Ao nos depararmos com o título desse texto, é de se esperar estranheza por parte do leitor, uma vez que este blog é destinado ao divulgador científico, e parece absurdo pensarmos que um divulgador científico confunda o que é divulgação científica com outros tipos de comunicação, não é mesmo?
Pois é, mas acontece e mais do que imaginamos!
Mas, verdade seja dita, que a realidade da divulgação científica (DC) no Brasil favorece esse tipo de confusão, justamente por não incluir a comunicação na formação dos pesquisadores científicos, forçando-o a buscar profissionais para delegar essa atividade (muitas vezes, sem entender muito bem como proceder ou agir) ou formação adicional para atuar como divulgador científico. Assim, toda a complexidade e diferenças das áreas da comunicação acabam por não serem abordadas.
A esse respeito, é importante apontar que nem na formação do comunicador todas as áreas são devidamente abordadas, já que cada uma delas possui caraterísticas, histórias, conhecimentos e linhas de pesquisa específicas, e mesmo que estejam relacionadas, e no dia a dia do trabalho o comunicador acabe por atuar em mais de uma área, é praticamente impossível saber profundamente todas elas.
Também é preciso considerar que a própria definição do conceito de Divulgação Científica vem sendo discutido por diversos pesquisadores da área ao longo dos anos.
No texto “O que é Divulgação Científica?“, aqui nesse mesmo blog, explanei um pouquinho sobre assunto e sua evolução conforme a pesquisa nesta área também ia crescendo. Já na minha dissertação de mestrado é possível ver essa discussão de forma mais completa. Nessa compilação aqui e aqui do Gene Repórter também é possível verificar algumas dessas definições e discussões.
Assim, para darmos continuidade a nossa discussão, vou partir das definições e discussões que trabalhamos aqui no Blogs Unicamp.
Divulgação Científica é:
A Divulgação Científica se trata de tornar a ciência de domínio público.
E isso significa que a ciência não deve ser apresentada apenas pelos seus resultados das pesquisas científicas, esta deve incluir recursos para o entendimento de conceitos científicos simples e complexos, discussões sobre assuntos, decisões e políticas públicas que impactam a sociedade, além de explicar como se dá as etapas, o tempo e o funcionamento da ciência, claro que considerando as particularidades de cada área de estudo, veículo de comunicação e público que irá receber a informação.
Também significa que a ciência precisa chegar a sociedade, através de ações, estratégias e práticas que saiam dos corredores da academia científica e circule em ambientes em que possa ser acessado.
Todas as referências dessa citação estão no final dessa postagem
No Blogs Unicamp recebemos diariamente textos publicados nos blogs individuais do projeto e de acordo com nossas regras de publicação, os conteúdos só passam para o portal geral, onde recebem o ISSN e inclusos em nossa divulgação se forem de divulgação científica.
Assim, quando recebo materiais que me deixam em dúvida, procuro fazer as seguintes perguntas:
- O material aborda assuntos sobre ciência e debates acadêmicos, da competência do autor?
- O material é de combate a pseudociência e a Fake News?
- A linguagem utilizada é acessível, ou seja, há um esforço em não colocar palavras e jargões complexos, e inserir explicações sobre conceitos utilizando-se de recursos que facilite o entendimento?
- O material é planejado e construído de forma a atrair a atenção do público, mas sem perder sua ética e embasamento científico?
- O material referencia seu conteúdo, inclusive nas mídias escolhidas, como imagens ou vídeos, por exemplo?
Para ser considerado de divulgação científica, a resposta precisa ser SIM para todas as perguntas acima e se, ainda houver dúvidas, é enviado para debate com a equipe completa.
Falamos mais sobre o que é divulgação científica nesses textos: Sobre a Divulgação Científica (DC), as especialidades e os especialistas, Público alvo, furar bolhas e outras coisas mais da Divulgação Científica nas redes, Fazer divulgação científica por quê?, Fazer Divulgação Científica sobre pandemia em uma sociedade do espetáculo
E quais os outros tipos de materiais que recebemos no Blogs Unicamp? Vou falar um pouquinho de cada uma delas.
Divulgação Científica não é Comunicação Institucional:
Aqui compartilho a definição do texto “O que é Comunicação Institucional?” em que debato um pouco mais o assunto:
Comunicação institucional é:
“Um conjunto de procedimentos destinados a difundir informações de interesse público sobre as filosofias, as políticas, as práticas e os objetivos das organizações, de modo a tornar compreensíveis essas propostas.”
