Novas reflexões sobre o caso da ex-invisível e atual fedida Lagoa da Turfeira.
por Luciano Moreira Lima
NOTA IMPORTANTE: para quem está acompanhando o caso a partir de agora é bom ler o texto anterior também publicado aqui no Caapora (scienceblogs.com.br/caapora) para se situar melhor.
Sexta-feira está aí, é hora de recapitular os fatos…
Brejos, pântanos, manguezais e ecossistemas correlatos sempre foram alvo de um certo preconceito por parte da população geral. Além do Shrek, que -embora simpático- não deixa de ser um ogro, outras coisas não muito desejáveis são comumente associadas às área úmidas, mesmo que injustamente. A malária, por exemplo, tem origem no expressão “mal are”, pois se acreditava que só do sujeito respirar o “mal ar” dos brejos era tiro e queda pra tombar na cama.
Ogros pantanosos, doenças olfativas e outras injustiças cometidas contra as áreas úmidas à parte, é difícil deixar de lado uma característica que faz com que certas pessoas “torçam o nariz” para esses ecossistemas, e que acomete principalmente os manguezais, um característico cheirinho de enxofre. Quem já desbravou áreas de mangue sabe bem do que eu estou falando. É só afundar um pouco na lama que logo sobe aquele cheirinho mais forte. Não adianta olhar com cara feia para o amigo que vai caminhando na frente, a real causa cheiro é a decomposição intensa de matéria orgânica por uma miríade de bactérias que durante o processo acabam liberando enxofre.
Da Ilha de Marajó, no PA, à região de Guaraqueçaba, no PR, já percorri muitas áreas úmidas no encalço da passarada, mas nem os manguezais dos fundos da Baía de Guanabara superam o “mal are” que está exalando das áreas úmidas aterradas nas imediações da Lagoa da Turfeira. Dessa vez, no entanto, a culpa não é das bactérias, o mau cheiro é “daquilo mesmo que vocês estão pensando” que fizeram ali. Cheguei à conclusão que o “mal ar” está tão forte que tem levado a uma desbaratinização completa de algumas pessoas que visitaram a área a ponto destas afirmarem veementemente que havia sim sido detectado uma redução do espelho d’água e depois tentarem justificar o injustificável argumentando coisas do tipo: “não não, não matamos ninguém só amputamos um braço e uma perna, mas agora vamos monitorar o estado do paciente, vai morrer não, pode ficar tranquilo”.
Oooooh catinga!!!
Não vou entrar em detalhes sobre o disse-me-disse, mas muito tem se falado e algumas perguntas importantes ainda não foram respondidas:
Afinal, há ou não há um estudo de impacto ambiental sobre a malfadada obra? Se há, cadê?
Se não há, por que não há? Só estão dispensadas de apresentarem tal relatório empreendimentos considerados de baixo impacto, o que nos leva a outra pergunta importante: obras às margens de uma lagoa de quase 70 hectares são de baixo impacto?
Uma outra questão básica pode ser levantada aqui: se não houve estudo de impacto ambiental, não houve uma caracterização da lagoa, se não houve caracterização da lagoa como se sabe o nível que ela atinge durante a época da cheia. Sem saber isso, como estipular então onde começa o limite de proximidade a que a obra pode chegar (sendo ela 0,1 ou 1000 metros)? Essa fedeu muito, não?
Tem também a questão da licença de instalação, mas primeiro vamos esperar a resposta a essas perguntas mais básicas.
Desde a minha ida na lagoa na fatídica tarde do último sábado (21/04) fiquei imaginando que uma foto aérea atual seria perfeita para demonstrar o estrago. E não é que ontem a foto apareceu? Aproveito para agradecer ao Celso Dutra que gentilmente postou a imagem no meu FaceBook, e também ao André Pol que produziu o esquema abaixo mostrando que de fato houve sim o aterro de áreas alagas, pelo menos 5, também de acordo com o André. Na foto é possível ver ainda o quão colado na lagoa está o empreendimento, pelo visto as capivaras vão ter que se adaptar e passar a pastar as algas do fundo do espelho d’água.
A única dúvida que faz tempo já deixou de existir é sobre a importância conservacionista da Lagoa da Turfeira e áreas úmidas adjacentes, fato apontado diversas vezes até mesmo por aqueles que querem destruir a área. Paradoxal não? Fica mais uma pergunta: se já estava todo mundo careca de saber que a área é importante, por que não criaram a reserva antes? Mas tudo bem, pensemos no “antes tarde do que nunca”. Já que a reserva será criada, que tal ser tranformada em uma opção de lazer, com visitação controlada, que vai completamente ao encontro da vocação ambiental do município de Resende?
Abaixo seguem duas fotos para servirem como exemplo de parques em áreas úmidas que além de conservarem a biodiversidade, promovem a eduacão ambiental e geram recursos. Qualquer um que admire a natureza e tenha tido a chance de passear um pouco fora do país sabe que mundo afora, especialmente em paises como o Japão da Nissan, existem inúmeras reservas como essas da foto, grande parte delas inclusive como uma diversidade de aves muito MENOR que a da Lagoa da Turfeira.
