O que faz um artigo científico ser um bom artigo científico?

Primeiramente, é necessário se definir o que é um artigo científico: no contexto das ciências naturais (ou seja, aquelas que descrevem a natureza), um texto que relata uma proposta, como tal proposta foi verificada e se esta proposta foi comprovada (ou não). É uma definição bastante minimalista, mas que pode ser assim definida para os propósitos desta postagem.

Assim, um bom artigo científico é aquele que, presumivelmente: a) apresenta uma proposta ousada, inovadora, inédita e de grande importância; b) faz uso de metodologias experimentais muito bem aceitas e que comprovadamente podem fornecer evidências contundentes se tal proposta é válida ou não, e; c) se a proposta em questão foi verificada.

Quando o artigo “Self-Sustained Replication of an RNA Enzyme” foi publicado na revista Science há pouco mais de 1 ano (27 de fevereiro de 2009), causou um enorme alarde na comunidade científica do mundo todo e foi amplamente divulgado na World Wide Web (internet).

Qual a proposta do artigo? Segundo os autores
A long-standing research goal has been to devise a nonbiological system that undergoes replication in a self-sustained manner, brought about by enzymatic machinery that is part of the system being replicated. One way to realize this goal, inspired by the notion of primitive RNA-based life, would be for an RNA enzyme to catalyze the replication of RNA molecules, including the RNA enzyme itself.
This has now been achieved in a cross-catalytic system involving two RNA enzymes that catalyze each other’s synthesis from a total of four component substrates.

(Traduzindo: Um objetivo científico há muito tempo buscado seria de se constituir um sistema não-biológico que realiza replicação de maneira auto-sustentada, formado por um maquinário enzimático que é parte do sistema sendo replicado. Uma maneira de atingir este objetivo, tendo como inspiração o conceito de vida primitiva baseada em RNA [ácido ribonucléico], seria uma enzima do tipo RNA que catalisasse a replicação de moléculas de RNA, incluindo a replicação da própria enzima.
Isso foi realizado em um sistema catalítico cruzado com duas enzimas de RNA que catalisam a síntese uma da outra a partir de quatro substratos diferentes.)

Os autores utilizaram uma enzima RNA chamada de R3C e, após formar um complexo enzimático cruzado, estabeleceram as condições para que as enzimas se auto-replicassem sem qualquer interferência externa. Após o consumo inicial das unidades que constituem o RNA (citidina-guanosina, adenosina-uridina), as enzimas formadas foram transferidas para um novo meio reacional contendo quantidades adicionais das suas unidades formadoras. Tal procedimento foi repetido várias vezes, de maneira seqüencial. Assim, as enzimas RNA continuaram a crescer e adquirir sequências de pares C-G, U-A cada vez maiores. Porém, o mais interessante é que as enzimas formadas não se formam na mesma proporção. Algumas sequências são formadas mais rapidamente e crescem mais, dando origem a fragmentos mais longos, e, portanto, são enzimas de RNA mais complexas geradas a partir da ação inicial da R3C.

Ou seja, os autores conseguiram provar sua proposta (hipótese) de formação de um sistema auto-catalítico auto-sustentado. O mais interessante é que o sistema como um todo evolui, e dá origem a poucos fragmentos maiores e mais complexos de RNA, que são mais estáveis. Ou seja, o sistema sofre seleção em função da estabilidade dos produtos formados.


Ver o artigo original para a explicação destes gráficos. O gráfico B indica a população relativa de diferentes enzimas RNA formadas.

As conclusões finais dos autores são que
Populations of cross-replicating RNA enzymes can serve as a simplified experimental model of a genetic system with, at present, two genetic loci and 12 alleles per locus. (…) In order to support much greater complexity, it will be necessary to constrain the set of substrates, for example, by using the population of newly formed enzymes to generate a daughter population of substrates. An important challenge for an artificial RNA-based genetic system is to support a broad range of encoded functions, well beyond replication itself.

(Populações de enzimas RNA de replicação cruzada podem servir como modelos experimentais simplificados de um sistema genético com, até agora, 2 loci genéticos e 12 alelos por locus [biólogos e/ou geneticistas: ajuda nestas definições são bem-vindas!]. (…) De forma a suportar uma complexidade muito maior, será necessário restringir o conjunto de substratos, utilizando, por exemplo, a população de enzimas recém-formadas para gerar uma população de substratos “prole”. Um desafio importante para um sistema genético artificial baseado em RNA é apresentar uma ampla variedade de funções codificadas, muito além da simples replicação.)

Em pouco mais de 1 ano, este artigo foi citado por 40 outros artigos científicos (resultados de busca no Institute for Scientific Information – Web of Science), e deu origem a quase 2.000 “entradas” no Google (utilizando a expressão “Self-Sustained Replication of an RNA Enzyme”, com as aspas. Desta maneira a busca no Google é feita com a expressão completa, na ordem especificada). Poderia-se pensar que tais menções pudessem ser a respeito do total absurdo, ou conclusões errôneas, publicado pelos autores. Muito pelo contrário. O artigo de Lincoln e Joyce serviu não somente de base experimental para outros trabalhos, mas também de suporte para a inferência sobre a real pertinência de formação de sistemas biológicos primitivos formados a partir de RNA (o assim chamado “RNA-world”).

Grande sacada dos pesquisadores do Scripps Research Institute (California, EUA). Um bom artigo não passa despercebido.

Muito pelo contrário. Um artigo, um único artigo científico, extremamente ousado e original, com idéias realmente revolucionárias, pode levar ao inesperado: o Prêmio Nobel. Keinichi Fukui e Roald Hoffmann dividiram o Prêmio Nobel de Química de 1981 pela publicação de um único artigo cada um. O de Fukui, originalmente publicado em 1952, foi extremamente criticado à época. O de Hofmann foi publicado em conjunto com Robert B. Woodward (em 3 versões, é verdade, mas que na essência são o mesmo trabalho): “The Conservation of Orbital Symmetry”, originalmente na revista Accounts of Chemical Research em 1968. A versão expandida foi publicada no ano seguinte, com o mesmo título, na revista Angewandte Chemie International Edition. O mesmo artigo foi publicado de maneira bastante sumarizada, com o título “Orbital Symmetry Control of Chemical Reactions”, no ano seguinte na revista Science. Esta teoria, denominada “Teoria dos Orbitais Moleculares de Fronteira” (Frontier Molecular Orbitals Theory), literalmente revolucionou o entendimento da química orgânica, e hoje é ensinada em livros-texto adotados em salas de aula no mundo todo. Woodward também ganhou o Prêmio Nobel de Química, por suas inúmeras contribuições ao desenvolvimento da síntese de substâncias orgânicas.

A Teoria dos Orbitais Moleculares de Fronteira é razoavelmente complicada para ser explicada de maneira simples, mas pode ilustrada de maneira extremamente simplista. Os elétrons em volta dos átomos ocupam regiões chamadas de orbitais. A formação de ligações químicas entre átomos resulta da combinação destes orbitais atômicos, formando orbitais moleculares. A maneira como os orbitais atômicos se combinam para formar orbitais moleculares foi inicialmente explicada pela teoria da mecânica quântica (que consegue explicar a formação de ligações em moléculas extremamente simples, como o gás hidrogênio, H2). Hoffmann e Fukui elaboraram um modelo, de certa forma pictórico, que explica como ocorrem reações químicas orgânicas entre moléculas muito mais complexas do que o H2.


Reação concertada entre um dieno e um dienófilo, que obedece às regras de Woodwad-Hoffmann, de acordo com a Teoria dos Orbitais Moleculares de Fronteira.

Bingo!

Grandes sacadas científicas -> bons artigos científicos -> eventualmente o Prêmio Nobel.

ResearchBlogging.orgFukui, K., Yonezawa, T., & Shingu, H. (1952). A Molecular Orbital Theory of Reactivity in Aromatic Hydrocarbons The Journal of Chemical Physics, 20 (4) DOI: 10.1063/1.1700523
ResearchBlogging.orgLincoln, T., & Joyce, G. (2009). Self-Sustained Replication of an RNA Enzyme Science, 323 (5918), 1229-1232 DOI: 10.1126/science.1167856
ResearchBlogging.orgHoffmann, R., & Woodward, R. (1968). Conservation of orbital symmetry Accounts of Chemical Research, 1 (1), 17-22 DOI: 10.1021/ar50001a003
ResearchBlogging.orgWoodward, R., & Hoffmann, R. (1969). The Conservation of Orbital Symmetry Angewandte Chemie International Edition in English, 8 (11), 781-853 DOI: 10.1002/anie.196907811
ResearchBlogging.orgHoffmann, R., & Woodward, R. (1970). Orbital Symmetry Control of Chemical Reactions Science, 167 (3919), 825-831 DOI: 10.1126/science.167.3919.825

Pinte o 7, com RMN-MOUSE

Hoje em dia cada vez mais se realizam exames e diagnósticos por imagem gerada por Ressonância Magnética Nuclear (RMN), ou simplesmente “exames de ressonância”. Frequentemente médicos solicitam exames deste tipo, que não são invasivos (ou seja, não é necessária a inserção de uma sonda no corpo do paciente), não é necessário se tomar uma substância que forneça contraste (como em exames de raios-X, em que pode-se tomar substâncias contendo Iodo ou Bário radioativos para aumentar o contraste da imagem gerada), e o exame não é nocivo para a saúde nem do médico nem do paciente, pois não ficam expostos à radiação (como no caso de exames de raios-x).

