Avaliação crítica do problema da edição do genoma humano: notas preliminares e uma análise de caso (I)
Para poder avaliar a questão da edição do genoma humano desde uma perspectiva filosófica devemos em primeiro lugar evitar o dogmatismo, essa doença. As duas formas mais correntes de dogmatismo neste contexto são o “bioconservatismo” e o “tecnoprogressismo”: aquele consiste em contrapor natureza e tecnologia endeusando a natureza e argumentando que todo tipo de interferência na ordem dada é teimosia, este, em defender o contrário dizendo que o“verdadeiro progresso” dependeu, depende e dependerá sempre justa e crucialmente da experimentação, do risco e da inclusão ousada de “novidades” no “mundo dado”.
Cuidando, pois, para não nos precipitar no fanatismo por nenhuma dessas vias, ensaiemos algumas considerações preliminares.
A primeira reação talvez seja querer responder à pergunta pela pertinência ou não da edição genômica com base em um cálculo de custo e benefício. Mas ainda que a tarefa de listar os custos e benefícios da manipulação fosse possível (coisa que provavelmente não é, pois a ordem profunda do cosmos parece estar fora do alcance da nossa limitada inteligência), a enumeração não poderia prescindir de um exercício avaliativo de outra natureza.
Dada as listas, deveríamos, para poder compará-las, ordenar os itens que as compõem, hierarquizá-los, estipular o seu valor qualitativo. Isso não significa, evidentemente, relegar o trabalho de campo de medir os prós e contras. Esse trabalho descritivo, de constatação e documentação é importantíssimo, e deve ser realizado permanentemente pela comunidade científica e posto a serviço da comunidade. A ressalva significa, apenas, que a avaliação qualitativa é a parte mais árdua e decisiva da tarefa filosófica que temos em mãos.
Princípios prima facie da Bioética
No campo da Bioética, há uma série de princípios mais ou menos consensualizados que servem como referencial para a discussão. Esses princípios, que não são definitivos (são chamados de prima facie justamente porque possuem validade à primeira vista, mas são vulneráveis à reformulação), são quatro: o princípio da beneficência, o de não maleficência, o da autonomia e o da justiça.
Além da sua validade condicionada, eles não estão ordenados hierarquicamente, e nenhum deles tem preeminência sobre os outros, o que dificulta mais a tarefa.
Caso Abrahim Hassan
Há quem sustente que “os usos terapêuticos das técnicas de edição gênica […] poderiam, se se mostrarem realmente confiáveis, ser permitidos, pois são justificados pelos princípios prima facie da bioética” [1]. Consideremos, para ver como isto funciona, a “fertilização tripla”. A maior parte da carga genética de Abrahim Hassan provém dos seus pais; uma outra, de uma doadora desconhecida cujo DNA mitocondrial é sadio. Caso não tivesse ocorrido a nuclear transfer, o filho teria herdado a doença de Leigh e morrido rapidamente como seus irmãos. Mas o bebê sobreviveu e nasceu sem a doença, e o casal pôde finalmente formar uma família.
Que nesse caso se cumpre o princípio da beneficência é bastante claro, pelo menos sob o ponto de vista do recém-nascido. O princípio da não-maleficência também parece ser respeitado (a não ser que se considere, como Sileno, que o nascimento é um mal).
Já com relação à autonomia é mais difícil pronunciar-se. Se bem é evidente que a autonomia dos progenitores é respeitada, não parece ser tão claro no caso do indivíduo gerado; pelo contrário, alguém parece estar tomando uma decisão importante por ele.
No que toca à justiça, há questionamentos semelhantes. Não deveria o uso privado dessa “eugenia negativa” (pois se trata de “melhorar a vida” não por meio de inclusão de novas características, mas pelo desterro das “falhas” existentes) ser proibido, ou pelo menos atentamente vigiado, até chegarmos a um consenso maior sobre o assunto?
[1] Cfr. Dall´Agnol em: COLUNA ANPOF