AGORA QUE SEI
me derramar
quero distância
de tudo
que me condensa
(Bell Puã, 2019)
Ontem, dia 20 de Dezembro, em uma escola de Santo André, uma pessoa vestida com roupas de Ku Klux Klan circulava pelo pátio na hora do intervalo. A cena foi gravada por estudantes.
Esta cena, terrível, em uma escola pública me trouxe à tona vários pensamentos difusos sobre os tempos atuais. Vou trazer alguns destes pensamentos acerca dos tempos que vivemos, sobre as autorizações de violência em tempos contemporâneos.
Conversas aleatórias do grupo de pesquisa
Semana passada, em nossa reunião semanal do grupo de pesquisa, o doutorando Matheus Naville Gutierrez, citando Adorno, comentou sobre a entrevista em que fala sobre a “educação contra a barbárie”. Em sua fala, retomou a pergunta clássica que fazemos para momentos como o nazismo alemão ou mesmo governos totalitaristas, como o golpe de 64: “como foi que deixamos isto acontecer?” ou “como foi que deixamos tudo chegar neste ponto?”.
A citação de Adorno, parafraseada por Matheus, foi que a barbárie não tem que ser interrogada quando instalada, pois não deveríamos possibilitar que a barbárie comece. Aliás, o começo são pequenos indícios e acontecimentos violentos que somos coniventes e vamos deixando passar, sendo permissivos e complacentes. Por exemplo, Matheus fala sobre os horrores dos trotes universitários, que só são comentados em momentos de mortes de estudantes.
E a ditadura? E as torturas?
Por exemplo, quando um legislador fala em uma entrevista que a ditadura militar matou pouca gente, ou quando cita o maior torturador deste período para justificar o impeachment de alguém. Isto, claro, sem qualquer punição administrativa ou legal, vemos abismados e horrorizados tal discurso e seguimos nossa vida.
Ele é racista, mas no fundo é uma boa pessoa: os silenciamentos cotidianos
A violência extrema policial contra corpos negros em nossa sociedade, enquanto a branquitude passeia tranquila exaltando a segurança de grandes cidades também entra neste jogo. As cidades vivendo a partir de um silêncio dos impactos ambientais genocidas do mundo rural e de territórios indígenas. Nossa tranquilidade (nossa pois sou eu parte desta branquitude de classe média brasileira) é gerada a cada “não foi racista” ou “foi racista mas não precisa ser agressivo, foi só uma fala”, “a violência não vai resolver isto”, “é uma pena, mas não têm como produzir de outra forma”. Enquanto isso, corpos negros e indígenas seguem morrendo..
Há, também, aquele tio que faz churrasco aos domingos, racista e misógino, que acha que mulheres de família deveriam se preservar para o casamento, enquanto os homens podem transar (vulgo estuprar) as filhas de empregadas domésticas. Cada vez que levantamos a voz a uma fala assim, somos tolhidos “para não provocar” briga na família. Muitas famílias têm exemplares deste tipo em suas casas. Dessa forma, se retrucamos e geramos briga, escutamos depois “precisava ter falado isso?”.
Sim, precisava. Aliás, precisa!
PRECISAMOS SEMPRE FALAR SOBRE A ANUÊNCIA COM A VIOLÊNCIA COTIDIANA.
No mundo da educação, anos atrás, vivíamos a égide de um levante conservador que acusava educadores de doutrinação, a partir de um cerrado discurso de que qualquer debate e conversa acerca da diversidade – incluindo história do continente africano, relações étnicas, culturais, de gênero e de sexualidade – eram de viés marxista e/ou paulofreireano, comunista (ou qualquer outra nomenclatura que pareça ofensiva aos olhos daqueles que costumam se situar no espectro que chamamos de extrema direita).
Víamos embrutecer as vozes, em tom punitivista, ameaçando com filmagens, mentiras e com propostas de leis inconstitucionais. Enquanto a educação e educadores buscavam se defender, apontando as inconsistências de tamanho levante incapaz de diálogo, víamos, também, a sociedade aceitando cada vez mais estas posturas.
O que pouco se discute é o quanto os supostos conhecimentos neutros tem, ao fim e ao cabo, suas bases muito bem fundamentadas em teorias liberais e neoliberais, positivistas clássicas, que negam seu entrelaçamento com a cultura e a história de quem escreve seus pressupostos. No entanto, não é que tenhamos que abandonar todo o caldo cultural, científico, histórico (porém depende, eu particularmente acho que temos que abandonar sim). É assumir o viés. Isto é, assumir que conhecer é governar e que produzir conhecimento é parte deste movimento que é, sim, colonizador em muitas esferas. Dessa forma, impor algo como neutro, atemporal, sem viés é, exatamente, impor pela violência e supressão da pluralidade, sem debate, sem diálogo.