Mas, então, qual é o princípio da análise por RMN? Como ela funciona?

Como o próprio nome diz, a técnica se fundamenta no uso das propriedades magnéticas dos núcleos dos átomos. Mas não de qualquer átomo. Não são todos os átomos que podem ser detectados por RMN, apenas alguns. Todos aqueles que não apresentam a massa atômica de número par e número atômico também de número par. Por exemplo, o isótopo 12 do carbono (massa atômica = 12; número atômico = 6) e o isótopo 16 do oxigênio (número de massa = 16; número atômico = 8) não podem ser detectados por RMN. Porquê? Porque os seus núcleos não se comportam como ímãs sub-atômicos.

Ímãs sub-atômicos? Exatamente. Ímãs sub-atômicos, pois são os NÚCLEOS de outros átomos, que não têm número de massa par e número atômico também par, que se comportam como ímãs. Por exemplo, o hidrogênio (massa atômica = 1; número atômico = 1), o isótopo de massa 13 do carbono (massa atômica = 13; número atômico = 6), o deutério (massa atômica = 2; número atômico = 1), o nitrogênio 14 (massa atômica = 14; número atômico = 7), e muitos outros. Comportando-se como ímãs, estes núcleos apresentam um determinado campo magnético. Ora, leitor, você já experimentou colocar um ímã perto de outro? Os dois ímãs “se sentem” mutuamente, em uma relação recíproca.


Não é uma nave espacial, e sim um aparelho de RMN de 900 MHz

Esta propriedade de determinados núcleos se comportarem como ímãs sub-atômicos permite que sejam detectados por aparelhos de RMN, que apresentam um ímã para detectar núcleos. A explicação física de como estes aparelhos funcionam é relativamente complicada, mas pode ser resumida da seguinte maneira: núcleos de átomos que apresentam caráter magnético têm uma determinada freqüência de precessão em torno do próprio eixo. Ou seja, estes núcleos giram em torno de si próprios, com uma determinada freqüência de precessão (número de voltas por segundo, ou freqüência, em Hertz). Quando se ajusta a freqüência do campo magnético do aparelho de RMN para detectar um determinado tipo de núcleo (hidrogênio, por exemplo), os dois campos magnéticos, o do núcleo e o do aparelho, entram em ressonância. Daí surgiu o nome da técnica de RMN. É muito parecida com o funcionamento de um rádio: você tem uma emissora de rádio (que seria o núcleo do átomo que se deseja detectar) e um aparelho de recepção de ondas de rádio (ou, um rádio). Para ouvir aquela emissora de rádio é necessário se ajustar a frequência de recepção das ondas de rádio no aparelho de rádio. Desta forma, o aparelho de rádio “entra em ressonância” com a emissora de rádio.

Bom, e daí? E daí que nós humanos temos cerca de 70% de água no nosso corpo. E água tem hidrogênio (H2O). Logo, aparelhos de RMN detectam água. O diagnóstico por RMN é feito observando-se o padrão de distribuição de água nos tecidos do corpo. Se o padrão de distribuição estiver “anormal”, alguma coisa está errada.

A descoberta do fenômeno de RMN literalmente revolucionou a ciência. Esta descoberta foi feita independentemente por Bloch e Purcell, que dividiram o prêmio Nobel de Física de 1952. Richard Ernst e Kurt Wütrich também ganharam o prêmio Nobel  em 1991 e 2002 por terem se dedicado ao desenvolvimento e utilização da técnica de RMN na geração de imagens, em análises químicas, físicas, biológicas, geoquímicas, em química de materiais e em outros ramos do conhecimento. Atualmente qualquer universidade do mundo que realiza pesquisa em química e/ou em física possui pelo menos um aparelho de RMN. São aparelhos sofisticados, grandes e caros, em contínuo aprimoramento. Praticamente a cada 2 anos são lançados novos modelos, extremamente versáteis, de aparelhos de RMN. Os campos magnéticos utilizados nos aparelhos de RMN são gerados por magnetos supercondutores que devem ser resfriados por hélio líquido (a cerca de -269 graus Celsius), cujo reservatório deve ser resfriado com nitrogênio líquido (cerca de -200 graus Celsius).

Até recentemente a utilização de aparelhos de RMN estava limitada à localização destes em institutos acadêmicos, ou institutos de pesquisa especializados, em centrais de análises ou ainda em instituições médicas. Porém, já nos anos 80 pesquisadores começaram a desenvolver aparelhos de RMN portáteis, os quais foram colocados em uso em 1996, e atualmente estão sendo cada vez mais utilizados para os mais diversos fins: análise de asfalto de ruas e estradas, de estruturas de pontes e análises de solo. Denominados aparelhos de RMN de varredura (Stray-Field NMR), são aparelhos de RMN em miniatura. São colocados muito próximos à superfície do material que se pretende analisar, de maneira que a geração de um campo magnético pelo aparelho permite que os núcleos dos átomos de hidrogênio no material sob análise sejam detectados. Em geral, analisa-se o padrão de distribuição de água. Mas também de gordura, ou de proteínas.

O aparelho de RMN portátil foi batizado, muito apropriadamente, de RMN-MOUSE (MObile Universal Surface Explorer). Tem o tamanho de um aparelho de telefone celular grande, ou um palm, e é empregado movendo-se um campo magnético que não varia. O aparelho é colocado próximo à superfície que se deseja analisar. O sinal registrado é transmitido para um computador através de um cabo, obtendo-se imagens tanto da superfície como de camadas próximas à superfície, para que se possa conhecer a constituição do material sob análise. A resolução da imagem gerada pode chegar a 2,3 um. Uma das aplicações mais interessantes do RMN-MOUSE é na análise de obras de arte e de construções históricas, de grande valor cultural.


aparelho de RMN-mouse

Por exemplo, a pintura “Adoração de Magi” (Pietro Perugino, pintada entre 1496-1498) foi analisada por RMN-MOUSE, e indicou uma diferença de espessura no tecido da tela das bordas quando comparada com a espessura do centro da pintura. No caso da pintura “Pala Albergotti” (Giorgio Vasari), detectou-se uma diferença da espessura de tinta no centro e nas extremidades da pintura. Esta diferença foi atribuída à presença de oxalatos (sais de ácido oxálico, HO2C-CO2H), originários da degradação da proteína utilizada no acabamento da pintura, detectadas por RMN-MOUSE, microsopia óptica e espectroscopia no infravermelho.


Adoração de Magi, de Pietro Parugino


Pala Albergotti, de Giorgio Vasari

A técnica de RMN-MOUSE também é utilizada na análise de
documentos antigos, uma vez que papel é feito com celulose e lignina, que apresentam tanto “água aprisionada” como “água livre” na sua estrutura. No caso de papel e madeira danificados, a quantidade de água e a crsitalinidade da celulose sofrem modificações, e podem ser detectadas. Assim, é possível se saber qual a extensão do comprometimento de documentos antigos de acordo com o teor de água que estes apresentam. Também se observou efeito corrosivo de tinta utilizada na escrita, feita de ferro e taninos (iron gall ink), em documentos do Codex Major da Collectio Altaemsiana.


tinta de ferro e taninos (iron gall ink)

A técnica de RMN-MOUSE já foi utilizada na análise da madeira de violinos Stradivarius. Em alguns casos, foi possível saber quantas camadas de verniz foram aplicadas na madeira da confecção dos instrumentos. Também foi possível se verificar que os violinos mais antigos foram fabricados com madeiras mais densas, e que a densidade da madeira influencia diretamente na qualidade do som produzido pelo instrumento. Tal técnica também pode ser empregada na distinção de violinos verdadeiramente antigos daqueles que são falsificados.

A RMN-MOUSE é empregada para se analisar o teor de água em paredes de prédios e monumentos históricos, de maneira a que os restauradores possam utilizar o material mais adequado na restauração de tais construções. A análise dos afrescos pintados por Pelledrino degli Aretusi na Capela Serra da Igreja da Nossa Senhora do Sagrado Coração, em Roma, indicou que estes estão sujeitos à umidade que se inflitra a partir do solo. A análise detalhada da distribuição de água nos afrescos indicou em que locais este se encontra mais afetado e deve ser restaurado. O teor de água no mosaico Netuno e Amphitrite foi analisado por RMN-MOUSE, e apresentou grandes diferenças de umidade dependendo da área do mosaico.


Netuno e Amphitrite, Herculaneum

Além disso, a análise de monumentos históricos e obras de arte por RMN-MOUSE são extremamente úteis para se indicar quais materiais são mais indicados para sua restauração, dependendo do teor de água, da porosidade do material a ser restaurado e como o emprego de diferentes substâncias na restauração pode afetar a obra a ser restaurada.

Aparelhos de RMN móveis são extremamente versáteis e úteis para se analisar pinturas, madeira, papel, bem como materiais de construção. Atualmente a técnica está sendo aprimorada, para que sua sensibilidade seja aumentada e possa ser facilmente utilizada. Outros núcleos diferentes de hidrogênio também poderão ser analisados em um futuro próximo, como Alumínio-29, presente em vidros e cerâmicas. O futuro é extremamente promissor para a utilização de RMN, nas mais variadas aplicações.

