Um matemático apaixonado por Borges
Talvez a maior expressão da minha brasilidade, agora que moro em terra norte-americana, seja o orgulho que sinto dos pesquisadores brasileiros daqui.
Fico encantada com suas trajetórias e diversificadas áreas de atuação. Histórias incríveis são reveladas quando converso sobre os caminhos pessoais e acadêmicos percorridos antes de aqui desembarcarem.
Foi o que aconteceu em um jantar recente na casa de amigos, onde tive a chance de aprender sobre o que leva um matemático a se enveredar pelos estudos literários.
Jacques Fux, bolsista de pós-doutoramento da FAPESP, chegou em Cambridge há quinze dias, assumindo a posição de visiting scholar em Harvard. Mineiro, formou-se em matemática e fez mestrado em ciências da computação, na UFMG.
Ávido leitor, apaixonado por Jorge Luis Borges, no seu doutorado optou por migrar para a literatura e acabou recebendo o prêmio CAPES de melhor tese de doutorado defendida em 2010 na área de Letras/Linguística. Ele estudou as relações entre matemática e literatura nas obras de Georges Perec e Jorge Luis Borges (aqui).
Agora é com ele.
1) Como um matemático foi parar na literatura?
Eu sempre gostei de ler e era completamente fascinado pela literatura de Jorge Luis Borges. Lendo seus relatos fantásticos, descobri que poderíamos encontrar diversos problemas e, entre eles, os de matemática e lógica. Assim, apaixonado por Borges, resolvi fazer uma matéria eletiva sobre esse autor argentino e o Judaísmo no doutorado em Letras da UFMG. Gostei muito e resolvi levar o projeto ‘maluco’ adiante. Logo depois, conheci minha orientadora e as obras do escritor francês Georges Perec. Descobri que existia um grupo na França que trabalhava com literatura e matemática e ‘voilá’, descobri o que gostaria de fazer.
2) Perec é conhecido por ter escrito um livro de quase 400 páginas sem utilizar a letra “e”. Por que essa opção pela ausência da vogal “e”? A matemática está presente nessa obra?
Essa restrição ou regra é conhecida como ‘Lipograma’. A letra “e” em francês é a letra mais frequente e a que mais se usa nas construções gramaticais. Retirá-la é, de fato, um grande problema e aí nasce a genialidade e audácia de Perec. Um dos motivos de Perec retirar essa letra é prestar uma homenagem a seus pais, mortos durante a Segunda Guerra Mundial. Sua mãe (mère) morreu em Auschwitz e seu pai (père) no fronte de batalha. Segundo o próprio autor, os nazistas subtraíram dele as pessoas mais importantes de sua vida. Ele, ainda criança e órfã, foi capaz de seguir adiante mesmo sentindo a grande falta que seus faziam. Assim decidiu escrever um livro privando-se da letra mais importante do alfabeto, das letras que formam seu próprio nome e construir arduamente um projeto que fizesse referência a esses ‘desaparecimentos’ – “La disparition”.
3) Você poderia citar um exemplo do uso da matemática por Perec e Borges em suas obras?
Perec usa a matemática como estrutura na sua escrita, como por exemplo o Lipograma, o Palíndromo e os quadrados mágicos. Já Borges utiliza a matemática como um artifício conceitual. Trabalha com o problema do infinito, da contagem (enumeração) e dos paradoxos.
4) Quais foram as conclusões da sua tese?
O que eu tentei mostrar na minha tese é que quanto maior o conhecimento matemático de um leitor diante dos textos do Perec e do Borges, maior sua capacidade de entender e desvendar os diversos segredos, mistérios e belezas de seus escritos. Porém, mesmo sem conhecer matemática, há diversas camadas e possibilidades de leituras.
5) O que você pretende fazer com os recursos do prêmio?
Estou migrando definitivamente para a Literatura. A escrita, a poesia e a beleza das letras me conquistaram. Meu projeto é trabalhar mais profundamente com os escritos testemunhais e com os problemas da memória e da narração de momentos traumáticos.
6) Agora você está partindo para o seu segundo pós-doutoramento.
No primeira parte do meu pós-doutorado estudei a relação entre Perec e a Shoah. Como podemos entender seus escritos e seus relatos ‘faltantes’ e inventados já que viveu uma grande perda na vida. Agora pretendo estudar as novas representações possíveis e artísticas da Shoah (Holocausto) em uma época em que os sobreviventes estão desaparecendo por completo. Como as novas gerações “receberão” esse acontecimento terrível que foi a morte industrializada de milhões de pessoas durante o período nazi.
7) De onde vem o seu interesse por literatura infantil?
Eu gosto muito de escrever e minha escrita é muito tocada pelo Borges. Segundo ele, a literatura é a própria capacidade de falar e escrever sobre ela mesma. Logo escrevi um livro (ainda não publicado) para crianças de todas as idades sobre os “Porquês” da vida dando respostas literárias a essas questões. Os personagens do livro são escritores, poetas e personagens literários bem conhecidos, como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Riobaldo, O Gato de Cheschire, As baratas de Kafka e Lispector, o Tigre de Borges, entre outros.
8) Qual trecho de Borges que mais te toca? E de Perec?
Do Borges: “que a história tivesse copiado a história já era suficientemente assombroso; que a história copiasse a literatura era inconcebível”.
Do Perec: “Uma vez mais, as armadilhas da escrita se instalaram. Uma vez mais, fui como uma criança que brinca de esconde-esconde e não sabe o que mais teme ou deseja: permanecer escondida, ser descoberta.” Essas duas frases me deram inúmeros argumentos literários e, a partir delas, escrevi meu primeiro romance recentemente chamado “Antiterapias”.
Discussão - 1 comentário
Muito inspiradora a entrevista...São duas áreas ( a ciência como um todo) e a literatura ( e também a arte como um todo) que tem tanto a conversar mas que poucas vezes (pelo menos que vem a público) são postas na mesma mesa...