FONSECA, Abílio da Comunicação Institucional: contributo das relações-públicas. Maia/Portugal: Instituto Superior de Maia, 1999. p.140. apud Kunsch, 2003, p.163
Em outras palavras, a comunicação institucional se trata de informar a sociedade sobre as atividades realizadas pela instituição (Empresa, Universidade, Instituto de Pesquisa, etc.), são materiais preparados e detalhados sobre as atividades, eventos, realizações, premiações, conquistas. Também é apresentado nesses materiais as filosofias, práticas, políticas e regras daquela instituição.
O objetivo desse tipo de comunicação é comunicar sobre a instituição e não sobre a ciência.
E mesmo que se encontre dados de pesquisa, realizadas pela instituição, nesses materiais as discussões e debates sobre eles ou quaisquer outros assuntos relacionados a ciência são negligenciadas, justamente por não ser o seu objetivo.
Assim, a comunicação institucional não se preocupa em utilizar-se de linguagem e recursos que a sociedade acesse ou se interesse pela ciência contida nas informações disseminadas. Uma vez que essa comunicação não possui essa função e, em muitos casos, a sociedade nem é seu público alvo.
Falamos mais sobre isso nos textos: Divulgação científica: da esfera individual para a institucional, Como minha instituição pode apoiar a divulgação de ciência?, A divulgação científica é vista como estratégica pelo CNPq?
Divulgação Científica não é Opinião:
É comum que divulgadores científicos se utilizem de uma linguagem mais coloquial, íntima e de experiência, eu mesma utilizo muito desse recurso.
Mas, produzir conteúdos de forma coloquial e menos acadêmica não exclui a necessidade de embasamento científico nos materiais de divulgação científica, assim, é esperado que ao produzir materiais o divulgador científico embase-o com as referências que estudou para chegar a esse resultado, além de incluir os outros itens necessários para ser considerado de DC.
A Divulgação Científica é sobre mostrar que a cada informação que a ciência apresenta exige toda uma trajetória de estudo, pesquisa, checagem, leitura e aprendizado. É função do divulgador científico mostrar de onde vem a informação, como ele chegou até ali e apresentar, além das referências bibliográficas, citações de materiais de colegas e checagem de materiais ou entrevistas com outros cientistas.
Produzir materiais opinativos são válidos, é uma oportunidade de apresentar ao público outras visões sobre um determinado tema, mas é importante deixar claro de que não se trata de divulgação científica, uma vez que esse tipo de material pode conter vieses e visões unilaterais, e o consumidor da informação precisa estar ciente que haverá necessidade de mais pesquisa sobre o assunto.
Divulgação Científica não é Jornalismo Científico:
Na era das redes sociais e a necessidade de se manter relevante, é comum vermos em planejamentos da divulgação científica o uso de ferramentas do jornalismo. Entretanto, é importante ressaltar que essas duas áreas são diferentes, mesmo que seu público seja o mesmo.
Jornalismo científico é a transmissão ao público, por meio de notícias, reportagens, entrevistas e artigos, o sentido e o sabor do conhecimento científico, assim como suas crescentes implicações sociais, com papel informativo e formativo.
Divagação científica: divulgando ciências cientificamente – 3
A importância do jornalismo está intimamente ligada à democracia. O exercício da profissão de jornalista garantirá o acesso às informações por qualquer pessoa, o que é de extrema necessidade, principalmente na sociedade contemporânea que vive o problema das fakes news. Então, a jornalista buscará a verdade com a apuração de fatos de interesse social e a divulgação dos dados que coletará sobre determinado assunto.
Conhecendo Carreiras de Humanas: o Jornalismo
O Jornalismo Científico tem como objetivo apresentar a sociedade as informações atuais e de utilidade pública do conhecimento científico.
Em seu dia a dia, o jornalista, busca estar atento as necessidades emergentes e futuras da sociedade e busca produzir materiais que informe, proponha soluções ou debates críticos uteis as pessoas. E para exercer a atividade, há todo um conjunto de normas e procedimentos éticos que não só os jornalistas, mas os canais de comunicação que divulgam essas informações devem respeitar.
A divulgação científica e o jornalismo podem e devem trabalhar em conjunto, mas para isso é importante que os dois lados entendam e respeitem as normas, tempo e procedimentos de cada área.