ResearchBlogging.orgBlümich, B., Casanova, F., Perlo, J., Presciutti, F., Anselmi, C., & Doherty, B. (2010). Noninvasive Testing of Art and Cultural Heritage by Mobile NMR, Accounts of Chemical Research DOI: 10.1021/ar900277h

Medite

Se Yoga ou Tai Chi Chuan não funcionassem, fossem pura enganação, coisa de charlatão mesmo, teriam sobrevivido culturalmente durante mais de 5.000 anos? Duvido. Porém, outras formas de “experiência extra-sensorial” surgiram e desapareceram. Por exemplo, fotografia Kirlian, a qual, acreditava-se, fotografava a “aura” de pessoas. Outro pilatra era Uri Geller, defenestrado como um grande picareta. Exemplos nesse âmbito abundam: pêndulos, cristais, cartomantes, bolas de cristal, duendes, gnomos, e tantas outras diversões mais que fica difícil se lembrar de todas.

Porém, Yoga e Tai Chi Chuan têm, cada vez mais, chamado a atenção de médicos, fisioterapeutas, e agora de neurofisiologistas, uma vez que tanto uma como outra são, no fundo, práticas de meditação. E, considerando-se a enorme popularidade que a meditação vem recebendo por conta dos benefícios que traz àqueles que a praticam, muita pesquisa têm sido desenvolvida para se entender como funcionam os efeitos da meditação no cérebro.

Estudos coordenados por Jim Lagopoulos, e realizados por sua equipe da Sidney University (Australia) e pesquisadores da Norwegian University of Science and Technology, tiveram justamente este objetivo: observar mudanças nos padrões elétricos durante exercícios de meditação.

Mesmo dormindo, ou descansando, nosso cérebro sempre apresenta níveis de atividade elétrica. Por isso, a atividade cerebral pode ser monitorada por eletroencefalografia, colocando-se eletrodos em posições bem determinadas do crânio, utilizando-se uma espécie de capuz para fixar os eletrodos. Os voluntários deste estudo realizaram duas diferentes atividades: descansar durante 20 minutos e meditar durante 20 minutos, de maneira aleatória entre os participantes. Os pesquisadores analisaram os padrões de ondas cerebrais elétricas do tipo alfa, beta, delta e teta.

Durante os exercícios de meditação, os pesquisadores observaram uma maior intensidade de ondas teta nas regiões frontal e central do cérebro. Segundo os pesquisadores, tais ondas se originam a partir de uma atenção relaxada que monitora nossas “experiências interiores”. Uma diferença significativa entre simplesmente relaxar e meditar. Estudos anteriores indicaram que ondas teta indicam uma profunda capacidade de relaxamento e ocorrem com mais freqüência em praticantes experientes de meditação. A origem de tais ondas é na região frontal do cérebro, associada com o monitoramento de determinados processos mentais. Quando se mede a calma mental, estas regiões ativam as partes mais baixas do cérebro, induzindo um relaxamento físico em resposta aos exercícios de meditação.
Já ondas alfa são mais pronunciadas na região posterior do cérebro durante a meditação do que simplesmente durante um relaxamento. Indicam um descanso alerta. Tal tipo de comportamento cerebral é um sinal universal de relaxamento durante a meditação e outros tipos de relaxamento.  A quantidade de ondas alfa aumenta quando o cérebro relaxa após atividades direcionadas. É um sinal de relaxamento profundo – mas não significa que a mente está vazia.

Análises de imagens neuronais realizadas pela equipe de Malia F. Mason do Dartmouth College indicam que o estágio de descanso normal do cérebro é uma corrente silenciosa de pensamentos, imagens e memórias, que não são provocadas por estímulos sensoriais ou racionais, mas que emergem espontaneamente do interior da mente. A tomada de consciência interior  é algo que se percebe cada vez mais quando se pratica meditação. É uma atividade cerebral padrão, mas que é totalmente subestimada. Provavelmente representa um tipo de processamento mental que permite a conexão entre vários “resíduos” de experiências e emoções, colocando-os em perspectiva, deixando de lado a atividade mental ordinária.

Já durante o sono, as ondas delta são as mais freqüentes. Os pesquisadores observaram baixa intensidade de ondas delta durante relaxamento e meditação, fato que confirmou que a meditação não-direcionada é totalmente diferente do sono. As ondas beta surgem quando o cérebro está ativo, trabalhando, com tarefas objetivas. Tais ondas praticamente desaparecem durante as práticas de meditação e relaxamento. Ou seja, quando se relaxa e medita, pode-se, realmente, deixar os problemas de lado.

Os estudos indicaram que a melhor forma de meditação é aquela que leva ao “esvaziamento da mente”, sem a realização de exercícios direcionados, como tentando visualizar imagens, ou mentalizando sons (como o “AUM”). As técnicas de esvaziamento da mente foram principalmente desenvolvidas pelos zen-budistas, que buscam atingir o estado de consciência máxima através do “pensar em nada”. Utilizando-se desta técnica de meditação, os praticantes não buscam um objetivo em particular ou um estado da mente. Simplesmente esperam, pacientemente, os pensamentos fluírem e irem embora.

Tai práticas são conhecidas há milênios. Atualmente diversos pesquisadores do mundo todo estão comprovando que meditar faz muito bem à saúde. Qual é o segredo da boa meditação? Infelizmente, encontrar um bom professor. Alguém que tenha tido uma boa formação nas práticas de yoga ou tai chi chuan. Os exercícios de yoga e tai chi chuan ajudam muito a relaxar o corpo e preparar a mente para as práticas de meditação. Leva tempo para se conseguir um estado de relaxamento alerta, sem dormir. Meses. Às vezes anos. Como dizia meu professor de yoga, Frederico: “Perseverança, persistência, mas nunca desistência”.

ResearchBlogging.orgLagopoulos, J., Xu, J., Rasmussen, I., Vik, A., Malhi, G., Eliassen, C., Arntsen, I., Sæther, J., Hollup, S., Holen, A., Davanger, S., & Ellingsen, �. (2009). Increased Theta and Alpha EEG Activity During Nondirective Meditation The Journal of Alternative and Complementary Medicine, 15 (11), 1187-1192 DOI: 10.1089/acm.2009.0113

Bismuto – mais amigo, impossível

O Bismuto é um dos elementos mais nobres da Tabela Periódica. Mas, nobre porque? Porque é muito pouco tóxico. Apesar de ter sido formalmente descoberto em 1753 na França, já era utilizado pelos Incas, juntamente com estanho, na confecção de facas. É encontrado na forma dos minerais bismutinita (sulfeto de bismuto) e bismita (óxido de bismuto), bem como na forma elementar, em que forma camadas de cristais oxidadas que dão origem a uma coloração iridescente. É frequentemente encontrado junto com estanho, chumbo e cobre, sendo  um minério relativamente barato.

O Bismuto-209 é considerado como sendo o átomo estável de maior massa atômica, levemente radioativo. Seu tempo de meia-vida (o tempo de meia vida de um elemento é o tempo necessário para que metade uma determinada quantidade deste elemento decaia para outro isótopo do mesmo elemento, ou de outro elemento) é de aproximadamente 190.000.000.000.000.000.000 de anos. Para se ter uma idéia como este tempo é longo, estima-se que a idade do universo seja de 14.000.000.000 de anos.

Apesar de ser um metal pesado, os sais de bismuto são incrivelmente não-tóxicos. Menos tóxicos do que o sal de cozinha, cloreto de sódio (NaCl). Por isso, sais de bismuto apresentam inúmeras aplicações, como na indústria de cosméticos, na medicina e na preparação de medicamentos (sais de bismuto são notoriamente utilizados no tratamento de azias e mal-estar estomacal).

Sais de bismuto são algumas das poucas substâncias que sofrem expansão quando se solidificam (como a água, por exemplo; quem já colocou uma garrafa fechada cheia de água no congelador sabe disso). Por isso, sais de bismuto são utilizados em soldas e na fabricação de ligas para a indústria de impressão (isso mesmo: para fazer aquelas letras de metais de impressoras antigas).

Sais de bismuto também são bons substitutos do chumbo, que é altamente tóxico, na fabricação de balas de espingardas para a caça de aves e animais silvestres (pobres animais; mas em muitos países do hemisfério norte a temporada de caça é totalmente regulamentada, até mesmo com animais “selvagens” criados em cativeiro, como javalis).

Sais de bismuto também são altamente diamagnéticos – ou seja, são repelidos, e não atraídos, por um campo magnético. Por isso, entram na composição das ligas metálicas de trens ultra-rápidos que funcionam por levitação magnética.

Devido à sua baixa toxicidade, sais de Bismuto com estado de oxidação +3 são utilizados como catalizadores eficazes e de baixa toxicidade em diversas reações químicas – sendo assim considerados sais de “química verde” (“amigos” do meio-ambiente).

No laboratório de Química Orgânica de Produtos Naturais do Instituto de Química de São Carlos, utilizamos sub-nitrato básico de bismuto, 4BiNO3(OH)2.BiO(OH), na preparação do revelador de Dragendorff (o sal de bismuto + ácido acético + iodeto de potássio), que reage com substâncias nitrogenadas de natureza básica fornecendo manchas de coloração alaranjada em placas de cromatografia em camada delgada.

Viva o Bismuto!

