Química, Física e Estética

A natureza humana traz no seu bojo a manifestação da beleza e a apreciação da beleza como uma de suas características únicas, associadas principalmente à intuição e aos sentimentos. A criação de obras de arte é conhecida de antes mesmo da escrita, o que nos faz considerar que o senso estético precede a linguagem. Assim, não é de se estranhar que várias culturas, ocidentais e orientais, desenvolveram várias formas de manifestação estética através da arte.

A arte da confecção de peças de cerâmica é conhecida desde a antiguidade clássica, no caso da civilização ocidental, e mesmo de antes nas culturas orientais, para as quais já foram descobertas peças datadas de 16.000 anos. A cultura japonesa, em particular, traz consigo uma longa tradição na confecção de jarros, cumbucas, xícaras e bules de uma beleza única. São peças refinadas, utilizadas tanto no dia-a-dia como em ocasiões especiais e cerimônias. Os japoneses dominam como poucos a arte da confecção destas peças, que traz consigo nuances sofisticadas, reveladas em artigo de pesquisadores japoneses publicado na prestigiosa revista Accounts of Chemical Research. Fruto de 30 anos de investigações, a narrativa mostra os processos químicos e físicos associados à confecção artesanal de jarros da região de Bizen, província de Okayama, no Japão.

A origem da técnica foi copiada de artesanato da península da Coréia, e expressa, na sua essência, dois conceitos básicos: wabi (imagem de riqueza e beleza na simplicidade e pobreza) e sabi (senso estético de solidão), criados pelo mestre Sen no Rikyu (1522-1591). O artesanato de Bizen é um dos mais populares do Japão, e tem como base o emprego de argila e calor. O artista deve dominar a utilização tanto de um como de outro, de maneira a criar peças cerâmicas com diferentes nuances de cores: vermelho, laranja, púrpura, amarelo e preto, sem a utilização de tintas. Uma das tonalidades mais apreciadas do artesanato de Bizen é o vermelho-alaranjado, chamada de hidasuki. Esta coloração foi descoberta acidentalmente quando do uso de palha de arroz na separação dos jarros quando estes são levados ao forno. A palha de arroz, inicialmente utilizada para separar os jarros e não deixá-los grudar uns nos outros, promove o surgimento da cor hidasuki na superfície da argila.

Os artesãos que descobriram por acaso o hidasuki observaram que dois fatores influenciam na tonalidade da cor: a qualidade da argila e da palha de arroz utilizadas. A argila empregada na confecção destas peças deve necessariamente ser de plantações de arroz da região de Bizen – daí o nome – e apresenta na sua composição SiO2, TiO2, Al2O3, Fe2O3, CaO, MgO, MnO, K2O, Na2O e P2O5. A palha de arroz utilizada na confecção das porcelanas de Bizen é rico em potássio, o qual é reduzido a K2O na presença de cristobalita (SiO2) em forno. O surgimento da cor hidasuki se deve à presença de hematita na argila. A coloração das partículas de hematita muda de acordo com seu tamanho – pequenas partículas de coloração vermelha a partículas grandes, pretas. O aquecimento da hematita a temperaturas acima de 800 oC leva à agregação e crescimento dos cristais.

Sem a palha de arroz a cerâmica de Bizen não adquire a coloração hidasuki. Como ilustrado na figura abaixo, os autores japoneses prepararam pastilhas de argilas de Bizen de diferentes maneiras. Na figura (a) é mostrada uma pastilha feita de argila de Bizen sem arroz, e contém quartzo, cristobalita e mulita [(Al,Fe)6Si2O13, com a razão Al/Fe de aproximadamente 9/1]. A pastilha (b) foi feita na presença de palha de arroz, porém foi rapidamente resfriada, levando à formação de uma superfície vitrificada. As pastilhas (c) e (d) foram preparadas com argila de Bizen e palha de arroz, mas resfriadas lentamente. Medidas por difratometria de raios-X, microscopia eletrônica de varredura, microscopia de transmissão de elétrons e difratometria de elétrons permitiram os autores japoneses verificar que o resfriamento lento das peças de cerâmica leva a um aumento da concentração de hematita cristalizada de diferentes formas.

As análises indicaram que a argila preparada sem palha de arroz apresenta cristais de mulita na forma de agulhas [figura (a), a seguir]. Já a pastilha obtida por resfriamento rápido apresenta grandes cristais planos (b), que podem se tornar hexagonais na presença de Si, Ca, Mg e Na. Quando preparada com arroz e deixada a resfriar lentamente, as pastilhas formadas apresentam grandes cristais esféricos de corundum (óxido de alumínio, Al2O3) sobre os quais estão cristais escuros de hematita (c) e (d). Análises refinadas por microscopia de transmissão de elétrons destes cristais mostram cristais de corundum de aproximadamente 1,5 µm coberto de cristais de hematita de 0,5 µm [fotografia (a), depois do conjunto (a)-(d)] A fotografia (d) indica estruturas cristalinas marcadas C+H, com uma composição “sanduíche” alfa-Fe2O3/alfa-Al2O3/alfa-Fe2O3. Os autores indicam que o mecanismo de formação da coloração hidasuki é o seguinte: primeiro, uma reação dos componentes da argila de Bizen com o potássio presente na palha de arroz a 1250 °C resulta na formação de duas fases: uma líquida – SiO2 – e corundum, sólida (Al2O3). Durante o processo de resfriamento, os cristais de hematita crescem sobre os cristais de corundum. O problema é o oxigênio.

O teor de oxigênio durante o processo de preparação da porcelana de Bizen também é crítico. Os pesquisadores japoneses prepararam diferentes pastilhas de argila a 1250 °C, sob diferentes atmosferas: (a) atmosfera de N2 (nitrogênio), livre de O2; (b) com uma atmosfera composta de 99% de N2 e 1% de O2; (c) 98% N2 e 2% O2; (d) 95% N2, 5% O2. Como é possível ver, a coloração das pastilhas muda bastante de acordo com a composição de gases utilizada na sua preparação.

A presença de fósforo (na forma de P2O5) e carbono (das cinzas da palha de arroz) também influencia na coloração da cerâmica obtida. A presença de fósforo leva à formação de schreibersita (Fe3P). Já a presença de car
bono leva à formação de grafite. Ambos participam na coloração final da peça de cerâmica preparada. As peças de cerâmica mais claras são ricas em uma forma de hematita denominada de epsilon-Fe2O3, que forma cristais perpendiculares à superfície de mulita onde estão aderidos (figuras a, b e c, a seguir). Esta forma de hematita, epsilon-Fe2O3, muda sua forma cristalina de acordo com a pressão parcial de oxigênio (O2) na atmosfera em que os cristais são formados, e é responsável pela coloração de tom alaranjado das peças de cerâmica.

O trabalho dos autores japoneses traz à luz fatores químicos e físicos que determinam a composição de materiais argilosos utilizados na preparação de cerâmicas, material extremamente versátil utilizado para os mais diversos fins. Surpreendente é a tecnologia desenvolvida pelos artesãos japoneses durante séculos de maneira intuitiva e empírica. A principal motivação para a criação das peças de cerâmica de Bizen é estética – pura beleza.