Falando em Nissan e Japão, o famoso jornalista Ricardo Boechat (que literalmente mandou a prefeitura de Resende pra PQP – duvida?! eu também duvidei… ouça aqui) fez mais uma excelente e mal cheirosa pergunta: Será que o governo japonês autorizaria a construção de uma fábrica da Nissan em um local equivalente à nossa Lagoa da Turfeira? Será? Será? Não precisa assistir Globo Repórter e ouvir o Sérgio Chapellin falando “depois do intervalo, os segredos da longevidade dos japoneses” para saber que a resposta para a pergunta do Boechat. Afinal não é à toa que no Japão se vive mais, se sabe mais e trapalhadas políticas são motivo de comoção nacional, e isso tudo passa claramente pela relação do povo japonês com a natureza.
Fica então a pergunta final endereçada para a Nissan e seu presidente no Brasil Sr. Carlos Goshn: com tanta área de pasto abandonada Resende afora vocês vão mesmo querer construir a fábrica em um local que a coloca como uma séria ameaça a última grande área úmida remanescente da região Sul Fluminense? Pois se for o caso e essa importante empresa multinacional não der a mínima para um termo tão em moda quanto responsabilidade sócio-ambiental, é bom vocês irem se acostumando com o cheiro, porque com certeza, vez ou outra o negócio vai feder.
Depois da vergonha do Código Florestal, mais uma vez a sanidade ambiental do governo brasileiro está sendo colocada à prova. Agora é esperar e ver o que o que o laudo oriundo da visita do INEA irá concluir.
Aproveito para agradecer em meu nome e em nome da Lagoa da Turfeira e sua biodiversidade a todos que de alguma forma estão acompanhando, compartilhando, e lutando, especialmente o vereador Dr. Gláucio Julianelli e a jornalista Ana Lúcia Corrêa de Souza que assumiram posições no pelotão de frente.
A invisível Lagoa da Turfeira, uma tragédia ambiental anunciada…
por Luciano Moreira Lima
Uma das últimas grandes áreas úmidas da região sul fluminense corre sério risco de desaparecer
Das milhares de pessoas que diariamente passam pelo km 299 da Rod. Presidente Dutra (BR 116), poucas devem notar que contornada a oeste por uma abrupta curva do rio Paraíba do Sul está uma das últimas grandes áreas úmidas naturais da região sul fluminense, a Lagoa da Turfeira (também conhecida como Lagoa da Kodak devido a proximidade com uma antiga fábrica da referida empresa). Essa situação, no entanto, causa pouco espanto já que a grande lagoa parece não ser invisível apenas para os motoristas concentrados na estrada. Não adianta procurar pelos seus cerca de 700.000 metros2 em um detalhado mapa hidrográfico do município de Resende produzido em parceria com a prefeitura municipal –disponível aqui –. Você não verá a indicação de nem um pingo d’água em seu local. Fato no mínimo inusitado, uma vez que lagoas até 10 vezes menores são corretamente indicadas no mapa e se dos dermos conta que a Lagoa da Turfeira pode ser claramente observada a mais de 10.000 metros de altitude via Google Earth.
Se uma área equivalente a mais de 70 campos de futebol pode passar desapercebida, imagine aqueles que a habitam, como o diminuto tricolino (Pseudocolopteryx sclateri) de topete invocado e míseros 9,5 cms. Não bastasse o tamanho, esse bonito passarinho vive apenas no meio de densas moitas de taboa (Typha domingensis), uma das plantas mais características de áreas alagadas no Brasil. Ornitólogos e observadores de aves sabem que para poder observá-lo não basta apenas vontade é preciso se embrenhar-se no taboal, muitas vezes afundar com água acima do joelho e ficar de ouvidos atentos ao seu discretíssimo canto – ouça aqui – .
Mais de 11 anos de visitas regulares a Lagoa da Turfeira e seu entorno imediato realizadas em parceria com o amigo e também ornitólogo Bruno Rennó, resultaram no registro não apenas do discreto tricolino mas também de pelo menos outras 169 espécies de aves silvestres no local. Nesse total, que representa cerca de 20% das aves do Estado do Rio de Janeiro, estão incluídas espécies ameaçadas de extinção em âmbito estadual e diversas aves migratórias paras quais a lagoa representa um importante refúgio.
Os resultados desse estudo – parcialmente apresentados no XVI Congresso Brasileiro de Ornitologia – tornaram evidente a importância da Lagoa da Turfeira para conservação da biodiversidade fluminense e auxiliaram na sensibilização do poder público municipal para que algo fosse feito em prol da sua preservação . Dessa forma, em 2010 a Agência do Meio Ambiente do Município de Resende elaborou o documento “Estudo Técnico Preliminar para Constituição de Área Protegida no Banhado da Kodak”, e entre as principais conclusões estavam:
“A criação e implantação de unidade de conservação no Banhado da Kodak alinha-se aos compromissos internacionais do Brasil de proteger o ambiente, conforme metas estabelecidas pela ONU, em se tratando do Ano Internacional da Biodiversidade.
A criação e implantação da unidade acarretará ainda um aumento do ICMS do município, conforme prevê a Lei no 5.100 de 04 de outubro de 2007 e o Decreto no 41.101 de 27 de dezembro de 2007.
Constata-se, portanto, que a unidade trará grandes benefícios para o município […]”
Dois anos se passaram após finalização desse documento e aos poucos a Lagoa foi novamente caindo no esquecimento dos órgão governamentais, até a semana passada. Na última quinta-feira (19/04), alertado por amigos, descobri que a prefeitura Municipal de Resende havia orgulhosamente publicado uma imagem da Lagoa invisível em sua página do Facebook acompanhada de alguns parágrafos de notícia. No entanto, ao invés do título fazer qualquer menção a alguma ação visando a conservação da área lá estava: “As obras da Nissan”. Meio sem rumo e sem querer acreditar no que eu havia lido me dei conta que não apenas não seria feito nada para conservar a Lagoa como também estava sendo orgulhosamente anunciada o que poderia se tornar em uma das maiores tragédias ambientais recentes da região sul fluminense. Esperei o final de semana chegar e fui para casa em Resende ver com meus próprios olhos a situação da área.
