasse a majestade bestial das preguiças-gigantes, os ossos de Ahytherium aureum revelaram uma faceta incrível de sua biologia. Sua cauda era um pouco achatada, lembrando a das atuais lontras, o que levou seus descobridores a sugerirem que ela fosse uma ótima nadadora. Preguiças-terrestres-gigantes já são dignas de figurarem em qualquer enredo épico fabuloso ao lado de criaturas como as gigantescas árvores andantes de “O Senhor dos Anéis” e aquele mega-cachorro de “A História sem Fim”, o que dizer então de preguiças-nadadoras?
Mas, o poder criativo despretensioso da evolução é capaz de quase qualquer coisa. Imagine você um paleontólogo escavando fósseis em depósitos marinhos na costa sul-peruana. Entre os fósseis de conchas, peixes, leões-marinhos e baleias você se depara com vários ossos de preguiças-terrestre. Hipótese número 1, alguém colocou isso aqui e está tirando uma com a minha cara; hipótese número 2, estou precisando dormir mais; hipótese número 3, descobri uma preguiça-marinha e vou publicar na Nature. Adivinhe qual hipótese Muizon e MCDonald escolheram? Lá está, edição número 375 da Nature, pág. 224: “An aquatic sloth from de Pliocene of Peru”. Neste artigo foi batizado Thalassocnus natans, traduzindo do grego: “thalassa” = mar, “socnus” = preguiça e “natans” = nadadora, ou seja, preguiça marinha nadadora.
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- Thalassocnus natans. Imagem de Bill Parsons retirada daqui.
As justificativas que corroboram o tratamento de Thalassocnus natans como um verdadeiro mamífero marinho, vão muito além do simples fato de seus fósseis terem sido encontrados em sedimentos marinhos. Diversas características em seu esqueleto demonstram que esta criatura surreal possuia várias adaptações que permitiam que ele se sentisse completamente à vontade na água.
A mais evidente destas adaptações é que, ao contrário de todas as suas parentes terrestres, Thalassocnus possui os membros anteriores mais compridos que os membros posteriores. Uma adaptação encontrada também em diversos grupos de animais aquáticos atuais que utilizam as patas anteriores como potentes remos, como os peixes-boi e as focas.
Outras adaptações notáveis de Thalassocnus à vida aquática incluem as vértebras da cauda, similares às das lontras e castores, e características do crânio e da mandíbula que estão relacionadas com a capacidade de morder e arrancar algas do fundo do mar. Durante o Plioceno, época em que viveram as preguiças-marinhas, a costa peruana foi um árido deserto e dentro deste contexto não é difícil conceber que algas marinhas eram uma das poucas fontes de alimentos disponíveis para um herbívoro de grande porte.
É muito provável que em um ambiente desértico as algas marinhas funcionaram como verdadeiras sereias gastronômicas, estimulando os ancestrais do Thalassocnus a se lançarem ao mar. Outra evidência que as preguiças marinhas se alimentavam basicamente de algas pode ser encontrada nos seus dentes. Além de apresentarem uma morfologia diferente de suas parentes terrestres, os dentes de Thalassocnus apresentam inúmeras marcas de desgaste causadas pela abrasão dos dentes com a areia da praia. Se você já tentou comer aquele queijo-coalho na beira da praia que a peste do seu sobrinho meteu a mão cheia de areia, você então já experimentou algo parecido com os hábitos alimentares das preguiças-marinhas.
Os representantes da família dos atuais peixes-bois, e outros grupos de animais aquáticos extintos, possuem os ossos muito mais espessos e pesados que o normal. Esta característica é conhecida como paquiostose e é uma adaptação que torna esses animais mais pesados, permitindo que eles afundem e se alimentem das algas no leito marinho. As preguiças marinhas não possuíam tal adaptação e o mais provável é que utilizassem suas longas garras para se agarrarem nas algas no fundo do mar semelhante ao que fazem as iguanas-marinhas das Ilhas Galápagos.
Desde a descrição de Thalassocnus natans, em 1995, quatro outras espécies de preguiças marinhas foram desenterradas na mesma formação da costa peruana. O mais interessante, no entanto, é que cada uma destas espécies viveu em um determinado período de tempo entre o Mioceono e o Plioceno e que seus fósseis demonstram uma transição incrível entre a vida terrestre e marinha. O desgaste causado nos dentes pela areia, por exemplo, diminuiu gradativamente entre as espécies mais antigas e as mais recentes, demonstrando que as preguiças marinhas estavam buscando seu alimento cada vez mais fundo e não mais se alimentando de algas trazidas pela maré.
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- Mandíbulas de cinco espécies de Thalassocnus, a esquerda a mais antinga a direita a mais jovem. Note o aumento progressivo da ponta da mandíbula, uma adaptação relacionada com o desenvolvimento de lábios grandes semelhantes aos dos peixes-boi que ajudam na hora de se alimentar de plantas aquáticas.
É bastante possível que Thalassocnus yuacensis, a espécie mais recente de peguiça-marinha, tenha sido tão adaptada à vida aquática quanto os atuais pinipedes. No entanto, há cerca de 1,5 milhões de anos atrás as preguiças-marinhas se extinguiram. Talvez a distribuição aparentemente restrita tenha favorecido a extinção por alguma doença, ou mudanças climáticas severas podem ter afetado as algas que eram seu principal alimento. Extintas ou não, criaturas fabulosas como as preguiças-marinhas estão longe de ser raridade e poder aprender um pouco mais sobre estes animais incríveis é um ótimo motivo para celebrarmos a ignorância.