Referência

ResearchBlogging.orgKusano, Y., Fukuhara, M., Takada, J., Doi, A., Ikeda, Y., & Takano, M. (2010). Science in the Art of the Master Bizen Potter Accounts of Chemical Research DOI: 10.1021/ar9001872

Nota: a utilização de figuras é autorizada pela American Chemical Society (veja aqui).

Quanto vale uma idéia?

Você publicaria sua proposta de projeto científico em uma revista? Você considera tal possibilidade viável?

O editor Shu-Kun Lin, do sistema MDPI de revistas de acesso aberto, acaba de lançar a revista Challenges, que terá por objetivo a publicação de projetos de pesquisas e idéias inovadoras. É, no mínimo, uma concepção bastante diferente do que pode ser publicado em uma revista científica.

Por detrás de uma proposta de projeto deve estar uma idéia, bem fundamentada. E ter idéias novas, construídas em bases científicas, não é simples. Bem pelo contrário – não são todos os dias que se têm boas idéias. Muitas vezes são difíceis de serem encontradas.

Algumas das melhores idéias científicas já propostas foram escolhidas por pesquisadores da Bell Laboratories, e demonstram o poder criativo de pesquisadores natos ou muito experientes na concepção de sistemas que literalmente transformaram o mundo.

1. A telefonia: A. Graham Bell, 1876.
2. A câmera para captura de movimento: Thomas Edison, 1897.
3. Sistemas de telecomunicações G. Marconi, 1897 e N. Tesla, 1901.
4. Sistemas de televisão: P. T. Farnsworth, 1930, V. K. Zworykin, 1935 e 1938.
5. Amplificadores de Semicondutores: W. B. Shockley, 1950.
6. Transistores: J. Bardeen e W. H. Brattain, 1950.
7. Masers e sistemas de comunicação por maser: A. L. Schaklow e C. H. Townes, 1960.
8. Detecção de câncer por imagens de ressonância magnética: R. D. Damadian, 1974.
9. Fibras óticas: R. D. Maurer e P. C. Schultz, 1972; D. B. Keck, 1973; W. W. Wolf, 1976.
10. Redes inteligentes: R. P. Weber, 1980.
11. O sistema ALOHA – INTERNET: 1968, início.

Com exceção da internet, que não foi patenteada, os anos dos 10 outros ítens se referem aos anos de publicação das patentes.

A publicação de projetos de pesquisa (inéditos?) é uma aventura que considero arriscada. Muitas vezes uma idéia leva à outra. Um projeto científico inicial desemboca em outro, que leva a outro, ou muitos outros. Publicar uma idéia pode ser arriscado. Pois nunca se sabe o real valor de uma idéia. Hoje, pode não ter valor nenhum. Mas amanhã…

Referência

ResearchBlogging.orgLin, S. (2010). Challenges – An Open Access Scientific Journal for Research Proposals and Open Problems Challenges, 1 (1), 1-2 DOI: 10.3390/challe1010001

Corais lá do fundo

A história dos corais das profundezas dos oceanos aos poucos começa a ser melhor conhecida. Até alguns anos atrás acreditava-se que estes animais das profundezas, parte do grupo dos cnidários (aos quais pertencem também as anêmonas-do-mar, os hidrozoários e águas-vivas, ou medusas), tinham evolutivamente se originado a partir de espécies de águas rasas. Que nada. Um grande projeto chamado de “Árvore da Vida dos Cnidários” tem investigado os corais de águas profundas desde o início dos anos 90. Principalmente corais pretos e octocorais (corais com 8 tentáculos). Resultados de análises do DNA destes animais indicaram que os corais de águas profundas apresentam um ancestral comum, também de águas profundas. Porém nem todos. Alguns realmente se originaram de espécies de águas rasas, e que migraram para águas profundas milhões de anos atrás.

O mais interessante é que os especialistas no assunto também acreditavam que corais coloniais, constituídos de vários indivíduos, fossem originários de corais solitários (individuais). Tal premissa também mostrou não ser verdadeira. A análise do DNA de 97 espécies de corais solitários indicou que vários corais solitários são descendentes mais próximos de corais coloniais do que de corais solitários de águas profundas. Também pelo menos duas linhagens de corais solitários de águas profundas derivam de corais coloniais. Os dados colhidos pelos pesquisadores indicam uma verdadeira suruba evolutiva, de formas coloniais originando formas solitárias, e vice-versa. E os corais lá do fundo tiveram uma grande participação nesta história.
Referência

ResearchBlogging.orgPennisi, E. (2010). In the Deep Blue Sea Science, 327 (5965), 519-519 DOI: 10.1126/science.327.5965.519

Com ornitorrincos machos não se brinca

Esta postagem é quase para “iniciados” em química.

Ornitorrinco é um bicho muito esquisito. É um mamífero semi-aquático, que vive apenas na Oceania (Austrália e Tasmânia). O verbete da Wikipédia sobre este animal está bastante completo, e diz que

O macho tem esporões nos tornozelos, que produzem um coquetel venenoso, composto principalmente por proteínas do tipo defensinas, que são únicas do ornitorrinco. Embora poderoso o suficiente para matar pequenos animais, o veneno não é letal para os humanos, mas pode causar uma dor martirizante e levar à incapacidade. Como somente os machos produzem veneno e a produção aumenta durante o período de acasalamento, é teorizado que ele seja usado como arma defensiva para afirmar dominância durante esse período.

O que não é dito pela Wikipédia é que o venoma do ornitorrinco é constituído não somente de peptídeos do tipo defensinas, mas também de vários outros tipos de peptídeos (detalhe: peptídios são pequenas proteínas). O curioso é que os genes que regulam a síntese destes peptídeos são muito similares a genes responsáveis pela regulação da síntese de peptídios análogos em répteis.

Recentemente o grupo de Daisuke Uemura, um dos grandes feras da química de produtos naturais, descobriu mais onze peptídeos do venoma do ornitorrinco. Estas substâncias regulam o fluxo de cálcio em células de neuroblastoma humano. O peptídeo 1, com apenas 7 aminoácidos, foi isolado como sendo o componente majoritário do venoma (concentração no venoma: 200 ng/uL). As estruturas deste e dos 10 outros peptídios foram estabelecidas por análises de espectrometria de massas do tipo MALDI-TOF/TOF (Matrix Assisted Laser Desorption Ionization-Timeof-Flight/Time-of-Flight; Ionização por dessorpção a laser assistida por matriz-tempo-de-vôo/tempo-de-vôo), e mostraram ser coincidentes com fragmentos de um peptídeo precursor (denominado OvCNP), cuja estrutura foi predita a partir da análise do genoma do ornitorrinco.

Detalhe: o peptídio 1 é bastante polar, pois apresenta um aminoácido do tipo arginina (o primeiro, de cima para baixo), além de duas histidinas (o quinto e o sétimo aminoácidos na cadeia). Além disso, deve apresentar alguma rigidez conformacional devido à presença das duas prolinas.