Falamos um pouco mais sobre isso nos textos Porque liberdade de expressão não é desculpa para falar o que quiser na internet?, Por um olhar mais ético e menos apressado na comunicação sobre ciência e sociedade, Como encaminhar meu conteúdo de divulgação científica à imprensa?, Manuais de Comunicação – Lista de conteúdos para consultar e baixar, Comunicação comandada e a exaustão de quem debate
Divulgação Científica não é Publicidade/Marketing:
Marketing é criar valor a produtos, serviços ou ideias e que chame a atenção de clientes gerando lucro.
O Influencer como Corpo Dócil
Assim, como no jornalismo científico, as ferramentas do marketing/publicidade, pode ser um bom aliado para o planejamento da divulgação científica, uma vez que queremos e precisamos que nosso conteúdo seja visto pelo nosso público.
Contudo, o divulgador científico, precisa estar atento a essas ferramentas e fazer um estudo crítico sobre suas vantagens e desvantagens e a responsabilidade da informação gerada a partir dessas ferramentas.
Obviamente, não estou dizendo aqui, que o divulgador científico não deva receber todos os benefícios de seu trabalho, principalmente os financeiros.
Mas, defendo a necessidade ter em mente que os objetivos e estratégias dessa área da comunicação são direcionadas a geração de lucro e, em muitos casos, a ética e a responsabilidade são negligenciadas em prol do aumento da arrecadação financeira ou de visibilidade.
Falamos um pouco mais sobre isso nos textos: O que fica de aprendizado com a estratégia de divulgação “Enquete Terra Plana”?, Então… O que é engajamento para você?, O Influencer como Corpo Dócil, O Spoiler como discurso, O ódio como engajamento, As redes sociais e a positividade excessiva de Byung Chul-Han, Habitus e o sequestro do eu-nós, Prisão imposta por si mesmo e A Sociedade do Espetáculo e a individualização do ódio .
Divulgação Científica não é Comunicação Científica:
A comunicação científica tem como objetivo informar aos seus pares sobre os avanços da ciência, comum ao mundo dos pesquisadores científicos, faz parte e é importante que os avanços sejam comunicados a outros cientistas para que a ciência continue avançando.
Durante este período pandêmico vimos a importância da comunicação rápida a comunidade científica sobre os avanços dos estudos sobre a Covid-19, não só para a produção de vacinas, mas também sobre os impactos da doença na sociedade.
Contudo, os meios de comunicação de forma rápida de pesquisas em andamento precisam ser visto com cautela e observação. Falamos mais sobre isso no texto Preprints: o que são e como fazer sua divulgação científica, A importância e os desafios de se comunicar ciência no Brasil em tempos de COVID-19
Divulgação Científica não é tradução do conhecimento:
De acordo com o dicionário Michaelis:
Transpor (palavra, texto, discurso) de uma língua para outra, conservando as equivalências de semântica e de estilo.
Apesar do termo parecer encaixar perfeitamente na divulgação científica, ainda sim, tradução do conhecimento não é a melhor forma de pensarmos o conceito de DC.
Traduzir o conhecimento, (palavra, texto, discurso, literatura, etc.) se trata do ato de passar para de uma língua para outra, sem haver qualquer tentativa de incluir recursos e facilidades para que a sociedade entenda, e se utilize desse conhecimento para tomadas de decisões, como demanda a divulgação científica.
Sobre tradução de textos indico: – A tradução de textos literários – parte 1 e parte 2 e Como divulgar informações de prevenção do Covid-19 se a língua de seu país não é a sua?
Podemos sim, encontrar materiais de divulgação científica que utilizam da tradução de conteúdos científicos, contudo para que a tradução do conhecimento científico seja, de fato, divulgação científica, é preciso que contempla todos os itens necessários que trabalhamos no primeiro item desta postagem.
E, por fim, mas não menos importante:
Reforço que a divulgação científica se trata de toda uma área de conhecimento, estudo e pesquisa, assim como todas as áreas da comunicação que trabalhei aqui. Defendo a importância de conhecer, entender e se utilizar de ferramentas das outras áreas em seu planejamento, contudo, é preciso ter muito cuidado para não descaraterizá-lo.
É inegável que as áreas da comunicação são próximas e, em muitos casos, trabalham em conjunto, mas não deixam de ter caraterísticas, objetivos, técnicas, práticas e funcionamentos próprios.
Portanto, não dá para trabalhar um tipo de comunicação e esperar o resultado da outra!