ResearchBlogging.orgMohan, R. (2010). Green bismuth Nature Chemistry, 2 (4), 336-336 DOI: 10.1038/nchem.609

Vespas exploram actinobactérias em proveito próprio

A simbiose entre microrganismos e organismos superiores é considerada por alguns pesquisadores como sendo a chave para o sucesso da evolução biológica (Margulis e Fester, 1991). Tais relações estão amplamente distribuídas em todos os ambientes da Terra. Em particular, relações de simbiose entre insetos e microrganismos são importantes para a nutrição dos insetos bem como para a proteção dos alimentos dos insetos.

Uma espécie específica de vespa, Philanthus sp., estabelece relação de simbiose com uma actinobactéria (Candidatus Streptomyces philanthi) que protege tanto a vespa como seus ovos da infecção por patógenos. As fêmeas da vespa “cultivam” estas bactérias em suas antenas, e depositam uma secreção contendo estas bactérias nas células que darão origem a seus ovos. As larvas dos ovos incorporam tais bactérias em seus casulos, e as espalham pela superfície do casulo enquanto estes são formados, girando o casulo no local em que se encontram.

Uma vez isoladas, as actinobactérias dos casulos foram crescidas em meio de cultura em laboratório, para que, depois de crescidas suficientemente, fornecessem quantidade adequada de meio de cultura para o isolamento dos antibióticos que produzem. Estes foram identificados como sendo a estreptoclorina (1), a piericidina A1 (2), a piericidina B1 (3), a glucopiericidina A (4), a piericidina A5 (5), a piericidina C1 (6), a 9’-desmetil-piericidina A1 (7), a piericidina B5 (8) e a piericidina IT-143-B (8). Tais antibióticos já eram conhecidos e já haviam sido isolados de outras linhagens de actinobactérias, mas nunca todas estas substâncias juntas.

Após a remoção das actinobactérias da superfície dos casulos, nenhum dos antibióticos pôde ser detectado nestes. Os autores utilizaram uma técnica recentemente desenvolvida, chamada de espectrometria de massas de geração de imagens por dessorpção/ionização a laser acoplada a um analisador por tempo de vôo [(LDI)-TOF/MS imaging]. Esta técnica permite a visualização de substâncias em uma superfície. Desta maneira, conseguiram, literalmente, observar (ou não) a presença das substâncias na superfície dos casulos das larvas de Philanthus sp. A técnica permitiu detectar a piericidina A1 como sendo a substância majoritária presente na superfície dos casulos, além das substâncias piericidina B1 a estreptoclorina, com uma distribuição bastante uniforme destes três antibióticos em toda a superfície dos casulos. Porém, estas substâncias ocorrem em muito menor concentração no interior do casulo. A quantidade total média de todos os antibióticos em cada casulo pôde ser estabelecida: 130,5 +/- 209,7 µg.

(a) Fêmea da vespa Philanthus sp. secretando actinobactérias (listras brancas da antena); (b) micrografia de fluorescência por hibridização in situ das actinobactérias simbiontes de Philanthus sp.; (c) estruturas das substâncias químicas isoladas do meio de cultura da actinobactéria: estreptoclorina (1) e piericidinas (2-9); análise por LDI-TOF/MS da superfície do casulo de Philanthus sp. Mapas de intensidade de íons das substâncias piericidina A1 (figura d superior à esquerda), piericidina B1 (figura d superior à direita), estreptoclorina (inferior à esquerda). A figura d inferior à direita se refere ao casulo da vespa Philanthus sp. A intensidade dos íons de cada substância é indicada com pontos coloridos: pontos negros correspondem a 0 íons e pontos vermelhos correspondem a 255 íons.

Tanto o extrato bruto de metanol do casulo, como as substâncias individuais 1, 2, 3 e 4 , foram testadas contra uma série de microrganismos patogênicos (Figura 2b). O extrato do casulo apresentou atividade antibiótica contra todas as linhagens testadas (detalhe: Metarhizium anisopliae e Beauveria bassiana são fungos entomopatogênicos, ou seja, patógenos de insetos). Dentre as substâncias puras testadas, a piericidina A1 demosntrou ser o antibiótico de mais amplo espectro. As concentrações de atividade biológica para todos os antibióticos isolados da actinobactéria situaram-se na faixa de 0,24 a 24 nmol (1 nmol = 0,0000000001 mol).

As actinobactérias simbiontes “cultivadas” nas antenas da fêmea da vespa Philanthus sp. produzem um “coquetel de antibióticos” que protege o casulo d
as larvas da vespa contra agentes infeciosos (fungos e bactérias patogênicos). A localização dos antibióticos na superfície do casulo permite estabelecer a sua real função e o significado ecológico das substâncias produzidas pela actinobactéria. A proteção por antibióticos confere às larvas da vespa uma vantagem adaptativa, uma vez que vespas são insetos solitários, desprovidos de formas de defesa adquiridas por insetos sociais.

Atividade biológica das substâncias produzidas pela actinobactéria isolada de Philanthus sp. (a) Placa de Petri do fungo Penicillium avellaneum sobre o qual foram aplicados o extrato metanólico do casulo (i) e as substâncias estreptoclorina (ii), piericidina A1 (iii), piericidina B1 (iv), e glucopiericidina A1 (v). (b) Padrão de inibição de vários micro-organismos patogênicos pelas substâncias isoladas da actinobactéria simbionte de Philanthus sp. Círculos vermelhos indicam o máximo de inibição de crescimento microbiano; círculos laranja indicam 76 a 99% de inibição do crescimento microbiano; círculos amarelos, 51 a 75% de inibição do crescimento microbiano; círculos verdes indicam 26 a 50% de inibição do crescimento microbiano; círculos verdes indicam 1 a 25% de inibição do crescimento microbiano.

A “terapia de antibióticos” produzida pela actinobactéria e utilizada pela vespa corresponde à utilização de coquetéis de antibióticos ou de antivirais, cada vez mais utilizada em medicina. Tal forma de tratamento explora a ação sinergística que vários compostos juntos podem apresentar, e resulta em uma maior eficácia contra um maior número de agentes patogênicos, fazendo com que estes não desenvolvam mecanismos de resistência aos antibióticos. Tal “modelo de tratamento” é extremamente importante para a larva da vespa Philanthus, que pode ficar em estágio de transformação ovo-larva-pupa-adulto por até 9 meses, e exposta a diversos tipos de micro-organismos. A estratégia adquirida pelas vespas da espécie Philanthus sp. representa uma “inovação adaptativa” de um mecanismo de ação de defesa efetivo que atua a longo prazo. Certamente tal estratégia deve ser utilizada por outros macro-organismos, uma vez que este mundo é dominado por seres invisíveis, os micro-organismos.

Referências

Margulis, L. e Fester, R. (1991) Symbiosis as a source of evolutionary innovation, The MIT Press (ISBN 0-262-13269-9).

ResearchBlogging.orgKroiss, J., Kaltenpoth, M., Schneider, B., Schwinger, M., Hertweck, C., Maddula, R., Strohm, E., & Svatoš, A. (2010). Symbiotic streptomycetes provide antibiotic combination prophylaxis for wasp offspring Nature Chemical Biology, 6 (4), 261-263 DOI: 10.1038/nchembio.331

As figuras foram obtidas com autorização do Grupo de Publicações Nature (NGP).

Biodiversidade marinha e terrestre

Neste ano, o internacional da biodiversidade, este assunto será cada vez mais recorrente, como assinalado recentemente em editorial da revista Science (Marton-Lefèvre, 2010). Sua importância não pode ser minimizada, uma vez que as metas estabelecidas durante a Convenção da Diversidade Biológica (2002) não foram cumpridas. Tal como o aquecimento global (fato ou mito? Ninguém sabe realmente), as metas da CBD não foram, nem de longe, atingidas. Segundo a International Union for Conservation of Nature, atualmente 47.677 espécies biológicas encontram-se em risco de extinção, das quais  17.291 são as mais diretamente ameaçadas e incluem 12% de pássaros, 21% de mamíferos, 30% de anfíbios, 27% de corais de recifes e 35% de coníferas e cicadáceas.

Fato surpreendente é o relato recente que a biodiversidade marinha é muito menor do que a biodiversidade terrestre, quando se considera o número de espécies nos dois ambientes. O levantamento mostra que de cada 10 espécies biológicas, 9 situam-se em ambiente terrestre, segundo Richard Grosberg e Geerat Vermeij, da University of California em Davis. Os pesquisadores assinalam que tal distribuição é relativamente recente, uma vez que há 400 milhões de anos, no período Devoniano, a predominância era de espécies marinhas. Contudo, há cerca de 110 milhões de anos as plantas terrestres começaram a sofrer um intenso processo de especiação, e, em paralelo, seus respectivos agentes polinizadores, micro-organismos associados (os assim chamados micro-organismos endofíticos) e predadores herbívoros. Em conseqüência, o número de espécies biológicas terrestres sofreu um enorme incremento, deixando a biodiversidade marinha muito aquém em número de espécies.