Era por volta de 14:00 do último sábado (21/04). Da Dutra já era possível ver uma gigantesca área de terra exposta meio enevoada pela poeira levantada pelo ir e vir constante de uma verdadeira frota de máquinas escavadeiras e caminhões. Segui pela estrada de chão paralela a lagoa e encarado pelo olhar apreensivo das pessoas que lá trabalhavam fui desviando das escavadeira e caminhões. O barulho constante dos motores e a poeira contribuíam deixando o cenário de destruição ainda mais desolado e logo me dei conta que eu não era o único perdido por ali, uma garça-branca-grande (Ardea alba) e duas garças-brancas-pequenas (Egretta thula) voavam sem rumo entre duas poças já lamacentas sendo repetidamente espantadas pelas máquinas.
Procurei em vão pela área onde em 2001 havia feito o primeiro registro documentado da triste-pia (Dolichonyx oryzivorus) no Estado do Rio de Janeiro – veja a publicação científica aqui – e onde também observávamos com frequência o ameaçado coleiro-do-brejo (Sporophila collaris). Tarde demais, a passarada havia simplesmente virado terra nua. Um pouco mais para frente em uma área que ainda mantinha um pouco de vegetação uma concentração impressionante de aves, onde chamava atenção o colorido dos chopim-do-brejo (Pseudoleistes guirahuro) e da polícia-inglesa-do-sul (Leistes superciliaris), lembravam refugiados aglomerando-se as centenas e fugindo de um verdadeiro massacre.
Um pouco mais pra frente na estrada dirigi até o alto de uma colina e de lá pude avaliar melhor o estrago. A extensão da área aterrada era impressionante e embora até aquele momento tenha sido poupado o espelho d’água principal diversas áreas úmidas existentes ao seu redor foram completamente aterradas. De lá também pude rever também algo que sempre me causou especial presságio. Um antigo canal localizado no canto nordeste ligando-a ao Rio Paraíba do Sul, embora hoje esteja parcialmente assoreado já funcionou como sangradouro de suas águas podendo novamente ser utilizado para extinguí-la. No caminho de volta, entrei por uma estrada que acabava de ser aberta e estranhamente terminava no espelho d’ água, fiquei ainda mais apreensivo me perguntando a função daquele caminho.
Por conta do mestrado sou obrigado a morar em São Paulo e aos poucos vou me acostumando com os engarrafamentos, poluição e violência urbana. Por isso, nada contra a montadora de carros, tampouco contra o dito progresso que prevê que a população de Resende aumente cerca de 50.000 pessoas nos próximos 5 anos. Mas, vale lembrar que lagoas são caracterizadas como áreas de preservação permanente, por isso são áreas intocáveis.
Além disso, certamente deve ter sido produzido um estudo de impacto ambiental para uma obra dessa magnitude, o qual certamente também deve ter identificado que qualquer atividade que afete a lagoa poderá resultar em uma tragédia irreversível para biodiversidade da região. Sendo assim, gostaria também de ter tido a oportunidade de participar de alguma audiência pública onde o destino da Lagoa da Turfeira pudesse ser seriamente debatido.
Embora seu entorno já tenha sido bastante impactado ainda há tempo de salvar o que restou da última grande área úmida natural da região meridional do vale do Rio Paraíba do Sul. A implementação de uma unidade de conservação no local, em âmbito municipal ou estadual, seria não apenas uma forma de garantir a existência a longo prazo da Lagoa da Turfeira e sua rica biodiversidade, mas também a oportunidade de criação de um espaço onde através de trilhas interpretativas e um centro de visitação a população resendense conquistasse uma nova opção de lazer que vai totalmente de encontro a vocação ambiental do município. Vale lembrar o grande potencial da área para prática de uma das atividades ao ar livre que mais crescem no país a observação de aves. Não por acaso, a Lagoa da Turfeira ocupa três páginas do livro “A Birdwatching guide to South-East Brazil”, o qual traz informações detalhadas sobre alguns dos principais locais para observação de aves no sudeste do país. Sem contar nas inúmeras fotos clicadas no local e disponíveis no site WikiAves – veja aqui – e que demonstram que os ambientes da lagoa são frequentemente procurados por observadores de aves.
Por volta das 16:30 o céu nublado evolui para uma chuva fraca que ajudou a esconder os olhos cheios. De fato a ignorância é o melhor caminho para felicidade. Minha tristeza maior não era por ser testemunha ocular de tamanha agressão a natureza, mas principalmente por saber a importância daquele lugar para a vida e conhecer pelo nome e sobrenome todos aqueles fadados a buscar em vão um novo lar. Voltei para casa desolado mas disposto a fazer todo o possível para mostrar que as cores e os sons das milhares de vida que dependem da Lagoa da Turfeira fazem que ela seja considerada qualquer coisa, menos invisível. Cientes que a tragédia estava anunciada depende de nós deixar ou não que ela aconteça.