O grupo de Uemura não é fraco: todos os peptídeos isolados do ornitorrinco foram sintetizados para terem suas estruturas confirmadas. Os peptídios do tipo CNP são hormônios vasorrelaxantes, de ampla distribuição no endotélio, no miocárdio, nos tratos gastrintestinais e genitourinários de humanos. Embora os autores tenham testado o peptídio 1 em diversos modelos de testes farmacológicos, ainda não conseguiram desvendar seu mecanismo de ação.

Isolar e manipular 200 ng de uma substância não é brincadeira. É ciência de primeira. Não se vê a amostra isolada. Apenas sabe-se que ela existe quando a mesma é analisada pelas técnicas de espectroscopia extremamente sofisticadas, hoje disponíveis.

Referência

ResearchBlogging.orgKita, M., Black, D., Ohno, O., Yamada, K., Kigoshi, H., & Uemura, D. (2009). Duck-Billed Platypus Venom Peptides Induce Ca Influx in Neuroblastoma Cells
Journal of the American Chemical Society, 131 (50), 18038-18039 DOI: 10.1021/ja908148z

Antibióticos e seleção natural

Os antibióticos são substâncias químicas que inibem o desenvolvimento de microrganismos (bactérias e fungos). Muitos antibióticos são naturais – ou seja, são produzidos naturalmente, por diversos organismos vivos: plantas, animais e microrganismos. Vários antibióticos são produtos do metabolismo secundário de organismos vivos. O metabolismo secundário é constituído por vias metabólicas que são particulares a indivíduos de uma determinada espécie, ou gênero. Sendo assim, organismos “parentes” costumam produzir substâncias parecidas. Estas substâncias podem exercer as mais variadas funções, dentre as quais de inibir o desenvolvimento de microrganismos.

Os antibióticos naturais são alguns dos mais importantes antibióticos utilizados para o tratamento de infecções bacterianas ou fúngicas. Alguns exemplos de antibióticos naturais são as penicilinas (de fungos do gênero Penicillium), os aminoglicosídios como a estreptomicina (produzidos por bactérias do gênero Streptomyces) e os antibióticos poliaromáticos como as antraciclinas e tetraciclinas (produzidos principalmente por fungos e também por bactérias). Vários antibióticos são importantes não somente para tratar doenças humanas, mas também (e infelizmente) para a criação de gado, aves e porcos para o consumo humano.

Mais da metade de todos os antibióticos conhecidos são produzidos por bactérias do solo, e estas substâncias exercem funções extremamente importantes na manutenção da população de microrganismos. Associados à presença de antibióticos, muitos microrganismos desenvolveram resistência a estas substâncias, de maneira a poderem sobreviver na presença destas. Ou seja, no ambiente existem tanto microrganismos sensíveis como resistentes a antibióticos.

O surgimento de rotas metabólicas que levaram à formação de determinados antibióticos é fruto de pressões seletivas ao longo da evolução. Além disso, a persistência de uma rota metabólica em um determinado microrganismo deve ser decorrente de seus produtos conferirem algum tipo de vantagem adaptativa. No entanto, sabe-se que muitos antibióticos não são persistentes no ambiente – sofrem mudanças, em decorrência de estarem expostos a fatores como variação de pH, irradiação UV e até mesmo degradação por outros microrganismos.

Estudos recentes demonstraram que a tetraciclina (Tet) sofre mudanças estruturais no ambiente, e que os produtos de transformação da tetraciclina são mais estáveis (mais persistentes) no ambiente. Tais transformações são extremamente importantes, pois vários microrganismos são resistentes à tetraciclina, mas não são resistentes à seus produtos de transformação: a epitetraciclina (ETC), a anidrotetraciclina (ATC) e a epianidrotetraciclina (EATC).

Observou-se que os produtos de degradação da tetraciclina regulam os níveis populacionais de bactérias resistentes à tetraciclina. Enquanto a tetraciclina atua selecionando bactérias que adquirem resistência à própria tetraciclina, os produtos de transformação ETC, ATC e EATC atuam selecionando bactérias para se tornarem sensíveis à tetraciclina. O acúmulo de ETC, ATC e EATC também favorece o desaparecimento de linhagens bacterianas resistentes. E mais: enquanto que a seleção inicial em favor da resistência é de curta duração, a seleção subseqüente em favor de linhagens sensíveis é de longa duração.

Outro fator que influencia o surgimento e permanência de linhagens resistentes ou sensíveis a antibióticos no ambiente é a concentração dos antibióticos ali presentes. A diluição de tetraciclina e de seus produtos afeta diretamente o surgimento de resistência à tetraciclina. Em ambientes com forte ação humana, o desaparecimento da tetraciclina é devido à diluição muito mais do que à sua transformação em ETC, ATC ou EATC. Não há tempo para que a tetraciclina, que induz o surgimento de espécies resistentes, seja transformada nos seus produtos, que induzem o surgimento de espécies sensíveis. Sendo assim, nestes ambientes (de forte ação humana) existe uma maior propensão para que existam maiores concentrações de bactérias resistentes à tetraciclina.

Também se observou que a somatória das ações antibacterianas entre tetraciclina, ATC e EATC é aditiva. Prevalece a ação daquela(s) substância(s) que se encontra(m) em maior concentração.

A pesquisa realizada indica que, no ambiente natural, a ação de antibióticos é extremamente complexa. Os antibióticos originalmente produzidos por microrganismos sofrem vários processos de mudanças, em diferentes taxas de transformação, originando misturas complexas que exercem diferentes padrões de ação antibiótica. Um determinado antibiótico produzido por um determinado microrganismo resulta de um longo processo de seleção natural para sua biossíntese. Porém a persistência da rota de produção deste antibiótico será também função dos produtos de degradação do mesmo, que também conferem vantagens adaptativas ao microrganismo que produz o antibiótico original.

No caso da tetraciclina, um de seus produtos de transformação, a ATC, é também um dos precursores para formar a própria tetraciclina!
Verifica-se, assim, que a ocorrência de linhagens microbianas que produzem antibióticos é muito mais favorecida no ambiente natural do que quando isolada em laboratório. Em laboratório não existe competição entre linhagens de bactérias e fungos (pois estão todas isoladas e puras), o pH do meio  e a luminosidade são cuidadosamente controlados. Logo, nestas condições os microrganismos não são estimulados a produzirem antibióticos.

O estudo realizado se revela extremamente importante não só para melhor se entender os processos de seleção natural de microrganismos, mas também os fatores que regulam a produção de antibióticos, hoje essenciais para a sociedade.

Referência
ResearchBlogging.orgPalmer, A., Angelino, E., & Kishony, R. (2010). Chemical decay of an antibiotic inverts selection for resistance Nature Chemical Biology, 6 (2), 105-107 DOI: 10.1038/nchembio.289

A química medicinal de cosméticos egípcios

O uso de maquiagem no antigo Egito é bem conhecido, tendo sido retratado em mulheres nas obras artísticas, como pinturas e estátuas. Razões estéticas, religiosas e propriedades terapêuticas justificavam o uso de diferentes tipos de cosméticos, que eram particularmente importantes em cerimônias religiosas. Relatos indicam que a rainha Nefertiti utilizava pinturas faciais para ser protegida por Horus e Ra contra diversas doenças.