Mas tal observação não é nova. Já em 1994, Robert May da University of Oxford (Inglaterra) observou que 85% das espécies macroscópicas situam-se em terra firme, utilizando um levantamento feito com base no registro de espécies até então catalogadas. A disparidade do número de espécies entre ambiente terrestre e marinho é detectável até mesmo em áreas de alta densidade biológica, como em florestas tropicais X recifes de corais: no primeiro caso, pode-se chegar a 475 espécies vegetais e 25.000 espécies de insetos em um hectare de terra, mas em um hectare de recife de coral observa-se “apenas” 300 espécies de corais, 600 espécies de peixes e 200 espécies de algas.

Vários fatores podem, aparentemente, ter influenciado esta diferença, como a muito maior densidade da água quando comparada com a do ar, fazendo com que larvas e sinalizadores químicos sejam transportados com muito mais dificuldade no meio marinho do que no terrestre. Além disso, o maior calor específico da água (quantidade de calor para aumentar de 1 grau Celsius a quantidade de 1 g de água. No caso, 1 caloria) pode tornar os organismos marinhos menos funcionais quando do aumento da temperatura da água, uma vez que a possibilidade de dispersar o excesso de calor torna-se muito mais difícil. Desta forma, o ambiente terrestre seria muito mais propício para os processos adaptativos que regem o processo de evolução através da seleção natural.

Mas os fatores físicos são apenas algumas das justificativas que explicam o porquê da riqueza da biodiversidade terrestre ser tão maior do que a marinha. Com a “explosão” das plantas floríferas há cerca de 110 milhões de anos atrás, estas ocuparam praticamente todos os ambientes terrestres onde podiam se desenvolver. E, em paralelo, as espécies associadas a estas plantas, como de insetos, herbívoros e micro-organismos. Como a dispersão das espécies pelo ar é muito mais rápida e pode atingir longas distâncias, o surgimento de um número excepcional de espécies terrestres foi muito favorecido. Como a dispersão no meio marinho é muito mais difícil, as espécies marinhas tendem a viver de forma aglutinada, formando comunidades de alta densidade populacional – os recifes de corais. Nesta situação, as espécies que vivem intimamente associadas em recifes de corais se tornam particularmente vulneráveis a doenças, predação e fatores ambientais como aquecimento e ocorrência de desastres como maremotos e furacões. Tais fatos já foram extensivamente observados nos corais da região caribenha e das Bahamas, pois estão continuamente expostos a enormes furacões que movimentam as águas oceânicas de maneira extremamente agressiva, deixando um enorme rastro de destruição de corais e suas espécies associadas. São necessárias décadas para que tais recifes voltem a apresentar suas características originais. O mesmo vale para corais da Grande Barreira de Corais da Austrália, que sofrem particularmente com efeito de branqueamento dos corais (morte de zooxantelas e outras cianobactérias) em decorrência de mudanças na temperatura da água bem como nas taxas de dissolução de CO2 na água do mar.

Outro fator que pode ter contribuído para um aumento significativo na biodiversidade terrestre é o aumento significativo na vascularização das plantas superiores com o passar dos anos. Tal fator levou a um aumento importante na biomassa das plantas, e pode ter contribuído para a ocupação de nichos ecológicos ainda disponíveis.

Porém, o quadro geral de distribuição de espécies terrestres e marinhas é um quadro aproximado. Isso porque ainda não se conhece praticamente nada sobre as espécies biológicas que habitam os oceanos profundos. Descobertas recentes indicam uma enorme diversidade de espécies únicas destes habitats inóspitos. Além disso, a importância em melhor se conhecer a distribuição das espécies na Terra se deve não somente para o conhecimento em geral. Muitas espécies apresentam características fisiológicas e anatômicas únicas, que possibilitam conhecer melhor o “sistema vivo” dos organismos, além de podermos esclarecer como a vida surgiu e evoluiu no nosso planeta.

ResearchBlogging.orgMarton-Lefevre, J. (2010). Biodiversity Is Our Life Science, 327 (5970), 1179-1179 DOI: 10.1126/science.1188424

ResearchBlogging.orgPennisi, E. (2010). On Rarity and Richness Science, 327 (5971), 1318-1319 DOI: 10.1126/science.327.5971.1318

ResearchBlogging.orgMAY, R. (1988). How Many Species Are There on Earth? Science, 241 (4872), 1441-1449 DOI: 10.1126/science.241.4872.1441

ResearchBlogging.orgHassell, M., Comins, H., & May, R. (1994). Species coexistence and self-organizing spatial dynamics Nature, 370 (6487), 290-292 DOI: 10.1038/370290a0

O desenvolvimento sustentado é possível?

O livro “A Retórica da Razão”, de Albert O. Hirschman (1991) é considerado uma obra de essencial importância para explicar os argumentos de conservadores sobre as atuais mudanças sociais segundo o modelo de desenvolvimento sustentável. Segundo Hirschman, os conservadores apresentam três tipos de argumentos que questionam as mudanças, e procuram minimizar sua importância: argumentos perversos, argumentos fúteis e argumentos de ameaças. O emprego de tais argumentos não somente limita o entendimento entre liberais e conservadores, entre progressistas e reacionários, como também pode ser tão danoso quanto simplesmente se ignorar maneiras de se promover a sustentabilidade. Argumentos reacionários contrários à sustentabilidade estão sendo atualmente utilizados para manter o status quo do sistema econômico e social vigente. Desta forma, a análise crítica da contextualização histórica de tais argumentos ajuda a prover base para sua compreensão e de como estes argumentos são empregados contra mudanças potencialmente necessárias.

O têrmo “desenvolvimento sustentado” engloba vários conceitos sobre a relação entre a governabilidade e a sociedade e natureza. Constitui em se estabelecer formas de planejamento e modos de atuação valorosos e virtuosos, quase como um movimento social. Sendo assim, o “desenvolvimento sustentado” atraiu a atenção tanto de revolucionários como de reacionários, que atuam de forma divergente, sem que, contudo, se manifestem abertamente contra a sustentabilidade. A forma de se questionar a sustentabilidade se baseia, fundamentalmente, em questionar se mudanças são ou não realmente necessárias. O conhecimento destas táticas conservadoras permite sua análise e também conhecer o potencial de certas iniciativas de governabilidade, gestão e convivência em ambientes sociais, e também como o emprego de tais argumentos contribuem para reforçar barreiras de comunicação entre grupos com visões sociais distintas.

Qual a importância da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentado? Principalmente em criar formas diferentes de se resolver problemas e de diálogo entre “partes” aparentemente opostas, que incluem diversos setores da sociedade e do governo. A sustentabilidade traz consigo uma reorganização dos poderes e das instituições administrativas, com ênfase em abordagens participativas e integrativas. De tal forma que a análise dos prospectos de sustentabilidade deve ser muito cuidadosa, de maneira a não ser corrompida por falsas premissas básicas, que buscam apenas a atender determinados setores sociais ou interesses de grupos segmentados.

Uma maneira muito questionável de se analisar os preceitos e as maneiras de se promover a sustentabilidade é de acordo com a filosofia pragmática, a qual, na verdade, deve ser muito mais uma forma de se implementar ações do que de análise. A adoção do pragmatismo como base de análise torna muito difícil de discernir quais pontos são realmente verdadeiros para se avaliar a sustentabilidade, bem como o que é realmente bom e possui valor moral neste contexto. Sendo assim, é absolutamente necessário se deixar o pragmatismo de lado e se ampliar o escopo da análise de processos de sustentabilidade, com membros da sociedade aptos a promover tais questionamentos e trazer à luz o conhecimento aliado a tais questionamentos. A adoção de uma “filosofia pragmática” pode ser questionável por sempre trazer a suspeita de que “há sempre algo suspeito sob o sol”, quando tal discussão é trazida por um número crescente de participantes aptos a apresentarem seus diferentes pontos de vista sobre o desenvolvimento sustentado.

A sustentabilidade por si só deve ser um conceito pragmático se for para se implementar mudanças para a reorientação das práticas sociais futuras. O problema é que o conceito “sustentabilidade” apresenta uma relação ambígua com o conceito “mudança”. Até há pouco tempo, o conceito de sustentabilidade estava um unicamente relacionado à conservação de recursos naturais. O problema é que esta maneira de pensar implica em se criar formas de manter os recursos naturais intocados e inexplorados, para que não sejam “danificados”. Ora, tal forma de se considerar o desenvolvimento sustentado vai contra a sua essência, que é a da experimentação, do aprendizado, da restauração e da melhoria das relações, muito mais do que de simplesmente se “manter inalterado e intocado” o acesso e utilização racional dos recursos naturais. Um dos maiores desafios da sustentabilidade é de se promover o “pensamento social”, de maneira a se minimizar interesses individuais e de certos setores em favor daqueles de caráter muito mais amplo para a sociedade. Os argumentos conservadores objetivam simplesmente deixar de lado tal forma de se criar maneiras integradas para proposições para a sustentabilidade.

Assim, setores sociais conservadores fazem uso de argumentos perversos, fúteis e de ameaças para descaracterizar a necessidade de mudança para promover o desenvolvimento sustentado.