Tinha um joão-porca no meio do caminho…
por Luciano Moreira Lima
Poucos lugares podem ser tão produtivos para o ornitólogo ou observador de aves quanto pequenas estradas que se embrenham floresta a dentro, especialmente as abandonadas. Quando comparadas as estreitas e escuras trilhas, o chão geralmente mais limpo e o campo de visão expandido tornam o caminhar nesses locais mais silencioso e atento, em horários propícios a cada dez passos se topa com um ou outro ser emplumado.
Para aqueles com equipamento fotográfico a tiracolo a situação é ainda mais proveitosa. A luz, sempre escassa no sub-bosque sombrio da mata, é mais abundante próximo as bordas permitindo uma abertura mais fechada e um ISO mais baixo, resultando em imagens mais nítidas e com menos ruído, o que pode fazer toda diferença na hora de um bom click.
Já era meio de tarde e a passarada meio quieta permitiu que algumas borboletas e libélulas diminuíssem meu passo em uma caminhada por uma estrada abandonada nas proximidades do centro de visitantes no Parque Nacional do Itatiaia. Depois de alguns clicks retomei o curso e alguns passos a frente lá estava o amigo Bruno Rennó com o olho atento pra dentro do mato. Dava dois passos para direita, dois para esquerda, botava o olho no visor da câmera e assim que me viu pelo canto do olho acenou para que eu me aproximasse em silêncio.
Perguntei curioso ainda a certa distância:
– Que têm aí Bruno Carlos? –
Me respondeu com o olho grudado no visor da câmera enquanto mirava pra dentro da mata:
– Chega aí! Têm um Lochmias “dando mole” –
Para aqueles que ainda não foram apresentados, Lochmias nematura, é o único representante do seu gênero e um parente não muito distante do famoso joão-de-barro, Furnarius rufus. No entanto, talvez pelo comportamento mais arredio, não teve o merecido reconhecimento de seu primo, cujo nome popular faz alusão a incrível habilidade de construir ninhos de barro que mais parecem verdadeiras casas (algumas vezes até mesmo prédios – veja no WikiAves – ) e acabou sendo batizado pelo povo de joão-porca, um nome vulgar, no mínimo vulgar.
A voz do povo é a voz de Deus, mas para aqueles indignados com um nome tão ultrajante segue a explicação extraída do livro sagrado dos ornitólogos tupiniquins, Ornitologia Brasileira, de Helmut Sick:
“Habita as margens de córregos de densa vegetação, onde pula no solo ou vai de pedra em pedra entrando mesmo na água rasa à caça de insetos e larvas; às vezes apanha folhas inteiras caídas na água à cata de presas, inspeciona a lama de chiqueiros e esgotos (daí a série de nomes vernaculares pouco airosos de que é objeto), vira folhas e torrões de terra com o bico.”
Pessoalmente acho seu nome injusto, pois foram poucas as vezes que vi o joão-porca forrageando próximo a áreas mal cheirosas que lhe justificassem tal adjetivação. Ao contrário, a espécie pode quase sempre ser observada buscando animalejos entre as pedras de córregos limpíssimos que serpenteiam pela mata e onde sua voz – ouça no WikiAves – geralmente se mistura ao chuá incessante de alguma cachoeira próxima.
Nesse cenário, Lochmias parece comporta-se como um equivalente ecológico das aves do gênero Cinclus, família Cinclidae, espécies de pássaros semi-aquáticos que habitam rios em diversas regiões do mundo, mas que não ocorrem no Brasil. No entanto, até onde se sabe, Lochmias não é capaz de mergulhar como fazem os Cinclus. Falar em Cinclus e Lochmias nos remete ao misterioso Thamnophilus aquaticus, supostamente descoberto por J. T. Descourtilz e mencionado por Silva Maia (1851) em um parágrafo sobre uma “Especie nova e curiosa de passaro brasileiro” – veja aqui -. Embora o gênero Thamnophilus pertença a família Thamnophilidae, ou seja, diferente do Lochmias, não vejo explicação melhor para as observações de Descourtilz do que um joão-porca que se atreveu explorar atrás da cortina d’água de uma cachoeira ou situação parecida.
Mas voltemos a estrada abandonada no Itatiaia… Lochmias que se preze raramente “dá mole” pra foto e nas poucas vezes que presenciei essa situação, não durou mais que 30 segundos. Por isso apressei o passo ao ouvir a resposta do Bruno, mas me aproximei sem muita confiança, pois duvidava que o pássaro estivesse ainda ao alcance da minha lente. Dito e feito, só deu tempo de ver o bicho adentrar na brenha.
No entanto, um ou outro galho mais exposto no meio da ramaria me diziam que aquela podia ser uma chance muito boa de conseguir um registro fotográfico do joão-porca, objetivo que várias vezes já havia perseguido sem conseguir sucesso. Ipod na mão, reproduzi baixo por poucos segundos seu chamado característico e quase imediatamente o pássaro se aproximou pousando em um galho caído cuja uma das pontas era justamente um dos lugares que eu havia previsto que daria uma boa foto. Com olhar curioso foi ao poucos se movendo até chegar justamente na posição onde eu havia idealizado, enquanto isso o dedo permaneceu grudado no disparador da câmera.