A análise por microscopia eletrônica de varredura e por difração de raios-X quantitativa de tinturas utilizadas em cosméticos, obtidos a partir de peças do Museu Louvre (Paris), mostrou que a formulação de tais tinturas era baseada em sais de chumbo: galena (PbS, sulfeto de chumbo) para coloração escura e também na formulação de gloss para os lábios, além de três tinturas brancas à base de cerusita (PbCO3, carbonato de chumbo), fosgenita (Pb2Cl2CO3) e laurionita ([Pb(OH)Cl].

Segundo pesquisadores franceses, a ocorrência de substâncias à base de chumbo no Egito antigo é surpreendente, uma vez que este metal é pouco abundante naquela região. Porém, textos de autores romanos do século I d.C., como Plínio, o Velho, e Dioscórides, indicam que tais substâncias eram SINTETIZADAS pelos egípcios por suas propriedades medicinais. Por exemplo, Dioscórides afirma que “tais substâncias são bons remédios para os olhos e cicatrizes, para faces enrugadas e com manchas”. O mesmo autor forneceu descrições detalhadas de como tais substâncias eram sintetizadas em quantidade, uma vez que parte considerável da população as utilizava.

O processo de síntese era delicado, uma vez que devia ser realizado com ajustes de pH para evitar que substâncias secundárias (indesejadas) se formassem. Os egípcios agitavam energicamente óxido de chumbo, PbO, na presença de sal de cozinha bruto (NaCl), às vezes na presença de carbonatos de sódio (Na2CO3 ou NaHCO3) em água morna:

A questão é como os egípcios mantinham o pH neutro (em 7,0) para evitar a formação de hidróxidos de chumbo, uma vez que hidróxido de sódio (alcalino) é formado durante a reação. Uma alternativa seria que o sobrenadante líquido fosse continuamente retirado da reação, ao mesmo tempo em que se adicionava água fresca e mais cloreto de sódio. A reação era realizada durante semanas, quando se formava um precipitado branco. Tais reações foram recentemente (1999 e 2003) realizadas segundo os procedimentos descritos por Dioscórides, e foram obtidos os sais de laurionita e fosgenita.

Tais preparados já eram utilizados pelos egípcios no século 16 a.C., e continuaram a ser utilizados até o império romano, uma vez que os egípcios tinham fama de serem famosos por terem medicamentos para o tratamento de problemas nos olhos (como inflamações e conjuntivites). Tais problemas oculares eram freqüentes durante as cheias do Nilo. Para o tratamento, os egípcios desenvolveram tratamentos como colírios e emplastros que também serviam como cosméticos.

Atualmente a utilização de medicamentos a base de chumbo é totalmente proscrita, devido à toxidez de compostos de chumbo. Na idade média, vários alquimistas apresentaram problemas como saturnismo, doenças neurológicas decorrentes da intoxicação por chumbo. O nome “saturnismo” vem justamente de chumbo, elemento associado ao planeta Saturno, que não tinha muito boa fama na idade média. Um dia cinzento, carregado de nuvens, pode ser chamado de um dia “plúmbeo”, em alusão ao chumbo (PlumbusPlumbum, daí sua sigla, Pb). O fato é que o íon Pb2+ reage com vários tipos diferentes de moléculas biológicas, como co-fatores e proteínas, que naturalmente estão associadas a outros íons divalentes: Ca2+, Zn2+, Fe2+, Cu2+ e Mg2+. Uma vez associado a estas biomoléculas o íon Pb2+ altera suas funções, e forma espécies pouco solúveis em água. Esta é possivelmente a origem da toxidez de substâncias com chumbo.

O íon Pb2+ apresenta raio atômico e estados de oxidação idênticos aos do íon cálcio (Ca2+), um íon extremamente importante em vários processos celulares e fisiológicos. Como o Ca2+ atua ativando processos celulares de óxido-redução, os pesquisadores franceses levantaram a hipótese de que o íon Pb2+ poderia atuar de maneira muito similar, estimulando processos imunológicos quando aplicado em baixas concentrações. Uma vez que os sais utilizados pelos egípcios são muito insolúveis em água, deveriam estar em concentração muito baixa quando em contato com fluidos corporais (nos olhos e em feridas).

Desta forma, o grupo francês decidiu investigar possíveis respostas celulares promovidas pela presença de concentrações muito pequenas de Pb2+ (sub-micromolares), utilizando amperometria com ultramicroeletrodos de fibra de carbono com platina. Vários experimentos permitiram observar que quantidades de chumbo em concentrações entre 0,2 e 0,4 uM levaram à formação de NO neutro. Esta substância atua como mensageiro no sistema imunológico. Indica a presença de infecções para macrófagos (células do sistema imunológico), aumenta o fluxo sanguíneo, e promove a vascularização capilar (de vasos sanguíneos muito pequenos). Ou seja, na presença de sais de chumbo olhos tratados com estas substâncias estão muito menos propensos a sofrer infecções.

Assim, quando os egípcios utilizavam tais tinturas cosméticas nos olhos, garantiam a proteção de Horus e Ra contra possíveis doenças. Embora atualmente se conheçam os reais motivos de tais substâncias atuarem de forma eficaz, nada tira o mérito dos egípcios de prepararem tais substâncias com extremo cuidado e de utilizar as mesmas de forma adequada. Os antigos egípcios eram investigadores natos, químicos de mão cheia e médicos que faziam uso de conhecimento empírico. Uma bela história.

A referência completa deste trabalho é a seguinte: I. Tapsoba, S. Arbault, P. Walter e C. Amatore, Finding Out Egyptian Gods’ Secret Using Analytical Chemistry: Biomedical Properties of Egyptian Black Makeup Revealed by Amperometry at Single Cells, Analitical Chemistry, 2010, 82 (2), pp 457–460 (DOI: 10.1021/ac902348g).

2010 – o ano em que faremos contato com a biodiversidade

Tive a oportunidade de estar presente à abertura oficial do Ano Internacional da Biodiversidade em Curitiba, dia 7 de janeiro. O tema não poderia ser mais apropriado, tendo em vista os debates sobre o aquecimento global e suas conseqüências de Copenhagen, em dezembro último. Se por um lado os interesses econômicos falam alto contra quaisquer medidas efetivas que minimizem os (ainda que supostos, ou potenciais) efeitos do aquecimento global, por outro lado, reportagem publicada hoje no jornal Folha de São Paulo on-line, diz que

Com 150 espécies extintas todo dia, 2010 discute biodiversidade – JULIANA MAYA, da Agência Brasil, em Brasília

Apesar de 2010 ser o Ano Internacional da Biodiversidade, não há muito o que comemorar. Pesquisadores estimam que 150 espécies sejam extintas todos os dias no mundo. Segundo o secretário da Convenção sobre a Diversidade Biológica da ONU, Oliver Hillel, o lançamento das atividades pelas Nações Unidas neste domingo (10), em Berlim, na Alemanha, e no Brasil, também na última semana, em Curitiba, servem para colocar o tema no foco das discussões. Ele reforça que, junto com a questão das mudanças climáticas, a perda da biodiversidade é o maior desafio para a humanidade atualmente. Por isso, durante este ano, serão promovidas atividades em todo o mundo para conscientizar a população.