Argumentos de perversidade são aqueles que são empregados para dizer que tudo pode apenas piorar e, no contexto da sustentabilidade, apenas tornar todo o processo ainda mais insustentável. Os argumentos de perversidade sustentam que a maneira de se promover a sustentabilidade é contra o desenvolvimento e apresenta perigo para o neoliberalismo. Setores conservadores fazem amplo uso de argumentos com a lógica da perversidade, em favor da governabilidade. Assim, por exemplo, dizer que a sustentabilidade pode ser o principal entrave para o desenvolvimento é um argumento perverso, uma vez que bloqueia qualquer outra possibilidade de se promover desenvolvimento. Porém, pelo contrário. As abordagens de governabilidade sustentada que se baseiam em parcerias tornam mais efetivas a utilização de diferentes recursos, formas de conhecimento e de entendimento, de maneira a encontrar novas soluções para capacitar aqueles que buscam o desenvolvimento sustentado como verdadeiros experimentadores. Somente desta maneira é possível se conhecer novas idéias, valorizar estas idéias e modelar novas práticas conforme tal abordagem integrativa, e não em normas regulatórias.

Ao argumentar em termos de “governabilidade”, a abordagem perversa pode atingir seu extremo. Esta estratégia objetiva aumentar a efevitidade e o escopo regulatório, impingindo regras, leis e conformidades, com a proposta de defender “os interesses púbicos”. Assim, em vez de promover a integração entre os interesses públicos e cívicos em longo prazo, o resultado é que os diferentes setores sociais são levados a agir como corporações para defender seus próprios interesses. Perde-se a essência da relação governo-cidadão, e tal relação é reduzida a seu mínimo denominador comum. Embora nefasto, o argumento da perversidade pode eventualmente levar a algumas ações de sustentabilidade positivas, como aquelas identificadas pelos movimentos NIMBY (Not In My Backyard – não no meu quintal), LULU (Locally Unwanted Land Uses – Usos da terra localmente indesejados) e BANANA (Build Absolutely Nothing Anywhere Near Anything – Não construir nada em local nenhum perto de qualquer coisa). Tais ações são de confrontação, teatrais e às vezes litigiosas. Por isso, é melhor que as propostas de projetos de sustentabilidade sejam apresentadas de maneira explícita, enfatizando novas parcerias e formas de consenso, de maneira a que a governabilidade não perca uma forma efetiva e confiável de mudança.

O argumento da futilidade se baseia na assertiva francesa de que “plus ça change, plus c’est la même chose” (quanto mais se muda, mais tudo fica do mesmo jeito). O argumento da futilidade sustenta que a participação social não têm o menor impacto nas decisões a serem tomadas. Que inovações nos modos de participação social no govern
o são inefetivas, pois não conseguem romper as barreiras entre diferentes grupos, e que só servem para reforçar tais desigualdades e limitações de pensamento e comportamentos, bem como as diferenças nas trocas de experiência e de percepções da realidade. Ou seja, que a participação têm eficácia limitada na mudança de diretrizes. E, ainda, que promover estudos e avanços em agendas específicas são fúteis porque os governos não conseguem incorporar tais mudanças e transferi-las em estratégias  e ações efetivas de sustentabilidade.

Na verdade, a lógica de futilidade é que é fútil, por considerar que a sustentabilidade só é válida de resultar na mudança de regras, leis e diretrizes. Tentar estabelecer listas de prioridades, áreas e maneiras específicas de atuação sustentada é, de acordo com o próprio princípio da futilidade, uma estratégia ingênua, dúbia e limitante. A resposta para o problema da sustentabilidade como um todo deve ser considerada de maneira integrativa e incrementativa, sem limites definidos. Portanto, o argumento da futilidade apenas tenta reforçar que estamos andando, sem sair do lugar.

O argumento da ameaça, ou do perigo, tenta mostrar que a emergência de um novo paradigma de uma forma de desenvolvimento sustentável é verdadeiramente diabólica. Tenta mostrar que se caminharmos para maneiras holísticas e integrativas de sociedade sustentada poderemos perder tudo o que conquistamos até aqui. O argumento da ameaça tem por objetivo mostrar que a ênfase no holismo e integração do desenvolvimento sustentado é um caminho para se evitar o aprofundamento das formas de proteção necessárias para a preservação ambiental.Tal argumento se baseia no princípio de que a mesma quantidade de capital (econômico, social, cultural, etc) deve ser transferida de geração para geração, e que é absolutamente ingênuo se pensar que a atividade econômica não deve nunca prejudicar o meio ambiente. Não leva em consideração que a natureza deste capital está sob constante mudança, e que não pode ser substituída. Que deve permanecer constante, de maneira a preserva a riqueza e proteção, para se evitar perturbações no status quo e no sistema vigentes.

O argumento da ameaça sustenta que uma sustentabilidade forte ainda deve ser desenvolvida do ponto de vista político para se tornar palatável. Que uma sustentabilidade fraca é a única maneira de se adotar princípios de sustentabilidade em um mundo de compromissos políticos. E que uma sustentabilidade forte pode levar à destruição aqueles elementos sociais sobre os quais tudo deve se manter. Ainda, tenta questionar se realmente sabemos como nos planejar e agir de maneira integrativa para que nunca tenhamos perdas. Ou seja, que em um modelo de sociedade sustentável possamos sempre satisfazer nossas vontades, tanto do ponto de vista financeiro como social e ambiental. Um modelo sustentável seria apenas válido se fosse aplicado a pequenos ajustes de desempenho financeiro. Tal é o modelo de sustentabilidade adotado pela China – só pode ser aplicado se for sem perdas econômicas e financeiras.

O problema em querer se implementar tal forma de sustentabilidade fraca, que atende às necessidades de mercado, é que é praticamente impossível se estabelecer uma justa medida entre grupos econômicos, grupos sociais, entre nações. Não é possível que todos os elementos sociais possam ter sempre todas suas necessidades atendidas, em seu mais alto nível. Tentar se estabelecer, arbitrariamente, uma “justa medida de satisfação e felicidade” para se promover o progresso, apenas reforça a identidade do “Grande Irmão”, e de formas de controle. A engenharia social servirá sempre para atender apenas aos interesses daqueles que estão no poder, mas nunca para promover uma real integração dos diversos setores sociais.

Cientistas sociais devem se debruçar sobre as questões que envolvem modelos de desenvolvimento sustentado, de maneira a conhecer e disseminar conhecimento das formas como relações culturais e sociais podem ser utilizadas para melhor se aproveitar os recursos naturais. Embora a natureza possa prescindir totalmente da existência da espécie humana, é a humanidade que determina os caminhos do verdadeiro desenvolvimento sustentado. É imperativo que os diversos setores sociais possam atuar de maneira determinante, junto ao governo e aos órgãos governamentais, de maneira a contribuir para a construção de tal modelo. Se não investirmos esforços consideráveis nesta direção, os esforços em busca de melhor qualidade e condições de vida correrão sérios riscos de serem perdidos e, consequentemente, de todas as implicações em que tais esforços resultam: instituições democráticas, filosofia de paz e tolerância, o real sentido de justiça social, reparação e reconcialiação, e o reconhecimento dos direitos de grupos sociais marginalizados.

A tomada do conhecimento dos argumentos de perversidade, futilidade e de ameaça de setores sociais conservadores não deve levar à animosidade, e sim ao questionamento contínuo sobre o real valor de tais argumentos. Afinal, o conceito de sustentabilidade não pode ser erigido em pseudo-concepções idealistas, tais como de ecotopias e sociedades ideais, e sim em princípios de diversidade e mudança. Uma análise interdisciplinar efetiva sobre um modelo de sustentabilidade deve levar em conta os prós e contras argumentos de viabilidade de vários ideais, bem como uma crítica fundamentada de visões de mundo muitas vezes opostas, que considere com seriedade a ausência de um cenário que seja necessariamente melhor ou a única saída para a resolução de inúmeros impasses atuais.

O argumento da futilidade deve ser continuamente identificado e combatido, por promover uma falsa visão de que, se problemas atuais não podem ser resolvidos de maneira eficaz, efetiva e rápida de acordo com um modelo de sustentabilidade, logo tal modelo deve ser abandonado. Sobretudo, o desenvolvimento de um modelo de sustentabilidade deve se basear no aprendizado contínuo de como pode ser construído, uma vez que até hoje nunca foi real objeto de consideração por parte dos governos e da sociedade. Já “a ameaça” pode resultar da implementação de mudanças por demais radicais. Etapas já conquistadas devem ser valorizadas, e incluem inclusive o aprendizado social de práticas de sustentabilidade.

Uma verdadeira filosofia de sustentabilidade implica em uma contínua ação unificadora. Porém, como a diversidade de abordagens de sustentabilidade, de acordo com o contexto social, político e econômico em que se inserem, pode levar a um quadro de análise complexo, é absolutamente necessário que se reforcem estudos e pesquisas sobre tais abordagens. Uma abordagem de sustentabilidade pragmática deve mostrar as claras distinções entre possíveis caminhos para a realização de mudanças e a simples manutenção do status quo. E, o que é muito mais difícil, indicar formas de distinguir a qualidade da mudança ou de preservação que está implícita nas diferentes estratégias de sustentabilidade.

Considerando-se que a solução para os defeitos da democracia é mais democracia, a promoção da educação, do esclarecimento, da verdadeira troca de idéias prospectiva leva unicamente ao reforço do conhecimento sobre a verdadeira democracia, que deve estar sobre um processo de crítica constante, bem como de renovação de suas manifestações políticas.

Esta é uma tradução livre e apreciação do artigo citado abaixo. Muito bom.

