Leitura de férias

O Maior Espetáculo da Terra, de Richard Dawkins (Companhia das Letras, 2009), de quem já havia lido A Escalada do Monte Improvável, O Relojoeiro Cego e Deus – um delírio. Dawkins mais uma vez mostra sua lucidez e sua erudição em tratar ao mesmo tempo de assuntos tão diversos, interligados pela teoria da evolução de Darwin. Ele próprio diz que já foi definido como ultradarwinista, e assume que considera como sendo um elogio.

Além de seu conhecimento sobre o assunto, Dawkins é engraçado, irônico, por vezes sarcástico, mas sempre muito respeitoso com aqueles que não entendem, ou que simplesmente não querem entender, a teoria da evolução. Traz inúmeros exemplos de sua bagagem de conhecimento que constroem o livro que é fundamental para o bom entendimento da teoria de Darwin.

Não que outros livros também não o sejam. Sendo um assunto particularmente interessante, os livros (que li) de Dawkins são praticamente complementares uns aos outros. Fica evidente que o autor trata do assunto com a desenvoltura de quem leu e releu uma biblioteca sobre a teoria de evolução e assuntos correlatos.

Um professor que preza pelo bom aprendizado de seus alunos deve deixar muito claras suas intenções e os termos dos quais faz uso. Assim Dawkins inicia sua trajetória sobre O Maior Espetáculo da Terra, explicitamente sobre “teoria”, termo muitas vezes objeto de controvérsias, mas também sobre “fato”, “conjectura” e “teorema”. Caminha em seguida por apresentar as observações que levaram Darwin a elaborar sua teoria. E exemplos de macroevolução, alguns muito divertidos (como a dos caranguejos da espécie Heikea japonica, mencionados na fantástica série “Cosmos”, de Carl Sagan). Ressalta, ainda, a importância de experimentos bem elaborados que indicam claramente as evidências dos processos macroevolutivos.

Estive pensando em Luciano Huck e sua indignação quando teve seu Rolex roubado, quando li o capítulo “Relógios”, contumaz e implacável. Por melhor que fosse o Rolex de Huck, não seria capaz de indicar o tempo geológico das grandes transições do processo evolutivo. Geologia, dendrocronologia, decaimento radioativo, e mais adiante relógios moleculares, indicam uma concordância para a ocorrência de fósseis que dois Rolex dificilmente indicariam para uma mesma hora-minuto-segundo. Mesmo sir Arthur Conan Doyle, e seus personagens Holmes e Watson, dificilmente poderiam imaginar que detetives seriam úteis para fundamentar os argumentos de Dawkins. A lógica investigativa de crimes do passado é exatamente a mesma para se estabelecer a ocorrência de fósseis, entender a presença de órgãos vestigiais, investigar 45.000 gerações da bactéria Escherichia coli e mudanças dos padrões de coloração do peixinho Lebistes de acordo com o ambiente em que se encontra.

Há alguns anos tive uma conversa interessante com um colega mórmon. Tendo visitado a cidade de Salt Lake City, no estado de Utah (EUA), fiquei impressionado com a sede da igreja e o enorme anfiteatro mórmon. Comentei com ele minha visita, e o assunto rapidamente derivou para ciência e a teoria da evolução, à qual ele refutou dizendo que ainda existiam inúmeras lacunas, elos perdidos entre fósseis humanos, que contrariavam a lógica evolutiva. Perguntei para ele se já havia lido algum livro sobre a teoria da evolução. Obviamente ele me respondeu que não. Para aqueles que ainda acreditam em elos perdidos, lacunas, Dawkins explica que, na verdade, tais questionamentos não passam de quimeras. Quimeras também seriam as “formas de transição” entre os diversos grupos taxonômicos: “rãcacos”, “crocopatos”, “elefanzés”, “cangucerontes” e “bufaleões”. Também explica os inúmeros mal-entendidos comumente mencionados, muitas vezes até na mídia, sobre ancestralidade de grupos de animais, pois não descendemos de macacos, mas temos um ancestral comum. Confesso que não sabia que as aves não formam um grupo separado, mas são répteis (páginas 153 e 154). Exemplos de “continuidade anatômica” (termo inventado por mim) entre fósseis e formas atuais são amplamente citados, até mesmo Darwillus masillae, fóssil de primata datado de 47 milhões de anos encontrado na Alemanha (PLOS One, 19 de maio de 2009), anunciado como “a oitava maravilha do mundo, que finalmente confirmaria a teoria de Darwin”.