“Estamos perdendo essa biodiversidade a uma taxa mil vezes maior do que a taxa normal na história da terra”, diz Hillel. “Então, de acordo com as previsões dos cientistas, até 2030 poderemos estar com 75% das espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção. Hoje esse número é de 36%.”

Hillel faz um alerta sobre a estimativa de que 150 espécies sejam extintas todos os dias no mundo. E lembra que, dos objetivos traçados por vários países em 2002, durante o lançamento da Convenção da Biodiversidade, poucos foram cumpridos.

“Um que foi cumprido e é bom, porque nos encoraja, é a proteção legal em unidades de conservação de 10% dos ecossistemas da terra. O Brasil, por exemplo, é um líder”, ressalta ele, explicando que o país estaria com 16% da terra em categorias de proteção, nas três esferas do governo. O mundo inteiro, em termos de ambiente terrestre, estaria com por volta de 12%.

O diretor do Departamento de Conservação da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, Bráulio Dias, afirma que, no Brasil, um calendário de eventos deverá ser divulgado nesta semana pelo ministério para debater o tema. “É importante neste ano ampliar a discussão com a sociedade pra refletir sobre a importância da biodiversidade”, salienta o diretor.

Nesta mesma linha, o jornal O Estado de São Paulo on-line trouxe outra notícia hoje.

Berlim – A chanceler alemã Angela Merkel fez um apelo aos países industrializados e às nações em desenvolvimento para investir mais em proteção da vida selvagem e disse que as Nações Unidas deveriam criar um órgão para reiterar os argumentos científicos em prol do salvamento de espécies da flora e da fauna.

Os pesquisadores dizem que preservar a natureza é crucial para combater as mudanças climáticas e avisam que a atividade antrópica está acelerando a extinção das espécies. Eles também argumentam que o estilo de vida das pessoas depende de recursos naturais valiosos.

As taxas de extinção aumentaram em mil vezes o seu ritmo natural por conta das ações humanas, dizem os estudos. De acordo com os cenários traçados pela ONU, três espécies desaparecem por hora no mundo. “Preservar a diversidade biológica é tão importante quanto proteger o planeta das alterações climáticas”, disse Merkel na segunda-feira (11.01) em um evento de lançamento do Ano da Biodiversidade das Nações Unidas. “Precisamos de uma mudança global. Aqui, agora, imediatamente – não em algum momento futuro”, afirmou ela. “Precisamos aproveitar este ano para relançar esta idéia”. A Alemanha é a sede da Convenção de Biodiversidade da ONU. Merkel disse que os países deveriam investir mais dinheiro na proteção das espécies e criar uma rede de áreas protegidas.

Ela também sugeriu o estabelecimento de um novo organismo para lidar com a ciência da biodiversidade, parecido com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. “Seria interessante ter uma interface entre os políticos e os cientistas para repassar e integrar conhecimento, como o IPCC faz com a questão da mudança climática”, disse ela, explicando que um organismo como esse poderia ajudar na instituição de políticas públicas.

Achim Steiner, director executivo do Programa Ambiental das Nações Unidas concordou, completando que o esta é a hora de fazer algo semelhante ao IPCC no âmbito da biodiversidade.

Mais de um quinto de plantas e animais correm risco de extinção, de acordo com os especialistas, e as nações perderam a oportunidade de frear esse processo na Convenção de Biodiversidade (CBD) de 2002.

Ahmed Djoghlaf, secretário executivo da CBD, disse que é essencial estabelecer novas metas este ano. “Nós estabelecemos uma meta e não a cumprimos… temos de aprender a lição para garantir que, em 2020, nós não estejamos nos lamentando novamente por termos perdido a oportunidade”, reflete.

“A estratégia não deve se limitar ao estabelecimento de uma meta, mas também deve contemplar a implementação, o monitoramento e a evolução  de metas integradas em planejamentos  nacionais”, disse Djoghlaf.

No evento de Curitiba, assisti às apresentações públicas do prefeito de Curitiba Beto Richa; da Vice-Ministra do Meio Ambiente, Sra. Izabella Teixeira; do Chefe da Missão Nave Oceanográfica SEDNA IV, Jean Lemire; de Eric Blencowe, representante do Governo do Reino Unido no evento; e do Secretário Executivo da Convenção de Diversidade Biológica, Dr. Ahmed Djoghlaf.

Richa destacou, de maneira extremamente clara e objetiva, a importância do tema e do destaque da cidade de Curitiba no cenário nacional e internacional de urbaização e conservação da biodiversidade. Atualmente Curitiba abriga 34 parques e bosques, num total de 2 milhões de metros quadrados de área verde. A Sra. Teixeira fez uma longa apresentação e explanação das conquistas do governo federal na área de conservação ambiental no Brasil. Já o Sr. Lemire fez uma apresentação piegas e cheia de efeitos dramáticos sobre sua expedição à Antártida (ou Antártica?), a qual foi inclusive ironicamente comentada pelo representante inglês, Eric Blencowe. Deste, outra apresentação clara, suscinta e objetiva sobre a importância do tema e o apoio que o governo do Reino Unido oferecerá, quando da celebração dos 350 anos da Royal Society neste ano. Por fim, as palavras do Dr. Djoghlaf ressaltam que a relevância do tema não deve se limitar às discussões e aos eventos, mas resultar em ações efetivas de conservação da biodiversidade e diminuição de sua taxa de desaparecimento.

Será mais um ano de muitos eventos, em todo o mundo. A programação completa pode ser visualizada na página da Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas. Todas as iniciativas são excelentes, como não pode
riam deixar de ser.

Mas em que tais eventos resultarão? Espero, sinceramente, que não em mais um fiasco como o da COP-15. Muito há para se fazer, e é possível de ser feito.

Férias culturais

Ler foi uma das atividades lazer de minhas férias de verão 2009-2010. Além do livro de Dawkins, O Maior Espetáculo da Terra, dois outros: Caim, de José Saramago, e Escritos Sobre Ciência e Religião, de Thomas Henry Huxley.