ResearchBlogging.orgHolden, M. (2010). The Rhetoric of Sustainability: Perversity, Futility, Jeopardy? Sustainability, 2 (2), 645-659 DOI: 10.3390/su2020645

Somente para viciados

No blog “química de produtos naturais” foram postadas várias matérias sobre o café, saborosa bebida de origem africana. Estudos sobre se a cafeína reduz perda de memória, ácido caféico e hipertermia, se o consumo de café pode aumentar ou diminuir a incidência de dores de cabeça, e se o café é uma panacéia, ou sobre abelhas que preferem néctar de plantas com doses suaves de cafeína. Confesso: sou chegado num bom café. Saboroso, sem ser ácido, preparado para ser consumido imediatamente, um bom café expresso, como o da cantina da Conceição, no campus da USP-São Carlos, perto do prédio da Arquitetura. Ali a cantina serve café expresso Kühl, de Limeira. Bom. Forte, saboroso, cremoso. Uma xícara de manhã e outra depois do almoço, está ótimo.

Descobrir onde tomar um bom café, em viagens por este mundo sem fim, pode ser um bom desafio. No ano passado, em Fortaleza, durante a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química, por exemplo, havia um bom café expresso dentro de uma sorveteria. Virou ponto antes de ir assistir às apresentações do congresso. Nos EUA também não é fácil. O café do Starbucks não é fantástico (mas me disseram que as lojas de São Paulo tiveram que melhorar a forma de tirar café, para se adaptar aos paulistanos, exigentes tomadores de café). Há 11 anos, Vancouver (Canadá) tinha uma loja do Second Cup no campus da UBC com um excelente expresso duplo.

Café vicia? Acho que sim. E o consumo exagerado pode causar inúmeros problemas. O verbete da Wikipédia em inglês sobre a cafeína é bastante extenso e completo. Mas a melhor estória que conheço sobre café é de uma menina que vivia na Alemanha, nos idos de 1600-1700, e adorava café. Seu pai, muito preocupado com o hábito da filha, prometeu-lhe um casamento, desde que parasse de tomar a bebida. A menina, mais esperta que o pai, aceitou a proposta. Mas assim que conheceu seu pretendente, disse a ele que só se casaria se ele, o noivo, a deixasse tomar café depois que casassem. Uma trapaceira. Mas no fim todos concordam, filha, pai e noivo: café é uma bebida que, uma vez que se começa a tomar, é impossível de parar. Esta é a história da Cantata do Café, composta por Johann Sebastian Bach entre 1734 e 1735. Incluí a seguir a ária “Heute noch, lieber Vater” (“Ainda hoje, meu pai querido”), que infelizmente não é a melhor interpretação que já ouvi, pois a cantora canta ligeiramente atrasada com relação à orquestra. Em seguida, o coro final da cantata, “Die Katze läbt das Mausen nicht”, uma versão muito divertida que encontrei do YouTube.

A cantora Christiane Oelze, soprano, é a intérprete da Ária, com a Bach-Collegium Stuttgart sob a regência de Helmuth Rilling. O coro final é interpretado pela Freiburg Baroque Orchestra.

Gingko biloba: remédio?

Ginkgo biloba é uma planta considerada um fóssil vivo, pois pertence à família das Ginkgoaceae, das quais já foram encontrados espécimens petrificados os quais, se presume, estavam vivos há 300 milhões de anos. Estas plantas se tornaram praticamente extintas durante o Período Terciário (cerca de 60 milhões de anos atrás), restando dois de 19 gêneros com quase 60 espécies.

Esta planta é amplamente utilizada na medicina oriental (Japão e China), onde foi e é empregada para o tratamento de tosse, asma bronquial e até bebedeira pesada. Fitofármacos (medicamentos que têm extratos vegetais por base) à base de G. biloba são dos mais utilizados no mundo, inclusive no Brasil, para o tratamento de insuficiência do fluxo sanguíneo, insuficiência cerebral, depressão, vertigens e tonturas, dores de cabeça, déficit intelectual. Porém, testes clínicos realizados com G. biloba, apesar de serem numerosos, são controversos. Ensaios realizados com idosos com sintomas da doença de Alzheimer não apresentaram resultados evidentes. O chá de G. biloba também é bastante utilizado, apesar de conter concentrações de ácidos ginkgólicos 80 vezes maiores do que as recomendadas. E muito provavelmente também contém a gingkotoxina.

A gingkotoxina é formada na planta através de uma via bioquímica muito parecida com aquela que leva à formação da piridoxina, também conhecida por vitamina B6. Sendo assim, quando consumida em excesso, a gingkotoxina atua como um competidor da vitamina B6, uma vitamina essencial para o metabolismo dos aminoácidos. Indivíduos com carência de vitamina B6 apresentam dermatite (inflamação da pele), anemia, gengivite, feridas na boca e na língua, náusea e nervosismo.

No Japão, as sementes de G. biloba são consumidas como alimento, mas podem causar intoxicação com sintomas característicos. Tais intoxicações já foram registradas 70 vezes, das quais 27% levaram à morte. Foram particularmente freqüentes durante a 2ª Guerra Mundial, quando houve escassez de alimentos no Japão. Pacientes que ingeriram sementes de G. biloba apresentaram quadro convulsivo, com vômitos e falta de consciência. Outras plantas que também contém gingkotoxina, como espécies do gênero Albizzia, são responsáveis por inúmeros casos de intoxicação de gado na África.

Devido à sua similaridade com a vitamina B6, esta última é utilizada como antídoto em casos de intoxicação por gingkotoxina, que está presente não somente nas sementes, mas também nas folhas de G. biloba, muito utilizadas em fitoterapia. Além disso, vários medicamentos contém quantidades de gingkotoxina entre 11,4 e 58,5 mg, sendo que a quantidade máxima reocomendada para ingestão diária é de entre 0,09 e 11,9 mg. A ingestão continuada de medicamentos contendo gingkotoxina pode levar ao surgimento de quadros clínicos convulsivos de natureza epiléptica. A presença de gingkotoxina em fitomedicamentos e medicamentos comprovadamente atua em detrimento da saúde dos pacientes.

Desta forma, órgãos reguladores de saúde na Europa recentemente estabeleceram restrições na utilização, bem como obrigatoriedade de advertência na bula e na embalagem, de medicamentos à base de G. biloba. No Brasil e no mundo o consumo de fitomedicamentos contendo G. biloba é extremamente elevado. Talvez por desconhecimento dos potenciais danos à saúde que eventualmente o consumo desta planta pode causar.

Referências
L. C. Baratto, J. C. Rodighero e C. A. de Moraes Santos: “Ginkgo biloba: o chá das folhas é seguro?”. (revista Ciência Hoje)
Entrevista com Luís Carlos Marques, especialista em Fitoterapia, mestre em Botânica e doutor em Ciências. Professor do Departamento de Farmácia e Farmacologia da Universidade Estadual de Maringá.

ResearchBlogging.orgLeistner, E., & Drewke, C. (2010). Gingko biloba and Ginkgotoxin, Journal of Natural Products, 73 (1), 86-92 DOI: 10.1021/np9005019

O fim, quando?

Assumindo que o universo teve um início, com o Big Bang, também terá um fim? Este fim é inevitável? E, se sim, em menor escala podemos considerar que a permanência da humanidade, ou da vida, na Terra, também chegará a ter um fim? Certo?

Nada é tão certo nesta seara, em que muitas questões permanecem em aberto. Um dos principais focos a se levar em conta é se a humanidade pode se sustentar, ou pode ser sustentada, e por quanto tempo, pois não é possível excluir a humanidade do ambiente em que vive, seja o ambiente terrestre ou o extra-terrestre. No que se refere ao terrestre, a permanência da humanidade na Terra está intimamente relacionada a fatores ambientais bem conhecidos, como as mudanças climáticas, perda de biodiversidade, ruptura dos ciclos do nitrogênio e do fósforo. Como a Terra não está em um sistema isolado, as interações com o universo influenciam diretamente a longevidade da vida terrestre. Raios solares, radiação, asteróides, cometas, e a possibilidade da existência da vida alhures são fatores incontestavelmente importantes. Mesmo porque algumas teorias sustentam que a vida tenha se originado a partir de matéria orgânica trazida à Terra por corpos celestes.

De acordo com Seth D. Baum (Pennsylvania State University), três abordagens principais podem ser usadas para a elaboração de argumentos sobre a longevidade (ou não) da humanidade na Terra: o determinismo ambiental, o paradoxo de Fermi e a escatologia física.

O determinismo ambiental estabelece que a permanência da humanidade na Terra depende unicamente de fatores ambientais, e não de decisões humanas. Assim, se as condições ambientais forem suficientemente generosas, poderemos viver na Terra por muito tempo. Caso contrário, estamos fadados ao desaparecimento.

No passado, o determinismo ambiental foi utilizado como argumento para explicar a superioridade cultural e fisiológica dos povos europeus sobre os outros povos. Dizia-se que os povos que viviam em regiões mais quentes e ensolaradas eram preguiçosos, ao contrário daqueles que viviam em regiões mais temperadas. Tais argumentos, ao lado do Darwinismo social, justificaram atitudes racistas e as práticas colonialistas que promoveram a escravidão e a exploração à exaustão dos povos de regiões não-européias.