De animais para hominídeos e seu precursores, o autor dá uma aula sobre evolução das formas humanas. Com tantas evidências, fica difícil desacreditar o processo de transformação gradativa dos primatas. Só mesmo negando-se a ver os fósseis, como no hilário diálogo entre a Sra. Wendy Wright e Dawkins. Com tais evidências Dawkins reforça ainda mais com dados de epigênese (teoria do desenvolvimento de um organismo pela diferenciação progressiva de um todo inicialmente indiferenciado). Dawkins vai longe, e fundamenta os princípios da formação dos seres vivos nos princípios físico-químicos de comportamento da matéria. Devo “tirar meu chapéu” para o autor, pois a maioria de muitos biólogos (e químicos!) que conheço consideram bioquímica “um porre”! Mas Dawkins não se intimida, e mostra que tais princípios estabelecem o funcionamento das células, consideradas a “unidade básica” dos seres vivos.

Dali para a deriva dos continentes e separação das espécies, Dawkins questiona o porquê, Porquê, PORQUÊ dos marsupiais estarem todos na Austrália se tivessem saído da Arca de Noé, no monte Ararat. Da mesma forma, o porquê, Porquê, PORQUÊ de todos os animais da ordem Edentata (tatus, preguiças e tamanduás) terem migrado do monte Ararat direto para a América do Sul, sem deixar nenhum “parente” pelo caminho. Para explicar a razão da omissão de tais evidências por parte dos que contestam a teoria da evolução, cita o livro Why evolution is true, de Jerry Coyne: “As evidências biogeográficas da evolução agora são tão poderosas que eu nunca vi um livro, artigo ou conferência criacionista tentar refutá-las. Os criacionistas simplesmente fazem de conta que as evidências não existem”. Essa é uma tática muito utilizada por aqueles que não querem enfrentar evidências. E prossegue na sua dissertação de inter-relações filogenéticas que demonstram de forma irrefutável os 3,5 bilhões de anos de história evolutiva da biodiversidade terrestre.

Sem se perder, Dawkins apresenta os contundentes argumentos evolutivos da biologia molecular. Graças à descoberta da técnica da reação de polimerização em cadeia (PCR, polymerase chain reaction), que permite a amplificação de fragmentos de DNA, hoje é possível se utilizar de relógios moleculares para se calcular taxas de mutações ao longo de milênios. E com isso “montar” árvores de parentesco filogenético entre espécies e entre outros grupos biológicos. Desta forma, a teoria da evolução se confirma, mais uma vez, através da biologia molecular, juntamente à paleontologia, geologia e dendrocronologia, além da verificação dos processos de seleção natural, hoje observados até mesmo em laboratório.

Os remanescentes da história evolutiva encontram-se presentes nos seres vivos, em suas formas corporais, em seus órgãos internos. Cérebros, asas, olhos, plano corporal segmentado, nervo laríngeo. Além do terrível design desinteligente da dor nas costas, da bolsa do coala que é aberta para baixo, seios nasais com abertura para o topo, e das vespas icneumonídeas, que certamente devem ter inspirado “Alien – o 8º passageiro” de Ridley Scott.

Mas nada disso, nenhuma mudança, nenhuma mutação, nenhuma cadeia alimentar, a vida não seria possível sem a
energia solar. Dawkins volta à química para explicar como a energia solar é a única fonte de energia para que todo o processo evolutivo tenha acontecido. E, por isso, não há nenhuma violação de lei termodinâmica na evolução (embora tal argumento não seja mencionado pelo autor)*. E a evolução é inexorável. Não há lugar para beleza, perdão ou qualquer sentimento na luta pela sobrevivência. Esta simplesmente ocorre, de acordo com a seleção natural, e origina a biodiversidade e a perda de biodiversidade. Por mais que talvez fosse possível se planejar tal processo, a teodiceia evolucionária não se sustenta.

Ainda me faltando ler o último capítulo, é reconfortante saber que Dawkins, mesmo depois de aposentado, continua um exímio escritor de divulgação da ciência e demonstra um conhecimento invejável sobre a teoria da evolução, com argumentos irrefutáveis permeados de bom humor e histórias anedóticas. Darwin certamente apreciaria O Maior Espetáculo da Terra.

