Primatofobia e questões existenciais…

por Guilherme Garbino

Foi na primeira metade século XVI que Copérnico retirou a terra do centro do universo, trocando-a pelo Sol. Após correr um sério risco de ser queimado vivo, o cientista retirou suas alegações. Anos depois, Galileu Galilei, considerado um dos pais do método científico, fez a mesma afirmação e foi condenado a prisão domiciliar.

Incrivelmente, só dois séculos depois de Galileu ter jogado o planeta Terra para escanteio é que surgiram os primeiros indícios de um outro reposicionamento universal, o do lugar do ser humano no universo, assumindo nossa espécie a posição de  “apenas outro grande símio”. Mais estranho ainda é pensar que o “Príncipe dos Botânicos”, Carl Linnaeus, o grande classificador do século XVIII e indubitavelmente um não-evolucionista, colocou o Homo sapiens dentro da ordem Primates.

Na décima edição de seu Systema Naturae, Linnaeus criou o gênero Homo. Originalmente, o gênero incluía duas espécies: Homo sapiens e Homo troglodytes. Como de praxe, o autor oferece uma diagnose de suas espécies. A descrição de H. sapiens são apenas três palavras: Nosce te ipsum (Conheça a ti mesmo).  A segunda espécie de Homo, entretanto, claramente refere-se a uma criatura mitológica que, pelas fontes citadas por Linnaeus, seriam seres albinos habitantes de cavernas. Há também um relato do viajante holandês Jakob de Bondt que se refere a uma criatura que pode ser uma orangotango fêmea ou uma mulher com hipertricose. O Homo troglodytes de Linnaeus não tem nada a ver com o Simia troglodytes de Blumenbach, este último o nome científico do chimpanzé (hoje Pan troglodytes). O sistema binomial de nomenclatura admite o mesmo epíteto específico em gêneros diferentes.

Figura de Jacob de Bondt, uma das fontes de Linnaeus, retratando um dos humanóides por ele observado durante duas viagens às colônias holandesas nas ilhas do sudeste asiático.

A última espécie de Homo descrita por Linnaeus, o Homo Lar, também é uma criatura real, nesse caso gibão de lar (hoje Hylobates lar), que foi descrito, assim como outros primatas, em seu Mantissa Plantarum, embora, até onde sei, não se trate de uma espécie de planta. Três novas espécies de “símios” foram ainda posteriormente descritas por Linnaeus, em 1760, na dissertação de seu aluno, Hoppius, entitulada Anthropomorpha (até meados do século XIX era costume na Suécia que o professor escrevesse a tese e o aluno apenas arcasse com os custos!): Simia Satyrus, Simia Lucifer e Simia Pygmaeus; Todas baseadas em ilustrações das quais a única que se refere a uma criatura real é Simia Pygmaeus, o orangotango de Bornéu que o classificador sueco nomeou pygmaeus por pensar ser esse um membro da raça de pigmeus mencionada por Homero.

Ilustrações dos “Anthropomorpha” de Linnaeus, presentes no livro de Hoppius. Da esquerda para a direita: Simia Troglodyta, Símia Lúcifer, Símia Satyrus e Simia Pygmaeus.

Embora essa primeira classificação tenha um teor otimista e de justiça filogenética (ao menos para mim, que leio isso em 2012), colocando os humanos firmemente na Ordem que incluía os outros macacos, lêmures, társios, colugos e morcegos, a classificação de Linnaeus, vale lembrar, tinha um caráter prático e artificial, agrupando os seres vivos, por vezes, com base em um único caráter similar compartilhado (no caso de Primates, o número de incisivos). Para termos alguma noção de como essa classificação do homem foi recebida numa Europa antropocêntria, o alemão Blumenbach, em 1775, apontou que o grande erro de Linnaeus foi misturar atributos dos símios com os do homem.

A escola francesa pós-revolução e os alemães, no entanto, insistiram em dar um lugar especial ao homem; nesse sentido, nomes muito conhecidos como Georges Cuvier, Étienne Geoffroy Saint-Hilaire e Johann Blumenbach separaram o Homo sapiens em uma ordem exclusiva de mamíferos, Bimana (“duas mãos”), e os outros primatas na ordem Quadrumana (“quatro mãos”). Sir Richard Owen, diretor do Museu Britânico, foi além e classificou o homem como único representante de Archencephala (ou cérebros dominantes) uma de suas quatro subclasses de Mammalia, com base em características supostamente únicas de nosso encéfalo.  Na época essa idéia foi veementemente contestada, principalmente por Thomas H. Huxley.

O extremo talvez tenha sido atingido, em pleno século XX, por Julian Huxley, neto de T. H. Huxley, que em 1942 propôs separar o homem em um Reino a parte, o “Psicozoa”, argumentando que possuímos o caráter único de cultura e “domínio do mundo” (o que quer que isso queira dizer). Os homens, principalmente os do sexo masculino da Europa e dos EUA, simplesmente se recusavam a aceitar nosso passado simiesco.