Referências usadas no texto e outras sugestões:
A Imagem da capa é do Acervo Gratuito Gerado com IA e editado por Clorofreela
ANDREETTO DE MUZIO, Paulo. A importância da divulgação científica para a proteção das áreas naturais. [S. l.], 1 jul. 2019. Disponível em: https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/educacaoambiental/2019/07/01/a-importancia-da-divulgacao-cientifica-para-a-protecao-das-areas-naturais/. Acesso em: 13 jul. 2019.
BESSA, Eduardo. O que é divulgação científica? In: ARNT, Ana de Medeiros; FRANÇA, Cecília; BESSA, Eduardo. Divulgação científica e redação para professores. [S. l.]: Tangará da Serra: Ideias, 2015.
BUENO, W. da C. 1984. 365f. Jornalismo Científico no Brasil: os compromissos de uma prática dependente. Tese de Doutorado. ECA/USP, São Paulo, 1984.
CALDAS, Graça; ZANVETTOR, Kátia. O estado da arte da pesquisa em divulgação científica no Brasil: apontamentos iniciais. Ação Midiática–Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura., v. 1, n. 7, 2014.
CAMARGO, Vera Regina Toledo. Dialogando com a ciência: ações, atuações e perspectivas na divulgação científica e cultural. Comunicação & Sociedade, v. 37, n. 3, p. 43-71, 2015
DIAS, Camila Delmondes et al. Divulgando a arqueologia: comunicando o conhecimento para a sociedade. Ciência e Cultura, v. 65, n. 2, p. 48-52, 2013.
MORA, A. M. S. A divulgação da ciência como literatura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
ROCHA, Mariana; MASSARANI, Luisa; PEDERSOLI, Constanza. La divulgación de la ciencia en América Latina: términos, definiciones y campo académico. 2017.
SILVA, Ricardo., GARCIA, André; AMARAL, Sérgio. Desenvolvimento de um modelo potencializador para a utilização de blogs como meio de educação não formal e divulgação científica. XIII Congresso Internacional de Tecnologia na Educação, São Paulo, 2015.
Taxonomia da comunicação sobre ciências – Gene Reporter do Roberto Takata
Compilação sobre os estudos de Divulgação Científica – Gene Reporter do Roberto Takata
Thiago Oliveira da Motta Sampaio
Excelente! Eu já pensava nisso antes, mas ficou marcado na minha cabeça uma certa presidente institucional desfazendo uma comissão de divulgação excluindo todo mundo que se negou a tomar conta das redes sociais... Obrigado por esse texto que, além de responder a pergunta, ainda traz um baita compilado de outros assuntos relacionados =)
Tassio
Excelente! Comecei meu tour pelos artigos.
Só tem uma questão que me deixou confuso, no primeiro item: "O material aborda assuntos sobre ciência e debates acadêmicos, da competência do autor?"
Eu acho que a divulgação científica é uma construção que possui muitas formas e possibilidades. Um jornalista pode ser divulgador de conteúdo de área que não são da sua competência, assim como muitos divulgadores autônomos em projetos independentes. Um programa televisivo pode ter uma equipe imensa com roteiristas, atores, etc... e nenhum deles possuir competência específica. Mas isso não significa que eles não precisem de pesquisa, ajuda ou consultoria. E essa consultoria pode ser sim, com cientistas e pessoas com ampla competência na área.
Eu posso ter entendido errado - ainda estou mergulhando nos artigos. Mas tenho um receio de que a DC se torne um tanto quanto excludente. No mais, grande texto!
Erica Mariosa Carneiro
Obrigada pelo seu comentário Tassio. A resposta é sim, você está certo!
A ideia do "da competência do autor" se refere a aquele divulgador científico "tudólogo". Prezamos por materiais que preferem trazer para a discussão colegas especialistas, entrevistas e contribuições de outras áreas do que aquele que decide fazer tudo sozinho.
A divulgação científica é coletiva e não há motivos para não prestigiar outros profissionais em seu canal. Talvez no texto eu precise fazer esse adendo. Obrigada por apontar.
Hermógenes
Ótimo texto! Além de informativo ele ainda joga um pouco de luz na nossa necessidade de institucionalizar ações de DC. Há gestores que consideram suas agências de notícias como atividades de divulgação, quando na verdade ela fazem jornalismo científico. A DC “pede” infraestrutura, preparo e objetivos claros voltados para a ideia de tornar a ciência, seus caminhos, métodos, limitações e resultados de amplo acesso para a população.
Obrigado Érica. Muitos materiais e sugestões de leitura!
Paulo Andreetto de Muzio
Brigadu pela referência, Ericats 🙂