As duas fotos acima foram as melhores da sequência que eu consegui. No final, acho que a foto do joão-porca com o olhar curioso entre os vultos da folhagem ilustra muito bem o comportamento tímido da espécie e por isso gostei mais dessa do que daquela em que o passarinho faz pose no lugar que eu havia ansiosamente desejado. Fotografia de natureza, especialmente de aves, pode ser um pouco frustrante às vezes, mas em outras o que você achava que estava bom pode fica ainda melhor…
Caapora, o retorno…
Após um longo período de hibernação o Caapora desperta. Os leitores antigos perceberão que as recentes mudanças no visual do seu habitat natural aqui no Scienceblogs Brasil são apenas uma das novidades dessa nova fase. Agora, além deste que lhes escreve, Luciano Lima, fazem parte do “corpo editorial” do Caapora os amigos e também zoólogos Guilherme Garbino e Rafael Marcondes, os quais aproveito para agradecer por terem aceitado o convite para fazer parte desse projeto cujo único ressarcimento é a oportunidade de aprender através do compartilhamento de conhecimento.
O Caapora pretende continuar a fazer jus ao seu significado em tupi, “aquele que vive no mato”, levando seus leitores em jornadas pelas matas, cerrados, caatingas e brejos desse país e cumprindo o seu papel sócio-ambiental de divulgar informações sobre as camadas menos conhecidas da biodiversidade ofuscadas pela popular fauna carismática.
Ao lado podem ser encontradas informações mais detalhadas sobre Rafael e Guilherme e sobre mim, já que minha vida deu um bom upgrade desde as últimas palavras compartilhadas por aqui há mais de dois anos.
Tubarão raríssimo encontrado no litoral do Rio de Janeiro
Em julho deste ano Salvatore Siciliano, Bruno Rennó e eu fizemos uma incrível e inesperada descoberta zoológica. Encontramos um exemplar com mais de cinco metros de comprimento do raríssimo tubarão Megachasma pelagios (popularmente conhecido como tubarão-de-boca-grande, em português, e Megamouth, em inglês) encalhado nas areias de uma das praias que monitoramos regularmente na costa centro-norte do Estado do RIo de Janeiro para o estudo de aves, quelônio e mamíferos marinhos.
A decoberta foi primeiramente divulgada na edição de setembro da revista de divulgação científica Ciência Hoje, abaixo segue o texto do artigo na íntegra e duas fotos do tubarão.
BIOLOGIA MARINHA: Um dos mais raros tubarões do mundo é encontrado na costa brasileira
Gigante dos mares em areias fluminenses
Em 9 de julho último, um macho adulto de Megachasma pelagios – raríssimo tubarão descrito pela primeira vez nos anos 80 – foi encontrado encalhado e recém-morto na Praia Grande, em Arraial do Cabo (RJ), pelo pesquisadores brasileiros que assinam esse artigo. O espécime representa o 43º exemplar de M. pelagios conhecido no mundo e apenas o terceiro registrado no oceano Atlântico. Um animal jovem havia sido capturado na costa de São Paulo em 1995 e outro achado no mesmo ano em Dakar, Senegal.
A descoberta foi feita durante um dos monitoramentos regulares de praia conduzidos pelo Projeto Aves, Quelônios e Mamíferos Marinhos da Bacia de Campos, realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, dentro do Projeto Habitats – Heterogeneidade Ambiental da Bacia de Campos, coordenado pelo Centro de Pesquisas (Cenpes) da Petrobras.
Com 5,39 m de comprimento, o exemplar APARENTA ter morrido por causas naturais, uma vez que não foram encontradas marcas que pudessem ser atribuídas à captura em redes ou à colisão com embarcação a motor. A necropsia mostrou que o estômago do tubarão estava completamente vazio, o que pode indicar que ele não vinha se alimentando há algum tempo.
Figura 1: Exemplar de Megachasma pelagios encalhado na Praia Grande, em Arraial do Cabo (RJ), em julho de 2009. Foto Bruno Rennó / Projeto Aves, Quelônios e Mamíferos Marinhos da Bacia de Campos.
Uma descoberta ao acaso
O primeiro Megachasma pelagios foi descrito em 1983. A descoberta aconteceu totalmente ao acaso, envolvendo um exemplar que se prendeu acidentalmente em uma âncora de um navio da marinha norte-americana ao largo de Oahu, Havaí, em 1976. Ao ser examinado por especialistas, revelou que não se tratava apenas de uma nova espécie, mas também de um novo gênero e família de tubarão, mais tarde denominada Megachasmidae. Foi considerada uma das descobertas zoológicas mais fantásticas do século 20, rivalizando até com o celacanto, conhecido como ‘fóssIL vivo’.
O nome do gênero é composto por um prefixo grego (mega = grande) e um sufixo latino (chasma = cavidade); pelagios vem do latim e significa ‘oceânico, do mar’. Considerado extremamente raro, cada registro do também chamado tubarão-de-boca-grande é documentado em detalhe e passa a integrar um catálogo internacional.
O Megachasma pelagios poder ser considerado um gigante dos mares, chegando a medir mais de 5,5 m de comprimento e passar de 1 tonelada, Megachasma pelagios tem uma aparência bizarra, o que o torna facilmente distinguível de qualquer outro tubarão. Como o seu nome bem diz, sua boca é extremamente grande, coberta por mais de 50 fileiras de pequenios dentes pontiagudos e curvados para trás, das quais apenas três são funcionais. Além disso, a nadadeira dorsal elativamente pequena e a cauda com o lobo superior bastante alongado contribuem para dar um aspecto desproporcional ao animal, o que o torna facilmente distinguível de qualquer outro tubarão.