O livro de Huxley (1825-1895) é parte da Coleção Pequenos Frascos, editada pela Editora UNESP, e foi lançado em 2009. A introdução por Roberto de Andrade Martins, professor do Instituto de Física Gleb Wataghlin da UNICAMP e coordenador do grupo de História e Teoria da Ciência, situa Huxley em seu momento histórico e ilustra como sua formação intelectual foi influenciada por pensadores da época, como Herbert Spencer e Robert Chambers. Ficou famoso por seu debate com o bispo anglicano Samuel Wilberforce, quando defendeu a unhas e dentes a teoria da evolução de Darwin. Foi um importante divulgador da ciência, defensor do ensino de qualidade e da importância da educação para a formação cidadã. Proferiu inúmeras conferências sobre este tema ao longo de sua vida, foi membro da London School Board e da Royal Comission on Scientific Instruction and the Advancement of Science, reitor da Universidade de Aberdeen, diretor do South London Working Man’s College, presidente da Geological Society, da British Association for the Advnacement of Science, e da Royal Society.
Os três textos de Huxley incluídos no livro são conferências intituladas Sobre a conveniência de se aperfeiçoar o conhecimento natural (1866), O natural e o sobrenatural (1892) e Ciência e cultura (1880). Apesar de seu estilo um tanto rebuscado, Huxley é de uma clareza e atualidade impressionantes. Argumenta em favor do conhecimento da ciência de forma contundente, e ilustra com fatos, como a melhoria das condições de saúde dos londrinos decorrente da mudança do estilo de vida das pessoas em função de sua educação, a importância do conhecimento natural para o desenvolvimento social. Do primeiro texto destaco as seguintes passagens:

“(…) o aperfeiçoamento do conhecimento natural (…) não apenas conferiu benefícios práticos ao homem como, ao assim fazê-lo, ensejou uma revolução em suas concepções do universo e de si próprio, e alterou profundamente seus modos de pensar e sua idéia de certo e errado. Sustento que o conhecimento natural, ao procurar satisfazer às demandas naturais, encontrou as idéias que poderiam por si próprias responder a anseios espirituais. Sustento que o conhecimento natural, ao procurar erigir as leis do bem-estar, foi levado à descoberta das leis de conduta e a estabelecer os fundamentos de uma nova moralidade.” (p. 43-44)

Se os astrônomos descobriram que a Terra não é o centro do universo, mas um grão de poeira secundário, os naturalistas concluíram que o homem não é o centro do mundo vivente, mas uma entre miríades de outras variantes de vida.” (p. 52)

Estas e outras passagens apresentam um Huxley ardoroso defensor do método científico, do ceticismo e do espírito investigador para se conhecer o mundo em que vivemos, ao mesmo tempo inquiridor sobre idéias pré-concebidas. E vislumbra um futuro otimista para a humanidade, sustentado pelo conhecimento natural.

No segundo texto, Huxley questiona os preceitos religiosos para explicar o mundo natural a partir da bíblia. Afirma, sem dó nem piedade, que “(…) as várias religiões são, em grande medida, mutuamente excludentes, e seus seguidores exultam em acusar uns aos outros”. (p. 63) e ainda que “(…) parece estabelecida uma relação inversa entre o conhecimento sobrenatural e o natural. Enquanto o último tem-se expandido, avançado em precisão e confiabilidade, o primeiro tem minguado, cada vez mais vago e discutível (…)” (p. 64). Questiona duramente o dogma religioso, de todas as correntes cristãs, para explicar qualquer aspecto da natureza ou justificar pretensos princípios morais. Manifesta sua opinião sobre a origem do estado laico: “Foram as iniqüidades e não as irracionalidades do sistema papal que proveram base à revolta laica, revolta esta que era fundamentalmente uma tentativa de se libertar da intolerável opressão de certas decorrências práticas de um sobrenaturalismo que todos, em princípio, admitiam.” (p. 70-71). Demonstra, não somente neste texto, mas também no precedente, citando fatos históricos, como o movimento renascentista e o subsequente desenvolvimento da ciência “(…) afrouxaram amarras tradicionais e enfrequeceram o jugo do sobrenaturalismo medieval.” (p. 72). A ponto de a própria igreja e seus defensores “(…) lançar mão de ridículas e fraudulentas teorias para dar conta dos fenômenos religiosos (…)” e ainda de justificar as iniqüidades deísticas e absurdos bíblicos ao “elemento humano” quando da elaboração do livro sagrado. Consequentemente, a própria igreja, em inúmeros momentos de sua história, passa por contradições internas, que levam à suas inúmeras divisões (anglicanos, batistas, luteranos, católicos, etc), pois não consegue mais sustentar-se. Finalmente, as diversas variantes cristãs passam a adotar posturas ortodoxas, não em concordância com a bíblia, mas com alguns de seus livros, pois, segundo Huxley “quem define o cânon, define o credo”.

Huxley demonstra ter estudado a bíblia com muito cuidado e atenção, apresentando questionamentos longos e duros demais para que tenham resposta. Às afirmações dos sacerdotes da época, que argumentavam serem lendários e a-históricos os primeiros nove livros da bíblia, pergunta: “(…) quanto da precisão histórica do restante pode ser garantido? O que há de mais distinto na história do Êxodo que na do Dilúvio para que se acredite nela? Se Deus não perambulou pelo Jardim do Éden, como podemos estar certos de que falou no Sinai?” Huxley defende abertamente a posição que somente o agnosticismo e uma educação naturalista pode contribuir efetivamente para a compreensão do mundo que nos rodeia.

O terceiro texto é a conferência proferida quando da inauguração do Mason College, atual Universidade de Birmingham. Huxley discute sobre a importância de uma educação moderna e de um programa atual (à época) para a formação de cientistas e profissionais. Josiah Mason, idealizador e criador do Mason College, estabeleceu três premissas para sua faculdade: “a) não se permite que partidos políticos os influenciem; b) a teologia também é rigorosamente proscrita no recinto, e; c) é especificamente estabelecido que a faculdade não providenciará condições para ‘instrução e educação meramente literárias’.” (p. 119) Embora as duas primeiras possam ser perfeitamente compreensíveis, a terceira parece ser um tanto estranha. Mas Huxley não somente defende a proposta de Mason, como julga desnecessário o ensino de Latim e Grego para a formação do cientista, sendo mais adequado o ensino de línguas como alemão e francês. Ao questionamento de que o não aprendizado literário levaria à formação de um “mero especialista científico”, responde que a “instrução e educação meramente literárias é um evidente exemplo de tacanhice científica.” (p. 120) Porém, parece não levar em conta que uma formação complementar, “literária e científica”, poderia eventualmente conduzir a uma formação mais completa do pesquisador. Reforça sua posição quando assinala que “Cultura certamente significa algo totalmente distinto de aptidão para a aprendizagem ou para a técnica. Envolve a posse de um ideal e o hábito de estimar criticamente o valor das coisas tomando por base um padrão teórico. A cultura perfeita deve empregar uma completa teoria de vida, fundada sobre um claro conhecimento de suas possibilidades e limitações.

Leitura de férias

O Maior Espetáculo da Terra, de Richard Dawkins (Companhia das Letras, 2009), de quem já havia lido A Escalada do Monte Improvável, O Relojoeiro Cego e Deus – um delírio. Dawkins mais uma vez mostra sua lucidez e sua erudição em tratar ao mesmo tempo de assuntos tão diversos, interligados pela teoria da evolução de Darwin. Ele próprio diz que já foi definido como ultradarwinista, e assume que considera como sendo um elogio.

Além de seu conhecimento sobre o assunto, Dawkins é engraçado, irônico, por vezes sarcástico, mas sempre muito respeitoso com aqueles que não entendem, ou que simplesmente não querem entender, a teoria da evolução. Traz inúmeros exemplos de sua bagagem de conhecimento que constroem o livro que é fundamental para o bom entendimento da teoria de Darwin.