Uma educação sem viés se dá pela imposição de dogmas, mais do que por conhecimentos científicos, históricos e sociais. Assim, uma educação sem questionamento e diálogo é, sempre, uma educação que se dá pela violência e opressão.
Sobre o “deixa disso” e “não provoca”
Diferente do famoso “deixa disso”, estamos falando de amainar o discurso, como se não fosse grave, vendo falas sobre a intolerância de modo cotidiano. Tolerar significa “aceitar, suportar algo com resignação”. Tolerar está distante de algo bom. Significa que eu preferia que não existisse o “algo”, mas já que existe, eu suporto. Tolerância está longe, por exemplo, de ser “respeito” pela existência deste algo.
Outra fala comum é o “não provoca”. Ora, como se precisasse “provocar” para termos respostas violentas em nossa sociedade. O que provoca intolerantes (e pseudo-tolerantes) é a existência dos outros.
Em tempos como o que vivemos, temos aceitado pasmados que pessoas proclamem sua própria liberdade, considerando que, para isso, outros morram. Ou pior: precisem morrer. Têm sido dias de luta por tolerância, porque nem a ideia de suportar a existência tem sido a regra.
Como chegamos até este ponto?
Ouvindo de vozes que ocupam espaços de poder que cotas é trocar cérebros por bundas, sem retaliação.
Escutando relatos de assédio e abuso sexual e moral em espaços de produção de conhecimentos, sem retaliação.
Ficando constrangidos quando vemos a defesa de pseudociência se instalando dentro de universidades consagradas, e nos silenciando.
Percebendo aplausos para terroristas e torturadores em espaços públicos de poder (como uma câmara de deputados); sem qualquer debate ético em instâncias com status para isto.
Ouvindo que mulheres deveriam ser estupradas, minorias deveriam se curvar. Tanto quanto que embranquecimento familiar é bom. Aliás, existe aquela fala também de que bandido bom é bandido morto. Ou ainda que se morreu deveria estar aprontando.
Tem ainda aquela ideia de que tudo bem ter uma ação em Paraisópolis em que jovens morrem pisoteados, afinal baile na rua, em bairro periférico, só tem ladrão e drogado.
Todas estas falas naturalizam a mortandade de pessoas em tom punitivista e eugenista, em silêncio.
Vendo que qualquer pessoa da comunidade LGBTQIA+ é tratada, narrada, apontada como uma aberração. Dessa forma, aponta-se que sua existência não é natural, não deveria existir, achando que isto são “vozes de um tempo” e não adianta combater a fala.
A Unicamp
É bom retomar que a nossa universidade já foi alvo de uma ação racista e nazista em agosto de 2018, quando uma pessoa pichou a biblioteca do IEL com dizeres nazistas. Eu discuti esta questão, à época, neste texto aqui. Dessa forma, é preciso compreender que, longe de ações isoladas, tais atos precisam de um envolvimento ativo da comunidade universitária em seus espaços de formação.
Em suma, chegamos até este ponto por aceitar a barbárie e cultivá-la como um bebê fofo, que precisa de conforto e comida boa e quentinha, ao menor sinal de choro e desconforto. Além disso, por conivência com a opressão, a morte e a violência, chegamos neste ponto por olhar a fala que indica a morte como aceitável e, mais do que tolerá-la, considerá-la parte de nossa vida, sem qualquer retaliação. Nós basicamente olhamos para quem violenta e dizemos: não adianta falar, eles são assim. E seguimos servindo-os.
Sobre o silêncio
Durante a ditadura, Eduardo Alves da Costa escreveu uma poesia (parafraseando Maiakóvski), que vale ser retomada:
“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão.
E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
(No caminho de Maiakóvski, Eduardo Alves da Costa, 1968)
Entretanto, ainda é pouco…
Embora esta poesia seja importante, há algo que precisa ser pensado. Por um lado nos alerta acerca dos riscos que corremos em um futuro não muito distante. Seja pelo silêncio e descaso com a morte de outros, seja por perdermos a voz.