Diferente de qualquer outra espécie de elasmobrânquio e curiosamente semelhante às grandes baleias, como a jubarte (Megaptera novaeangliae), a estratégia de busca por alimento do tubarão-de-boca-grande envolve o engolfamento de zooplâncton. Ao se alimentar, o animal engolfa grande quantidade de água na cavidade bucofaringeal enquanto nada ativamente com a boca aberta. Para suportar esse volume de água e as presas nela contidas, a pele dos lados ventrais e laterais da boca, que é muito elástica, é distendida. Posteriormente, a boca se fecha, a água é expelida pelas guelras e o alimento, engolido. Dada a sua dependência por zooplâncton, o Megachasma pelagios realiza deslocamentos verticais diários na coluna da água acompanhando suas presas, podendo atingir até 180 m de profundidade.
Figura 2: Detalhe da cabeça do exemplar de Megachasma pelagios encalhado na Praia Grande,
em Arraial do Cabo (RJ), mostrando a boca extremamente grande do animal. Foto Bruno Rennó / Projeto
Aves, Quelônios e Mamíferos Marinhos da Bacia de Campos.
Entre os mais raros do mundo
Passados 25 anos de sua descoberta, o Megachasma pelagios é ainda hoje considerado um dos tubarões mais raros do mundo. No total, somando-se os espécimes capturados, encontrados encalhados em praias e observados no mar, eram conhecidos até o momento 42 registros da espécie espalhados pelas zonas tropicais e subtropicais dos três oceanos. A maior parte dos espécimes encontrados concentra-se no Pacífico, seguido pelo Índico; no Atlântico, apenas dois exemplares haviam sido reportados.
Embora o ecossistema marinho corra sério risco de entrar em colapso por conta da superexploração de seus recursos, nosso conhecimento sobre os oceanos ainda é incipiente, fato nitidamente ilustrado por diversas descobertas fantásticas relacionadas à vida marinha nas três últimas décadas. Entre esses achados, o tubarão-de-boca-grande pode ser apontado como um dos mais notáveis e um exemplo vivo do nosso desconhecimento sobre a fauna marinha. Um artigo científico sobre o animal deverá ser apresentado em breve em uma revista especializada.
A descoberta de um novo M. pelagios na costa brasileira demonstra a importância do monitoramento regular de trechos de costa e de estudos de caracterização da biodiversidade marinha em longo prazo. Pesquisas dessa natureza podem ser apontadas como uma efetiva ferramenta para melhor compreender o desconhecido, mas criticamente ameaçado, ecossistema marinho.
Luciano M. Lima, Bruno Rennó e Salvatore Siciliano
Projeto de Monitoramento de Aves, Quelônios e Mamíferos Marinhos da Bacia de Campos
Sobre mulheres, preguiças e o monstro do Panamá
A notícia é assustadora e ganhou destaque em vários jornais essa semana…
“Segundo jornais panamenhos, quatro adolescentes entre 14 e 16 anos estavam em torno do lago, no sábado (12), quando viram uma criatura bizarra saindo de uma gruta. Assustados com sua aparência e com medo de serem atacados, os jovens atiraram pedras até matá-la e a jogaram na água. A notícia logo se espalhou pela cidade. Retirada do lago, a criatura foi apontada como um ET por moradores da região e pela imprensa local. Outros a descreveram como o personagem “Gollum”, da trilogia “O senhor dos anéis“
As fotos mais ainda…
Se você já estava preparando para se esconder debaixo da cama com medo da invasão alienígena, pode ir se acalmando.
A foto ao lado, retirada daqui, põe rapidamente fim ao mistério. A imagem mostra um feto de preguiça-de-três-dedos (Bradypus tridactylus). Embora o “monstro” do Panamá corresponda a uma preguiça adulta a foto do feto não deixa dúvidas quanto a sua real identidade. Além disso, observando com atenção a foto do suposto ET no canto superior esquerdo é possível ver as garras na ponta de uma das patas e alguns vestígios de pêlos na barriga.
Um outro mistério seria como a preguiça de Cerro Azul perdeu quase completamento sua pelagem. As possibilidade são muitas, mas por ter sido encontrada as margens de um lago sou capaz de apostar o salário do meu chefe que a perda de pêlos é resultado da decomposição ter se iniciado dentro da água. Em diversas ocasiões já encontrei carcaças de gatos e cachorros “pelados” lançados a beira mar durante os monitoramentos de praia que realizamos pela costa fluminense em busca de aves, quelônios e cetáceos marinhos.
O mais interessante, contudo, é que o alvoroço causado pela preguiça pelada panamenha não é muito diferente do que aconteceu quando os primeiros europeus que chegaram a américa se depararam com preguiças vivas. Os primeiros cronistas a descreverem a natureza brasileira se surpreenderam com as feições quase humanas do estranho animal. Em 1560, o Padre José de Anchieta escreveu “a sua cara parece assemelhar-se alguma cousa de
rosto de uma mulher“, já Fernão de Cardim, foi menos gentil com os elogios e afirmou que seu “rosto parece de mulher mal toucada”, seja lá o que quer dizer isso. A foto abaixo, retirada daqui, permite que os leitores tirem sua próprias conclusões entre as supostas semelhanças entre mulheres e preguiças. Eu achei particularmente interessante o espécime de preguiça pelada da ponta esquerda.
Pois bem, como sempre, a mentira tem perna curta, ou melhor neste caso, braços longos.