*Em tempo (08/1/09): No último capítulo Dawkins faz uma análise detalhada e perspicaz do último parágrafo do livro de Dawrwin, A Origem das Espécies:

Assim, da guerra da natureza, da fome e da morte surge diretamente o mais excelso objeto que somos capazes de conceber, a produção dos animais superiores. Há grandeza nesta visão de vida, com seus vários poderes, insuflada que foi originalmente em algumas formas ou em uma, e no fato de que, enquanto este planeta prossegue em seu giro de conformidade com a imutável lei da gravidade, de um começo tão simples evoluíram e continuam a evoluir infindáveis formas belíssimas e fascinantes.

Nesta análise, menciona textualmente que não pode haver engano sobre a fonte original de energia que mantém a vida na Terra: o Sol. (páginas 384-387) E por isso a segunda lei da termodinâmica não é violada, jamais. Logo, segundo Dawkins:

“(…) a energia do Sol impele a vida, de modo que, por uma laboriosa rota limitada por essas leis, evoluem prodigiosos feitos de complexidade, diversidade, beleza e uma impressionante ilusão de improbabilidade estatística e design deliberado.” (grifo do autor).

A dura realidade acerca da ignorância sobre a Teoria da Evolução, apresentada nos dados coligidos e comentados por Dawkins no apêndice, é de ser lamentada por todos os que compreendem, verdadeiramente, a ciência e o método científico. Sobre este ponto, um comentário final: o livro de Sandro de Souza, “A Goleada da Darwin” (Record, 2009), é o primeiro, no meu comnhecimento, que aborda a questão sobre o criacionismo no Brasil (para uma resenha, veja aqui). A contracapa do livro de Souza apresenta dados para os quais não é mencionada uma fonte (infelizmente não tenho o livro em mãos). Mas seria interessante se verificar a extensão dos números apontados por Souza sobre a crença no criacionismo no Brasil, tal como Dawkins os apresenta em seu livro.

Ciência, Tecnologia e Sociedade

Duas notícias publicadas hoje no jornal Folha de São Paulo on-line me chamaram a atenção. A primeira:

Projetos brasileiros de captura de CO2 não saem dos laboratórios – reportagem de Breno Costa, da Agência Folha, em Belo Horizonte
Visto como um dos principais meios de contenção do aquecimento global, projetos de sequestro de CO2 ganham corpo nos laboratórios de universidades brasileiras, mas ainda enfrentam ausência de “feedback” do poder público e de investimentos privados. A Folha localizou com o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) ao menos 39 projetos de pesquisa em andamento em 18 instituições brasileiras, com desenvolvimento de novos mecanismos para o sequestro de carbono. Ainda não há, porém, aplicação em larga escala de tecnologia criada nessas universidades. Os mecanismos são testados, com sucesso, nos laboratórios. Mas, para escalas maiores, é preciso muito mais dinheiro.

A segunda:

Apesar dos iPods, sequenciamento genético, internet e Twitter, cerca de 30% dos norte-americanos dizem pensar que até 2010 já deveríamos estar mais avançados tecnologicamente. Nem todos esperavam viver como Jetsons, personagens da série de desenho animado futurista dos anos de 1960, mas uma pesquisa da Zogby International com mais de 3.000 adultos nos Estados Unidos mostra que muitos estão pouco animados sobre o quão longe chegamos ao fim de uma nova década.
“A faixa etária mais propensa a estar decepcionada com o atual patamar de avanço tecnológico é entre 35 e 54 anos (36%)”, informa a Zogby em comunicado sobre a pesquisa. Cerca de 21% das pessoas acreditam que estamos tecnologicamente mais avançados do que pensavam que estaríamos até 2010, enquanto 37% acreditam que estamos no caminho para cumprir com as expectativas. Cerca de um terço das pessoas de 70 anos ou mais disseram pensar que o atual nível tecnológico é mais avançado do que pensavam que seria. “Aqueles entre 18 e 30 anos são muito menos propensos do que as gerações anteriores a afirmar que os avanços tecnológicos até o momento excederam suas expectativas”, disse a Zogby. Os homens são mais propensos que as mulheres a dizer que esperavam avanços maiores até 2010 a respeito de um estilo de vida tecnológico parecido com os Jetsons, com carros voadores e empregados robôs.

Por vezes pode ser difícil perceber avanços tecnológicos quando não se conhece a ciência que os fundamenta. Porém, algumas mudanças são mais do que importantes, por mais difícil que seja percebê-las, uma vez que já estão entranhadas na sociedade. Lembro-me quando entrei em contato com email, pela primeira vez há 15 anos. E com a internet há 14 anos. 14 anos! Somente 14 anos. O mundo sofreu uma verdadeira revolução depois da implantação da www (world wide web). Ou será que alguém tem alguma dúvida sobre isso?