Por outro lado, não devemos alçar nossa voz em defesa da existência de outra pessoa “por um dia eu correr este risco também”. Isto por que é como aquela frase, sabe? “Nossa, parece que não tem filha”, quando vê alguém sendo machista e violento contra uma mulher.
Assim, no fundo, aqui cabe um apontamento que sempre parece escorregar nas falas. Isto é, as pessoas não deveriam violentar outra pessoa pelo fato de que o outro é um ser humano. Ou seja, todas estas violências de que estamos tratando se vinculam ao clássico movimento de desumanização. Literalmente, retirar a humanidade destas pessoas. O que as faz humanas.
E parece tão banal a diferença. Mas o que salta aos olhos é o quanto o cerne do debate é a anuência com a “categoria” homem, branco, heterossexual, cisgênero. Enquanto isso, qualquer fuga deste padrão precisa ser legitimada como ser humano (e, depois disso, ser humano de direitos…).
E eu sempre bato nesta tecla – e seguirei fazendo. Isto é, para sermos considerados humanos não nos basta termos um genoma humano. Dessa forma, é preciso que sejamos considerados como tais, dentro de uma comunidade. Ou seja, torna-se necessário o reconhecimento de nossa existência como tal.
Quando falamos de uma violência como a intolerância (e a tolerância, dentro destes conceitos abordados aqui) é da negação deste status que estamos falando. Não permitimos que os outros existam.
Quem toma a tolerância como base, no fundo, ofende-se com a existência de outros, por isso deseja (e causa) a morte.
Ficção (e realidade)
Asimov, no livro A Fundação, tem uma das frases mais emblemáticas sobre violência (particularmente uma das minhas citações favoritas). “A violência é o último refúgio do incompetente”. Se tomarmos a possibilidade de conviver com a diversidade uma questão de competência, talvez esta frase se aplique bem aos tempos atuais.
Todavia, também reside em toda esta anuência, um reforço cotidiano necropolítico – em que ações do Estado colocam em risco, propositadamente, vidas humanas. Neste caso, não é de uma incompetência jurídica e política que estamos falando. Não há espaço para incompetências quando se concorda com (e se calcula modos de) matar pessoas.
Novamente, existem pontos cirúrgicos a serem levados em conta. Isto é, por mais práticos que sejam (no sentido de executar pessoas), seguem conceituais, como construções sociais, pela banalização e silenciamento dos discursos…
Humanidades
Krenak, neste sentido, pergunta sobre como podemos falar em humanidade, se há tantos alienados da possibilidade de ser? Que humanidade é esta que se vê obrigada a viver, falar, pensar, respirar sob a mesma égide? Sendo esta égide pautada na morte da pluralidade e da diversidade? Krenak aponta para a necessidade de pensarmos um novo conceito de humanidade, que inclua a condição da vida – humana e não humana – em nosso planeta.
Finalizando
As vezes me parece que falar sobre pensar conceitos é um exercício bobo e banal. Quiçá teórico-acadêmico sem qualquer praticidade. Entretanto, esta necessidade de um novo conceito, levantado por Krenak, não é rasidão. Essa fala tem em seu cerne apontar que não temos mais que suportar estas violências cotidianas e não deveríamos nos submeter a elas. Ou seja, que as vidas estão aqui e precisam ser vistas e respeitadas como tais. Antes de virar ação, precisa ser pensamento cotidiano.
Enquanto não fizermos nada além de nos abismar, é de morte que se trata a rotina.
“Ah mas e o caso da escola, citado lá em cima”: precisa ser registrado, com a punição tal qual manda a lei. RACISMO.
A vida, em sua pluralidade, não precisa ser tolerada. É preciso que nossa existência seja naturalizada como fato.
Para saber mais
Ensino de ciências descolonizado: espaço de todos os saberes
“A Última Floresta”: novos olhares para a Educação Ambiental
Quem é ser humano? Racismo e violência cotidiana
Asimov, Isaac, A Fundação I
Bell Puã (2016) Agora que sei, In: Duarte, Mel (org) Querem nos calar, São Paulo: Editora Planeta.
Foucault, Michel (2003) A ordem do Discurso, 9ª edição, São Paulo: Edições Loyola
Krenak. Ailton (2020) Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das Letras.
Ótimo texto, excelente reflexao. É importante (mais do que isso: necessário!) que essas gotas de lucidez batam constantemente nos coracoes de pedra da sociedade. A esperanca do "furo", da cicatriz, da mudanca deve ser mantida viva.