Feliz dia do Biólogo (atrasado)
Tudo bem, eu sei, estou dois dias atrasado. Mas tenho uma boa desculpa, estava exercendo o direito da profissão, afinal biólogo que é biólogo passa o dia “biologando”. Passei os últimos três dias em campo, mais precismante na pequena cidade de Quissamã percorrendo 40 quilômetros do trecho de litoral mais selvagem do estado do Rio de Janeiro, em busca de aves, baleias, golfinhos e tartarugas marinhas
Sempre que tento explicar o meu trabalho para alguém que não é colega de profissão, quase sempre a pessoa me interrompe antes que eu acabe de falar e comenta algo do tipo “essa sua vida é muito boa, sempre viajando conhecendo lugares e pessoas novas”. A foto abaixo, tirada no dia do biólogo, reflete um pouco do “jeito biólogo de ser”. Não, não estou chamando os biólogos de sujismundos, embora conheça um que é capaz de passar até cinco dias no campo sem jogar uma gota de água na cabeça. Segundo ele, é preciso ter consciência sobre o problema da falta de água no planeta… mas, o ponto aqui não é esse.
Lá estava um bando de gaivotas-de-capuz-cinza (Chroicocephalus cirrocephalus) há uns 200 metros de distância, pousada na margem de uma lagoa quase seca. A região norte do estado do Rio de Janeiro é um dos poucos lugares do sudeste do país onde essa espécie ocorre, e essa era uma boa chance de tirar uma foto do bicho. Fiz alguns clicks ainda de longe para garantir o registro (foto abaixo), mas era preciso me aproximar mais para conseguir uma foto melhor. Se as aves não vêm ao ornitólogo, o ornitólogo vai até as aves! Só havia um problema, a lagoa, que no final da estação seca havia se convertido em um mar de lama.
Pés descalços e lá vou eu atolado até o joelho de pouquinho em pouquinho me aproximando. Já estava a uma distância razoável quando resolvi erguer a máquina para fazer algumas fotos, antes que eu apertasse o disparador, as gaivotas resolveram alçar vôo e lá se foi minha foto com elas. Já havia perdido as esperanças e retomado a minha peregrinação pela lama, foi então que uma delas deu meia volta e veio voando na minha direção como se quisesse examinar o que aquele ser humano estava fazendo chafurdando na lama, aí foi só alegria.
Moral da história? Concordo plenamente, ser biólogo é a melhor coisa do mundo, mas é preciso mergulhar de cabeça na profissão, ou melhor, atolar o pé na lama.
Dinos in Rio 2009
Se você tem algum interesse por bichos pré-históricos e não foi ao Dinos in Rio 2009, perdeu!!
O evento foi realizado no Museu Nacional do Rio de Janeiro entre 24 e 30 de agosto. Além da exibição de obras de alguns dos mais renomados paleoartistas da América do Sul, a programação da 2 Exposição Internacional de Arte Paleontológica incluiu também diversas palestras ligadas ao tema.
Infelizmente, a falta de tempo não me permitiu assistir nenhuma das palestras, mas a exposição por si só já compensou a ida e volta de Búzios para o Rio na mesma manhã. Muitas das obras pareciam tão reais que davam a impressão que a qualquer momento iam criar vida e sair correndo ou voando pelos corredores do Museu Nacional.
Apesar de não voar, uma das obras em exposição, uma réplica feita utilizando técnica animatrônica do pterossauro brasileiro Tapejara imperator, era capaz de bater asas e foi uma das grandes atrações do evento. Outras obras que chamaram a atenção foram as reconstituições do Microraptor gui, Angataruma limai, algumas incríveis miniaturas em bronze de mamíferos do pleistoceno e diversas pinturas.
Confira abaixo algumas fotos…
Duelo de Titãs, Eremotherium x Smilodon, obra do paleoartista Maurílio Oliveira
Angaturama limai, obra do paleoartista Orlando Grillo
O menino e o pterossauro Tapejara imperator , obra do paleoartista Hugo Pailos
Esculturas em bronze
Skorpiovenator bustingorryi x Homo sapiens
Da esquerda para direita, Paraphysornis rennoi, Paraphysornis brasiliensis, Paraphysornis limai
Arquivo Z – Mustela africana, a doninha-amazônica
Após alguns meses de silêncio forçado por conta de trabalho quase escravo – espero que meu chefe não leia isso -, o Caapora volta a ativa.
Desde que migramos para o ScienceBlogs, estava pretendendo iniciar uma série de postagens sobre animais brasileiros desconhecidos do público em geral, criaturas ofuscadas pela fama dos mico-leões, araras-azuis, tartarugas marinhas e demais integrantes da chamada “fauna carismática”. Pois bem, nada melhor que retomar as coisas cumprindo promessas do passado. Para inaugurar a série apresento a vocês uma doninha que poderia muito bem sofrer de crise de identidade.
Em 1735, o botânico sueco Carl Linné criou um novo sistema de classificação e nomenclatura dos seres vivos, o qual agrupava as espécies em ordem hierárquica e dava a cada uma delas um binômio exclusivo. Este engenhoso sistema foi capaz de colocar ordem no verdadeiro pandemônio que era a taxonomia e a sistemática até o início do séc. XVIII e acabou sendo tão bem aceito por zoólogos, botânicos e demais estudiosos de tudo o que é vivo, que mais de 200 anos após sua criação continua em uso praticamente sem alterações, uma impressionante façanha dentro da “metamorfose ambulante” que é a ciência.