Somente um século após Linnaeus outros naturalistas voltaram a incluir o homem em Primates. Ninguém menos que Charles Darwin, em seu livro de 1871, “The Descent of Man and selection in relation to Sex” (A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo), propôs, depois desse enorme hiato, que “o homem, sob um ponto de vista genealógico, pertence aos Catarhini (sic)”. Ao saber disso, a mulher do bispo de Worcester exclamou a famosa frase: “descendente de símios! Querido, vamos rezar para que isso não seja verdade, mas se for rezemos para que isso não se espalhe!”.

Charge do século XIX, onde o gorila diz “Aquele homem quer meu pedigree. Ele diz que é um de meus descendentes”. Sr. Bergh (um dos fundadores da sociedade protetora dos animais) responde “Sr. Darwin, como você pôde insulta-lo dessa maneira?”. (Fonte: http://claesjohnsonmathscience.wordpress.com/2011/12/15/scientists-and-science-in-cartoons/)

Essa aversão ao “rebaixamento” do homem fez com que mesmo os anatomistas mais experientes do ocidente ignorassem a evidência diante dos seus olhos. De fato, W.K. Gregory, em artigo publicado na Science, criou o termo “pitecofobia”, que fica perfeitamente definido nas próprias palavras do autor (em tradução livre minha): “Esse novo tipo de fobia pode, portanto, ser chamada de pitecofobia, ou o medo de símios, especialmente o medo de símios como parentes próximos ou ancestrais”. E depois adiciona, com sarcasmo: “Durante os últimos anos essa fobia se tornou quase pandêmica; especialmente nas comunidades rurais”.

William King Gregory (1876-1970), mastozoólogo e antropólogo do American Museum of Natural History em Nova Iorque.

Hoje o homem é classificado (pela maioria dos autores) como membro da famíla Hominidae, que também inclui os chimpanzés e bonobos (gênero Pan), gorilas (gênero Gorilla) e os orangotangos (Pongo), sendo que nosso gênero teria se separado de Pan há mais ou menos 6 milhões de anos. Existe ainda o que seria impensável pelos vitorianos do século XIX: a proposta da criação de um “direito dos grandes-símios”, de maneira similar aos Direitos Humanos, mas distinta dos Direitos Animais, o “Great Ape Project”.

Filogenia dos Hominoidea vivente, com alguns fósseis-chave incluídos (Fonte: Scientific American, 16:4-13. Junho de 2006)

Esse exemplo serve para nos mostrar como preconcepções errôneas e fortemente enviesadas fazem com que um corpo enorme de evidência seja ignorado, ou que haja uma “forçada de barra” para garantir nossa exclusividade, como fez J. Huxley. Como responsável por tantas outras mudanças de paradigma na biologia, a evolução de Darwin e Wallace cimentou o pedestal humano junto aos outros grandes símios e de lambuja respondeu duas das grandes perguntas existenciais que sempre acompanharam a humanidade: “quem somos e de onde viemos”. Para saber para onde vamos “ligue djá” para o seu vidente de confiança…

Resgates de fauna e suas verdades ocultas

por Rafael Marcondes, Luciano Moreira Lima & Guilherme Garbino

Recentemente foi amplamente noticiado a morte em massa de animais silvestres afogados devido ao enchimento da represa da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, que está sendo construída no Rio Madeira, próximo à cidade de Porto Velho – RO. De acordo com uma pessoa que trabalhou nas atividades de  resgate de fauna durante o enchimento do lago da usina, o resgate foi ineficaz e houve um verdadeiro extermínio de animais na região. Antas, tatus, pacas, cotias e diversos outros bichos se afogaram, morreram e apodreceram nas águas do Madeira. O consórcio Santo Antônio Energia, responsável pela construção da usina respondeu que realmente ocorreram mortes, mas elas teriam sido míseros “1,8%” do total de animais resgatados, 25.517, e que desses, 97,7% haviam sido devolvidos “saudáveis” a natureza.

Um dos milhões de animais afogados pelo enchimento do lago da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia. Fonte - aqui -

Um pequeno exercício matemático revela uma verdade oculta e macabra por traz são desses números. Vamos raciocinar um pouco… Uma espécie típica de ave passeriforme possui uma densidade populacional de 1 casal a cada 5 hectares, ou 1 indivíduo a cada 2,5 hectares (Terborgh et al. 1990). Segundo a própria Santo Antônio Energia, a área a ser alagada é de 16.400 hectares. Essa área comporta, portanto, cerca de 6.560 indivíduos de uma espécie típica de pássaro. Numa estimativa, conservadora, 200 espécies de passeriformes ocorrem na região do alto Rio Madeira. Multiplicando 6.560 por 200, chegamos a outra estimativa, também conservadora, de mais de 1 milhão de pássaros na área a ser inundada! Apenas de aves passeriformes! Não estamos contando as demais aves, nem répteis, anfíbios, mamíferos, borboletas e a míriade de outros invertebrados. Se os contássemos, facilmente a conta chegaria a bilhões de animais. Nesse contexto, a afirmação da empresa de que teriam sido 459, ou melhor, 459,306 para ser mais exato, os animais mortos pelo alagamento dispensa mais comentários.

Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, Rio Madeira, Rondônia, ainda em fase de construção. Com as obras completamente concluídas mais de 16.000 hectares de florestas estarão para sempre submersos.

Vamos deixar um pouco de lado os infortunados que não conseguiram embarcar na Arca de Noé e nos concentrar em analisar o destino desses quase 25 mil animais resgatados e devolvidos “saudáveis” a natureza. Um ótimo ponto de partida para nos enveredarmos nessa questão é um elucidativo artigo do Professor Marcos Rodrigues, da UFMG, publicado em 2006 na revista Natureza & Conservação. Nessa publicação o autor levanta uma série de questões sobre o destino dos animais realocados, compartilhadas abaixo.

O objetivo declarado dos resgates de fauna é salvar animais que de outra maneira se afogariam. Para isso, equipes de biólogos e veterinários capturam animais, principalmente vertebrados, durante o enchimento da represa. Os animais capturados passam um breve período em centros de reabilitação e em seguida são liberados em áreas que, teoricamente, possuem características semelhantes àquelas de onde foram retirados, mas onde, obviamente, não haverá alagamento.

Embora lógico a primeira vista, esse procedimento parece ignorar o fato que muitas das espécies incluídas nesse bolo são territorialistas. Nesses casos, cada indivíduo, casal ou bando, dependendo da espécie, defende uma área da floresta (ou cerrado, caatinga, etc.), mantendo um território geralmente com fronteiras muito bem delimitadas. As vantagens do animal manter um território estão relacionadas principalmente com competição por recursos, incluindo alimento, abrigo e parceiros reprodutivos. Por isso, muitas espécies defendem exaustivamente seus territórios, não tolerando indivíduos da mesma, ou, por vezes, até de outras espécies. Em um ecossistema em equilíbrio, geralmente a maior parte do espaço está ocupada por territórios de uma dada espécie, imediatamente onde termina o território de um indivíduo, já começa o de outro. Áreas “desocupadas” geralmente não apresentam recursos necessários para aquela espécie.

O leitor provavelmente já entendeu onde acabaremos chegando. Ora pois, os animais resgatados são soltos em áreas onde geralmente não há territórios vagos, o que, consequentemente, resultará em uma superpopulação local da espécie. O que acontecerá então com esses indivíduos? As opções não são muitas e, possivelmente, eles tentarão tomar o território de um indivíduo já estabelecido. No entanto, as chances de sucesso são baixas, pois o recém-chegado, além de não conhecer o novo local, provavelmente estará em má-forma e estressado, após fugir da inundação, ser mantido em gaiolas, transportado etc., diminuindo ainda mais suas chances.

Caso não morra por motivos resultantes de disputas territoriais, o “invasor” poderá tornar-se um “satélite”: indivíduos que vagam em busca de um território desocupado. As chances de sobrevivência de um satélite, no entanto, são baixas, pois ele tem menor acesso a recursos e constantemente tem que se envolver em disputas com indivíduos cujos territórios ele invade. Além disso, quanto maior o número de satélites, mais tempo os indivíduos territoriais tem que passar se defendendo, diminuindo assim o tempo dedicado a atividades como alimentação e reprodução. Ou seja, a introdução dos indivíduos translocados pode impactar seriamente as populações naturais já estabelecidas

Assim, fica claro que resgates de fauna são muito pouco efetivos frente ao número de animais afetados no alagamento causado por uma usina hidrelétrica de grandes proporções, ou pior, podem funcionar como um “tiro no pé”. No entanto, é uma atividade com grande repercussão na mídia (quem nunca viu na televisão cenas de animais sendo resgatados por helicópteros e depois saindo de gaiolas para a “liberdade” da floresta?) e popular frente à opinião pública, que acredita que os animais estão realmente sendo “salvos” e ignoram que outros centenas de milhões foram, literalmente, por água abaixo ou sentenciados a vagar sem rumo nem direção pela floresta tal qual refugiados de um verdadeiro massacre. Problema? Nenhum… Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente.

Post scriptum: Reproduzo aqui um pertinente comentário sobre o texto acima feito no FaceBook por Vitor de Queiroz Piacentini, o qual lança luz sobre mais um grave problema associado a resgates de fauna e não abordado diretamente no nosso texto.

O texto tá muito bom, e poderia ir até mais longe: os resgates em rios divisores de fauna (= espécies ou subespécies aparentadas substituindo-se em margens opostas dos rios) simplesmente ignoram o papel biogeográfico desses rios. O bicho-preguiça da margem direita tá há 694.750 anos sem contato com a população da margem esquerda? Não faz mal, solta tudo no mesmo buraco! Danem-se os padrões filogeográficos que a evolução levou anos construindo (os números do exemplo são hipotéticos, mas sei de fonte segura que mais de 200 preguiças de uma margem foram soltas na outra!)

O que os olhos não veem...

Fontes:

Rodrigues, M. 2006. Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia. Natureza & Conservação, vol. 4, n. 1, p. 29-38. (A maior parte das informações, raciocínio e conclusões desse post foi adaptada deste excelente artigo.)

Terborgh, J. et al. 1990. Structure and organization of an Amazonian forest bird community. Ecological Monographs, vol. 60, p. 213-238.

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