Não que outros livros também não o sejam. Sendo um assunto particularmente interessante, os livros (que li) de Dawkins são praticamente complementares uns aos outros. Fica evidente que o autor trata do assunto com a desenvoltura de quem leu e releu uma biblioteca sobre a teoria de evolução e assuntos correlatos.

Um professor que preza pelo bom aprendizado de seus alunos deve deixar muito claras suas intenções e os termos dos quais faz uso. Assim Dawkins inicia sua trajetória sobre O Maior Espetáculo da Terra, explicitamente sobre “teoria”, termo muitas vezes objeto de controvérsias, mas também sobre “fato”, “conjectura” e “teorema”. Caminha em seguida por apresentar as observações que levaram Darwin a elaborar sua teoria. E exemplos de macroevolução, alguns muito divertidos (como a dos caranguejos da espécie Heikea japonica, mencionados na fantástica série “Cosmos”, de Carl Sagan). Ressalta, ainda, a importância de experimentos bem elaborados que indicam claramente as evidências dos processos macroevolutivos.

Estive pensando em Luciano Huck e sua indignação quando teve seu Rolex roubado, quando li o capítulo “Relógios”, contumaz e implacável. Por melhor que fosse o Rolex de Huck, não seria capaz de indicar o tempo geológico das grandes transições do processo evolutivo. Geologia, dendrocronologia, decaimento radioativo, e mais adiante relógios moleculares, indicam uma concordância para a ocorrência de fósseis que dois Rolex dificilmente indicariam para uma mesma hora-minuto-segundo. Mesmo sir Arthur Conan Doyle, e seus personagens Holmes e Watson, dificilmente poderiam imaginar que detetives seriam úteis para fundamentar os argumentos de Dawkins. A lógica investigativa de crimes do passado é exatamente a mesma para se estabelecer a ocorrência de fósseis, entender a presença de órgãos vestigiais, investigar 45.000 gerações da bactéria Escherichia coli e mudanças dos padrões de coloração do peixinho Lebistes de acordo com o ambiente em que se encontra.

Há alguns anos tive uma conversa interessante com um colega mórmon. Tendo visitado a cidade de Salt Lake City, no estado de Utah (EUA), fiquei impressionado com a sede da igreja e o enorme anfiteatro mórmon. Comentei com ele minha visita, e o assunto rapidamente derivou para ciência e a teoria da evolução, à qual ele refutou dizendo que ainda existiam inúmeras lacunas, elos perdidos entre fósseis humanos, que contrariavam a lógica evolutiva. Perguntei para ele se já havia lido algum livro sobre a teoria da evolução. Obviamente ele me respondeu que não. Para aqueles que ainda acreditam em elos perdidos, lacunas, Dawkins explica que, na verdade, tais questionamentos não passam de quimeras. Quimeras também seriam as “formas de transição” entre os diversos grupos taxonômicos: “rãcacos”, “crocopatos”, “elefanzés”, “cangucerontes” e “bufaleões”. Também explica os inúmeros mal-entendidos comumente mencionados, muitas vezes até na mídia, sobre ancestralidade de grupos de animais, pois não descendemos de macacos, mas temos um ancestral comum. Confesso que não sabia que as aves não formam um grupo separado, mas são répteis (páginas 153 e 154). Exemplos de “continuidade anatômica” (termo inventado por mim) entre fósseis e formas atuais são amplamente citados, até mesmo Darwillus masillae, fóssil de primata datado de 47 milhões de anos encontrado na Alemanha (PLOS One, 19 de maio de 2009), anunciado como “a oitava maravilha do mundo, que finalmente confirmaria a teoria de Darwin”.

De animais para hominídeos e seu precursores, o autor dá uma aula sobre evolução das formas humanas. Com tantas evidências, fica difícil desacreditar o processo de transformação gradativa dos primatas. Só mesmo negando-se a ver os fósseis, como no hilário diálogo entre a Sra. Wendy Wright e Dawkins. Com tais evidências Dawkins reforça ainda mais com dados de epigênese (teoria do desenvolvimento de um organismo pela diferenciação progressiva de um todo inicialmente indiferenciado). Dawkins vai longe, e fundamenta os princípios da formação dos seres vivos nos princípios físico-químicos de comportamento da matéria. Devo “tirar meu chapéu” para o autor, pois a maioria de muitos biólogos (e químicos!) que conheço consideram bioquímica “um porre”! Mas Dawkins não se intimida, e mostra que tais princípios estabelecem o funcionamento das células, consideradas a “unidade básica” dos seres vivos.

Dali para a deriva dos continentes e separação das espécies, Dawkins questiona o porquê, Porquê, PORQUÊ dos marsupiais estarem todos na Austrália se tivessem saído da Arca de Noé, no monte Ararat. Da mesma forma, o porquê, Porquê, PORQUÊ de todos os animais da ordem Edentata (tatus, preguiças e tamanduás) terem migrado do monte Ararat direto para a América do Sul, sem deixar nenhum “parente” pelo caminho. Para explicar a razão da omissão de tais evidências por parte dos que contestam a teoria da evolução, cita o livro Why evolution is true, de Jerry Coyne: “As evidências biogeográficas da evolução agora são tão poderosas que eu nunca vi um livro, artigo ou conferência criacionista tentar refutá-las. Os criacionistas simplesmente fazem de conta que as evidências não existem”. Essa é uma tática muito utilizada por aqueles que não querem enfrentar evidências. E prossegue na sua dissertação de inter-relações filogenéticas que demonstram de forma irrefutável os 3,5 bilhões de anos de história evolutiva da biodiversidade terrestre.

Sem se perder, Dawkins apresenta os contundentes argumentos evolutivos da biologia molecular. Graças à descoberta da técnica da reação de polimerização em cadeia (PCR, polymerase chain reaction), que permite a amplificação de fragmentos de DNA, hoje é possível se utilizar de relógios moleculares para se calcular taxas de mutações ao longo de milênios. E com isso “montar” árvores de parentesco filogenético entre espécies e entre outros grupos biológicos. Desta forma, a teoria da evolução se confirma, mais uma vez, através da biologia molecular, juntamente à paleontologia, geologia e dendrocronologia, além da verificação dos processos de seleção natural, hoje observados até mesmo em laboratório.

Os remanescentes da história evolutiva encontram-se presentes nos seres vivos, em suas formas corporais, em seus órgãos internos. Cérebros, asas, olhos, plano corporal segmentado, nervo laríngeo. Além do terrível design desinteligente da dor nas costas, da bolsa do coala que é aberta para baixo, seios nasais com abertura para o topo, e das vespas icneumonídeas, que certamente devem ter inspirado “Alien – o 8º passageiro” de Ridley Scott.