Embora muitos pesquisadores estudiosos da biodiversidade, especialmente os não ligados diretamente a taxonomia, reclamem das mudanças ocasionais na nomenclatura e classificação de algumas espécies, um dos pilares do sistema criado por Linné é justamente a imutabilidade. De acordo com o “Principio da Prioridade” (artigo 23 do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica), o nome válido de um táxon é o nome mais antigo disponível atribuído ao mesmo, ou seja, uma vez batizada uma espécie seu nome jamais poderá ser alterado. Os casos de mudanças mencionados acima geralmente se referem a mudanças ao nível de gênero e refletem avanços no conhecimento sobre o relacionamento entre diferentes táxons. Jamais são permitidas alterações no nome científico de uma espécie por motivos outros que não a mudança de gênero por conta de novos arranjos sistemáticos ou a aplicação direta de alguma das regras do ICZN.
Imagine você, um taxonomista do século XIX, funcionário de um museu europeu e que recebe de uma das colônias de seu país um carregamento de espécimes incluindo algumas espécies até então novas para ciência. A maioria dos exemplares não possui qualquer etiqueta com informações mínimas como local e data de coleta, e ao ver a palavra “África”escrita do lado de fora da caixa, você é tentado a acreditar que os animais provavelmente foram coletados em algum lugar do continente Africano, quando na verdade parte deles é provenientes da América do Sul. Situações aparentemente inusitadas como esta, ocorriam com certa freqüência em muitos museus europeus até o final do século XIX e foram responsáveis por inúmeras injustiças nomenclaturais, como é o caso do animal que inaugura a série de postagens sobre animais brasileiros pouco conhecidos.
A doninha-amazônica (Mustela africana) é uma das sete espécies brasileiras da família Mustelidae, a maior família da Ordem Carnívora com cerca de 55 espécies, e que além das doninhas, inclui animais como os furões, a irara, a lontra e a ariranha. Como prova de quão interessante são esses animais transcrevo abaixo a frase da apresentação de um amigo, que terá sua identidade preservada, retirada de um site de relacionamentos: “Meu nome é X, sou um humano como todos vocês que estão lendo este texto, mas o que eu queria mesmo era ser um mustelídeo”.
Com quase 50 cm da ponta da cauda, que corresponde a aproximadamente metade do tamanho do corpo, até a ponta do focinho a doninha-amazônica pode ser considerada relativamente grande quando comparada a outros representantes do gênero. Vista por cima, parece ser toda marrom-avermelhado escuro, mas o queixo, as partes inferiores da pata e a barriga são claras, esta última com uma extensa mancha castanha no meio. As solas das patas são peladas e os dedos dos membros anteriores são parcialmente unidos por membranas interdigitais demonstrando que a espécie pode apresentar hábitos semiaquáticos. Até onde pude constatar, não são conhecidas imagens da doninha-amazônica em seu ambiente natural ou mesmo de animais em cativeiro, apenas fotos de peles de museus como a do espécime tipo exibido abaixo.
A doninha-amazônica foi descrita em 1838 pelo zoólogo francês Anselm Gaëtan Desmarest, o exemplar tipo (foto acima) muito provavelmente deve ter sido coletado pelo famoso Alexandre Rodrigues Ferreira, o primeiro naturalista brasileiro, e foi um dos milhares de espécimes saqueados do Museu da Ajuda de Portugal e levado para o Museu de História Natural de Paris durante a Invasão Napoleônica. Sem saber a procedência correta do exemplar que tinha em mãos, Desmarest se limitou a indicar a localidade tipo como “d’Afrique” e tratou de batizar a nova doninha como Mustela africana.
Em 1897, Emílio Goeldi, célebre zoólogo cujo nome foi imortalizado no Museu Paraense Emílio Goeldi, descreveu a partir de exemplares coletados no Pará a doninha Mustela brasiliensis. Em 1913 Angel Cabrera demonstrou que a espécie descrita por Goeldi era a mesma que havia sido batizada por Desmarest em 1838, evidenciando assim o erro do zoólogo francês. Regra existe para ser cumprida, Mustela brasiliensis passou a ser tratado como sinônimo de uma espécie que já havia sido descrita anteriormente, e Mustela africana passou a ser o nome das doninhas amazônicas.
Passados mais de 150 anos de sua descrição, Mustela africana é, ainda hoje, considerado um dos mamíferos mais enigmáticos da América do Sul e sua distribuição ainda não é conhecida em detalhes. Os poucos dados existentes apontam para uma ocorrência restrita a Bacia Amazônica, com registros conhecidos para o Brasil, Equador e Peru. Injustiças nomenclaturais a parte, o caso da doninha-amazônica nos mostra que não apenas as aparências, mas também os nomes e os zoólogos enganam e se enganam. Assim sendo, só nos resta aceitar a tirania do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica e nos conformar que a mais brasileira das doninhas será sempre “africana”!
Referências
Desmarest, A. G. (1818) Nouv. Diction. d’Hist. Nat., 19:376
Goeldi, E. (1897) Ein erstes authentisches Exemplar eines echten Wiesels
aus Brasilien. Zool. Jahrb., Abt. f. systematik, geogr. u. Biol.,
10:556-562, pi. 21, September 15, 1897.
Cabrera, A. (1913) Sobre algunas formas del género “Mustela.” Bol. d. 1. Real Soc.
Espaiiol d. Hist. Nat., 13:429-435, November, 1913.