Atualmente o determinismo ambiental é considerado como sendo uma alternativa pobre para explicar a sobrevida da humanidade na Terra, ainda que os fatores ambientais influenciem diretamente a ocupação de territórios inóspitos e a prosperidade em regiões exauridas. Considera-se que se o determinismo ambiental fosse o principal fator a estabelecer a permanência do homem na Terra, haveria muito pouco a se fazer para mudar cenários ambientalmente catastróficos. Por outro lado, se as decisões humanas podem influenciar diretamente a longevidade da espécie humana, muito pode ser feito para se transformar um cenário essencialmente pessimista. Mesmo assim, existem limitações ambientais que não podem ser ultrapassadas.

Como as formas de vida que conhecemos são as únicas que conhecemos,  e o sistema bioquímico que rege a vida na sua essência é universal, tal conhecimento nos indica que a posição do planeta no sistema solar determinou diretamente o surgimento da vida.  Por exemplo, a intensidade de radiação do sol, a ocorrência muito esparsa de “acidentes” com outros corpos celestes, bem como a história da evolução geofísica da Terra, são fatorres que influenciaram diretamente sobre o surgimento e evolução das espécies biológicas. Da mesma forma, a existência da humanidade no planeta só foi possível de acordo com as condições ambientais favoráveis para seu surgimento e manutenção. Mas não sabemos nada, ou sabemos muito pouco, sobre a existência de vida em outros planetas no Universo.

O físico Enrico Fermi (1901-1954) foi o primeiro a realizar cálculos sobre a possibilidade da existência de vida inteligente fora do planeta Terra, e formulou o seguinte paradoxo: se existem civilizações extra-terrestres, aonde estão? (conhecido como o paradoxo de Fermi). Possíveis soluções para tal questionamento:
a) existem, mas ficam apenas nos observando;
b) existem, mas em determinado ponto de sua existência são levadas inerentemente à auto-destruição;
c) existem, e crescem exponencialmente, mas ainda não as conhecemos.

Os problemas com estas respostas são os seguintes. A primeira parece ser uma resposta muito pouco provável, tendo em vista que tal atitude seria, no mínimo, bastante infantil para seres tão desenvolvidos. Já a segunda é bastante plausível, e poderia explicar o porquê de não termos ainda conhecimento de civilizações extra-terrestres. O problema é que, se tal destino for o de civilizações inteligentes, são menos inteligentes do que poderiam parecer. Tal parece ser o caso da civilização humana na Terra. A terceira resposta também é plausível do ponto de vista probabilístico, mas não do ponto de vista do determinismo ambiental. Pois a quantidade de recursos ambientais é sempre limitada, e não é possível para uma civilização crescer indefinidamente, em um único planeta, ou diferentes civilizações no Universo. A partir de determinado ponto de consumo e utilização dos recursos naturais, a perda de viabilidade ambiental leva à destruição de populações de tal forma que a constituição original de uma espécie fica inexoravelmente comprometida.

Embora exista a possibilidade da humanidade ocupar outros planetas, a atual tecnologia disponível ainda não permite a concretização desta proeza. Desta maneira, é melhor se levar em conta que os recursos naturais têm ocorrência e disponibilidade limitada, e diminuir sua  utilização, do crescimento populacional e das necessidades de consumo. Uma mudança de tal natureza no padrão de desenvolvimento humano poderia levar a uma situação de sustentabilidade prolongada. Civilizações extra-terrestres realmente inteligentes podem ter atingido tais níveis de equilíbrio em seu desenvolvimento, ainda que não nos sejam conhecidas.

Um dos atuais problemas para a sustentabilidade da sociedade humana na Terra é o consumo de energia. Inúmeras formas de utilização de diferentes matrizes energéticas estão sendo pesquisadas e exploradas, e ampliam os recursos para a expansão continuada da economia de consumo. Mesmo assim, os recursos energéticos disponíveis atingirão um limite de exploração e utilização. A possibilidade de se buscar recursos extra-terrestres não pode ser descartada, e a utilização de hélio-3, extremamente abundante na superfície lunar, poderia ser a solução como matriz energética durante os próximos 10 mil anos (através de fusão nuclear). Bastaria que fossem desenvolvidas formas de se extrair, trazer e armazenar hélio-3 na Terra.

O paradoxo de Fermi não exclui a possibilidade de estarmos no único planeta com vida de todo o universo. Esta hipótese parece ser ridícula? Não segundo Ward e Brownlee (2000). Se isso for verdadeiro, fica difícil aprendermos algo sobre a possibilidade da existência de vida extra-terrestre. E nosso grau de compromisso intra-específico e com o ambiente se torna significativamente mais importante.

Resta considerar a física escatológica, escatologia esta que faz alusão ao fim dos tempos, o fim do mundo, do universo, ou da humanidade, apocalíptico ou não. Tal escatologia seria de caráter determinista, e não haveria escolha. A ocorrência de asteróides gigantes, altamente destrutivos, corrobora uma hipótese desta natureza, e não poderiam ser impedidos por quem quer que seja, nem mesmo por Bruce Willis (e
m Armageddon). Porém, a física escatológica considera não somente finais cataclísmicos, como também um churrasco interminável, em que o sol aumentaria de tamanho (fato comprovado) e sua irradiação luminosa também. Em muitos milhões de anos tal aquecimento promoveria fusão dos silicatos, que consumiriam quantidades apreciáveis do CO2 presente na atmosfera, comprometendo o processo de fotossíntese. Em tais condições, a vida desapareceria por completo, antes de “passar do ponto”. Para tais casos, a geoengenharia teria que ser amplamente explorada para se evitar tais cenários. Mas não para sempre. Em 100.000.000.000.000 de anos as estrelas cessarão seu brilho, e em 100.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 de anos o número de prótons disponíveis no universo será muito pequeno.

Como a vida não será eterna, nem aqui nem em lugar nenhum, devem ser avaliadas e tomadas decisões de profundo caráter ético, de maneira a minimizar ao máximo o prejuízo à espécie humana, intrinsecamente ligada às outras espécies do planeta. Levar em conta que as possibilidades de manutenção da vida são infinitas implica que um possível número de tais decisões poderia também ser infinito. Porém, sermos realistas implica em sermos responsáveis. A existência do Universo é estimada em vários bilhões de anos – mas não a existência da humanidade. Ainda que seja possível migrar para outros planetas, indefinidamente, tal perspectiva é ainda impossível, no estado atual de nosso conhecimento científico e tecnológico. Logo, a sustentabilidade da espécie humana deve levar em conta nossas atuais limitações.

Embora a questão da premência em se tomar tais decisões seja bastante debatida, se definir o momento adequado para tais decisões dificilmente pode ser estabelecido. Aparentemente, não o atual, segundo nossos governantes. O grande fracasso da COP-15, e a falta de compromisso da Índia e da China em estabelecer políticas concretas contra emissões de carbono, mostram claramente que o momento atual “parece” não ser o mais importante para a tomada de decisões desta natureza, e a implantação de ações efetivas para minorar possíveis problemas naturais que afetariam a espécie humana na Terra.

Colonizar outros planetas parece ser uma real possibilidade, e muitos pesquisadores pensam que temos muito tempo para desenvolver tecnologias para tal, se nada de muito ruim acontecer antes: guerras nucleares, emergência de grandes pandemias, colapso ambiental, e o impacto de um grande asteróide (mas quem sabe… Bruce Willis … quem sabe?). Tais riscos são muito mais iminentes do que o fim do mundo, tal como concebido no apocalipse e por seitas catastrofistas. E por isso mesmo devem ser levados muito mais a sério. Mesmo o físico Stephen Hawking defende a idéia que a migração para outros planetas seria nossa salvação. Propostas incluem também a criação de uma biblioteca digital completa sobre a humanidade na Lua (Burrows, 2006), ou a criação de refúgios  (Hanson, 2008) ou de bancos de sementes aqui na Terra (Charles, 2006).

Embora tais cenários mais pareçam temas de histórias de ficção científica, não se pode negligenciar a crescente perda de diversidade biológica, o (possível, ou provável?) aquecimento global e a possível diminuição de fitoplâncton que comprometeria severamente a fixação de carbono através da fotossíntese.

Segundo Dawkins (em “O Gene Egoísta”), genes são as únicas entidades que se perpetuam na luta pela existência. Embora seu ponto de vista pareça um tanto quanto determinista e reducionista, poderia explicar que o instinto de sobrevivência da espécie humana (de origem genética) poderá, de certa forma, levar a uma mudança de visão de mundo (weltanschaung) em um futuro não muito distante. De outra forma, a evolução biológica, através da seleção natural, passará por cima da espécie humana como um caminhão passa por cima de um tomate.

Referências
Ward, P.D.; Brownlee, D. (2000) Rare Earth: Why Complex Life Is Uncommon in the Universe; Copernicus Books: New York, NY, USA.
Burrows, W.E. (2006) The Survival Imperative; Tom Doherty: New York, NY, USA.
Hanson R. (2008) Catastrophe, social collapse, and human extinction. In Global Catastrophic Risks; Bostrom, N., Ćirković, M., Eds.; Oxford University Press: Oxford, UK, pp. 363-377.
Charles, D.A. (2006) “Forever” seed bank takes root in the Arctic. Science, 312, 1730-1731.
ResearchBlogging.orgSeth D. Baum (2010). Is Humanity Doomed? Insights from Astrobiology Sustainability, 2, 591-603 : 10.3390/su2020591

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