Outra descoberta que revolucionou completamente a história de planeta: a descoberta da reação de polimerização em cadeia (PCR, polymerase chain reaction), que permite amplificar fragmentos de DNA em quantidades muito maiores para que possam ser seqüenciados. Tal descoberta permitiu não somente estudar a biologia molecular dos seres vivos com muito mais segurança, mas também a descoberta de genes que controlam doenças, testes de paternidade definitivos (muitos homens não devem ter gostado da descoberta da PCR…), processos evolucionários. E a descoberta da PCR foi feita no início dos anos 90, mais ou menos na mesma época em que a internet começou a se expandir.

Questão combustíveis: bom, é bem sabido que o carro movido a gás hidrogênio, absolutamente não poluente, existe há vários anos. Porque não é lançado no mercado? Interesses econômicos, muito fortes. Mas esta tecnologia está pronta para ser implementada.

Projetos tecnológicos são muito importantes e interessantes. Mas só são possíveis graças à ciência, que dá fundamentação à tecnologia. A inovação tecnológica só funciona bem com uma parceria efetiva com o setor industrial, com um sistema de proteção da propriedade intelectual (patentes) extremamente eficaz, e com um mercado potencial ávido por novidades.

Carros que voam? Empregados robôs? Seria bom que as pessoas procurassem entender os princípios científicos que fundamentariam tais objetos de luxo. Totalmente dispensáveis (pelo menos para uso individual).

Esta postagem pode ser muito mais aprofundada. É bem possível que outras, relacionadas a esta, apareçam aqui ao longo de 2010.

Biotecnologia de Insetos

Insetos são únicos, no seguinte sentido: sua principal forma de comunicação se baseia em substâncias químicas. Tais compostos orgânicos são comumente denominados de semioquímicos, ou mediadores de comunicação química. Estes incluem:
a) feromônios – substâncias químicas de comunicação entre indivíduos de uma mesma espécie.
b) alomônios – substâncias químicas produzidas por indivíduos de uma espécie que estimula uma resposta comportamental em indivíduos de outra espécie.
c) kairomônios – substâncias químicas que favorecem indivíduos que as recebem e prejudicam os indivíduos que as emitem.
Além de substâncias atratoras e repelentes, também. Insetos são verdadeiras fábricas de substâncias químicas, mas várias espécies acumulam estas substâncias de suas presas (que podem ser plantas, fungos, bactérias e até outros insetos).

Sabendo que insetos são ricos em substâncias químicas e, consequentemente, também em enzimas que participam na biossíntese destas substâncias, pesquisadores da Justus-Leibig-University Giessen e da Fraunhofer-Gesellschaft (Alemanha) decidiram estabelecer um programa de “Biotecnologia de Insetos”, para o qual já conseguiram 4 milhões de Euros. Desta maneira, esperam descobrir e desenvolver novos medicamentos, novos métodos para o controle de pragas, enzimas para utilização industrial, dentre outras aplicações.

Por exemplo, ao longo da evolução várias espécies de insetos desenvolveram a capacidade de biossintetizar ou acumular substâncias para evitar infecções bacterianas. Desta maneira, estas substâncias podem servir de modelo para a descoberta e desenvolvimento de novos antibióticos. Outras espécies de insetos desenvolveram substâncias que as tornam mais “competitivas” no seu ambiente, desfavorecendo outras espécies de insetos. Estas substâncias químicas podem ser utilizadas no controle de pragas, sem que afetem outras espécies, como abelhas, que são extremamente importantes para a polinização de flores e também para a produção de mel. Enzimas produzidas por insetos podem ser úteis para a degradação de lignina, o principal componente da casca de árvores (e extremamente útil para a indústria química). Enfim, a utilização e aplicações da química dos insetos pode ser extremamente abrangente.

Tive a oportunidade de realizar meu doutorado em um laboratório de química literalmente vizinho a um laboratório de entomologia. Os dois grupos estudavam ativamente a ecologia química de insetos como formigas, joaninhas, cupins, dentre outros. Meu orientador (Prof. Jean-Claude Braekman), juntamente com seu colega D. Daloze, publicaram dezenas de trabalhos sobre química de insetos com o prof. Jacques Pasteels (entomologista), todos da Université Libre de Bruxelles. É um dos inúmeros temas absolutamente fascinantes da química de produtos naturais.

Fonte da notícia: ScienceDaily. As fotos de J.C. Braekman (esquerda) e J. Pasteels (direita) foram obtidas na web. Infelizmente a foto de JCB não está muito boa. A de Pasteels o retrata em 1996.