Mas nada disso, nenhuma mudança, nenhuma mutação, nenhuma cadeia alimentar, a vida não seria possível sem a
energia solar. Dawkins volta à química para explicar como a energia solar é a única fonte de energia para que todo o processo evolutivo tenha acontecido. E, por isso, não há nenhuma violação de lei termodinâmica na evolução (embora tal argumento não seja mencionado pelo autor)*. E a evolução é inexorável. Não há lugar para beleza, perdão ou qualquer sentimento na luta pela sobrevivência. Esta simplesmente ocorre, de acordo com a seleção natural, e origina a biodiversidade e a perda de biodiversidade. Por mais que talvez fosse possível se planejar tal processo, a teodiceia evolucionária não se sustenta.

Ainda me faltando ler o último capítulo, é reconfortante saber que Dawkins, mesmo depois de aposentado, continua um exímio escritor de divulgação da ciência e demonstra um conhecimento invejável sobre a teoria da evolução, com argumentos irrefutáveis permeados de bom humor e histórias anedóticas. Darwin certamente apreciaria O Maior Espetáculo da Terra.

*Em tempo (08/1/09): No último capítulo Dawkins faz uma análise detalhada e perspicaz do último parágrafo do livro de Dawrwin, A Origem das Espécies:

Assim, da guerra da natureza, da fome e da morte surge diretamente o mais excelso objeto que somos capazes de conceber, a produção dos animais superiores. Há grandeza nesta visão de vida, com seus vários poderes, insuflada que foi originalmente em algumas formas ou em uma, e no fato de que, enquanto este planeta prossegue em seu giro de conformidade com a imutável lei da gravidade, de um começo tão simples evoluíram e continuam a evoluir infindáveis formas belíssimas e fascinantes.

Nesta análise, menciona textualmente que não pode haver engano sobre a fonte original de energia que mantém a vida na Terra: o Sol. (páginas 384-387) E por isso a segunda lei da termodinâmica não é violada, jamais. Logo, segundo Dawkins:

“(…) a energia do Sol impele a vida, de modo que, por uma laboriosa rota limitada por essas leis, evoluem prodigiosos feitos de complexidade, diversidade, beleza e uma impressionante ilusão de improbabilidade estatística e design deliberado.” (grifo do autor).

A dura realidade acerca da ignorância sobre a Teoria da Evolução, apresentada nos dados coligidos e comentados por Dawkins no apêndice, é de ser lamentada por todos os que compreendem, verdadeiramente, a ciência e o método científico. Sobre este ponto, um comentário final: o livro de Sandro de Souza, “A Goleada da Darwin” (Record, 2009), é o primeiro, no meu comnhecimento, que aborda a questão sobre o criacionismo no Brasil (para uma resenha, veja aqui). A contracapa do livro de Souza apresenta dados para os quais não é mencionada uma fonte (infelizmente não tenho o livro em mãos). Mas seria interessante se verificar a extensão dos números apontados por Souza sobre a crença no criacionismo no Brasil, tal como Dawkins os apresenta em seu livro.

Ciência, Tecnologia e Sociedade

Duas notícias publicadas hoje no jornal Folha de São Paulo on-line me chamaram a atenção. A primeira:

Projetos brasileiros de captura de CO2 não saem dos laboratórios – reportagem de Breno Costa, da Agência Folha, em Belo Horizonte
Visto como um dos principais meios de contenção do aquecimento global, projetos de sequestro de CO2 ganham corpo nos laboratórios de universidades brasileiras, mas ainda enfrentam ausência de “feedback” do poder público e de investimentos privados. A Folha localizou com o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) ao menos 39 projetos de pesquisa em andamento em 18 instituições brasileiras, com desenvolvimento de novos mecanismos para o sequestro de carbono. Ainda não há, porém, aplicação em larga escala de tecnologia criada nessas universidades. Os mecanismos são testados, com sucesso, nos laboratórios. Mas, para escalas maiores, é preciso muito mais dinheiro.

A segunda:

Apesar dos iPods, sequenciamento genético, internet e Twitter, cerca de 30% dos norte-americanos dizem pensar que até 2010 já deveríamos estar mais avançados tecnologicamente. Nem todos esperavam viver como Jetsons, personagens da série de desenho animado futurista dos anos de 1960, mas uma pesquisa da Zogby International com mais de 3.000 adultos nos Estados Unidos mostra que muitos estão pouco animados sobre o quão longe chegamos ao fim de uma nova década.
“A faixa etária mais propensa a estar decepcionada com o atual patamar de avanço tecnológico é entre 35 e 54 anos (36%)”, informa a Zogby em comunicado sobre a pesquisa. Cerca de 21% das pessoas acreditam que estamos tecnologicamente mais avançados do que pensavam que estaríamos até 2010, enquanto 37% acreditam que estamos no caminho para cumprir com as expectativas. Cerca de um terço das pessoas de 70 anos ou mais disseram pensar que o atual nível tecnológico é mais avançado do que pensavam que seria. “Aqueles entre 18 e 30 anos são muito menos propensos do que as gerações anteriores a afirmar que os avanços tecnológicos até o momento excederam suas expectativas”, disse a Zogby. Os homens são mais propensos que as mulheres a dizer que esperavam avanços maiores até 2010 a respeito de um estilo de vida tecnológico parecido com os Jetsons, com carros voadores e empregados robôs.

Por vezes pode ser difícil perceber avanços tecnológicos quando não se conhece a ciência que os fundamenta. Porém, algumas mudanças são mais do que importantes, por mais difícil que seja percebê-las, uma vez que já estão entranhadas na sociedade. Lembro-me quando entrei em contato com email, pela primeira vez há 15 anos. E com a internet há 14 anos. 14 anos! Somente 14 anos. O mundo sofreu uma verdadeira revolução depois da implantação da www (world wide web). Ou será que alguém tem alguma dúvida sobre isso?

Outra descoberta que revolucionou completamente a história de planeta: a descoberta da reação de polimerização em cadeia (PCR, polymerase chain reaction), que permite amplificar fragmentos de DNA em quantidades muito maiores para que possam ser seqüenciados. Tal descoberta permitiu não somente estudar a biologia molecular dos seres vivos com muito mais segurança, mas também a descoberta de genes que controlam doenças, testes de paternidade definitivos (muitos homens não devem ter gostado da descoberta da PCR…), processos evolucionários. E a descoberta da PCR foi feita no início dos anos 90, mais ou menos na mesma época em que a internet começou a se expandir.

Questão combustíveis: bom, é bem sabido que o carro movido a gás hidrogênio, absolutamente não poluente, existe há vários anos. Porque não é lançado no mercado? Interesses econômicos, muito fortes. Mas esta tecnologia está pronta para ser implementada.

Projetos tecnológicos são muito importantes e interessantes. Mas só são possíveis graças à ciência, que dá fundamentação à tecnologia. A inovação tecnológica só funciona bem com uma parceria efetiva com o setor industrial, com um sistema de proteção da propriedade intelectual (patentes) extremamente eficaz, e com um mercado potencial ávido por novidades.

Carros que voam? Empregados robôs? Seria bom que as pessoas procurassem entender os princípios científicos que fundamentariam tais objetos de luxo. Totalmente dispensáveis (pelo menos para uso individual).

Esta postagem pode ser muito mais aprofundada. É bem possível que outras, relacionadas a esta, apareçam aqui ao longo de 2010.

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