Vitamina C e células tronco

Vitamina C. Quem nunca ouviu falar verdadeiras maravilhas sobre ela? Desde o tempo dos descobrimentos, em que o escorbuto se prevenia somente nos navios que transportavam frutas cítricas. Escorbuto é a doença que surge em decorrência da carência de vitamina C. Muito mais tarde, Linus Pauling lançou uma grande propaganda sobre a vitamina C, dizendo que deveria ser consumida em grandes quantidades. Embora Linus Pauling tenha sido desmentido por nutricionistas, que afirmam que o excesso de vitamina C é eliminado pela urina, e pode causar stress renal, as fotos do fim da vida de Pauling ao lado de sua esposa são impressionantes. Pauling faleceu aos 93, de câncer.

A vitamina C é um potente antioxidante e atua na reparação de tecidos danificados, eventualmente como agente anti-envelhecimento. Parece que tal atributo tem seus fundamentos. Artigo publicado no número de dezembro (2009) da revista Cell Stem Cell apresenta resultados de que vitamina C favorece a conversão de células adultas em células tronco.

Células adultas podem ser “reprogramadas” em células com características similares às das células tronco embrionárias, sendo então denominadas células tronco pluripotentes induzidas (iPSCs). Todavia, seu potencial terapêutico é limitado.

Pesquisas realizadas pelo grupo coordenado pelo Dr. Duanqing Pei, do South China Institute for Stem Cell Biology and Regenerative Medicine do Guangzhou Institutes of Biomedicine and Health, da Academia Chinesa de Ciências, objetivaram medir a produção de radicais livres de oxigênio durante a reprogramação de células adultas em células tronco. Assim, testaram antioxidantes para que estes pudessem, de alguma maneira, controlar a produção de radicais livres durante este processo. Os pesquisadores verificaram que vitamina C aumentou a geração de iPSCs. Na presença de vitamina C, as células adultas tiveram sua mudança de expressão genética acelerada, bem como sua “reprogramação” para células tronco. Surpreendentemente, os pesquisadores não observaram os mesmos efeitos com outros antioxidantes. Somente a vitamina C apresentou retardamento do processo de envelhecimento celular.

Caraca! Linus Pauling iria certamente gostar desta história. Gostaria de saber a opinião da profa. Mayana Zatz sobre este trabalho. De qualquer maneira, sou fã de limonada.

A referência completa do trabalho publicado é: M. A. Esteban, T. Wang, B. Qin, J. Yang, D. Qin, J. Cai, W. Li, Z. W., J. Chen, S. Ni, K. Chen, Y.n Li, X. Liu, J. Xu, S. Zhang, F. Li, W. He, K. Labuda, Y. Song, A. Peterbauer, S. Wolbank, H. Redl, M. Zhong, D. Cai, L. Zeng and D. Pei, Vitamin C Enhances the Generation of Mouse and Human Induced Pluripotent Stem Cells, Cell Stem Cell, 24 December 2009, doi:10.1016/j.stem.2009.12.001.

Enciclopédia Genômica das Bactérias e Archea

Dá para imaginar um grupo de organismos mais diversificado do que os insetos? São cerca de 800.000 espécies. E de plantas? Cerca de 350.000. E de microrganismos?

A estimativa é que existam 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 espécies de microrganismos. Se este número for verdadeiro, muito, mas muito menos de 1% são conhecidas e caracterizadas. E destas, uma pequena fração é de uma enorme importância histórica, econômica, social e científica. Histórica, sim, pois a descoberta da penicilina influenciou fortemente o desenrolar da II Guerra Mundial e o desenvolvimento dos antibióticos nos anos seguintes. Econômica, pois muitos produtos e processos são atualmente decorrentes da utilização de inúmeras linhagens microbianas: na produção de vitaminas, enzimas, aromas, antioxidantes, medicamentos, álcool combustível. Social, consequentemente. Científica, pois, desde que Antonie van Leeuwenhoek observou pela primeira vez estes seres microscópicos, estes nunca tiveram sua importância diminuída. Pelo contrário. Análises de DNA atuais só se tornaram possíveis com o advento da técnica de PCR, polymerase chain reaction, que possibilita a amplificação do DNA em quantidades apreciáveis para sua análise. A técnica de PCR só foi possível de ser utilizada graças ao isolamento da enzima que possibilita tais análises a partir da bactéria Thermus aquaticus.

Um projeto extremamente ambicioso pretende descrever as espécies de microrganismos do planeta Terra. Coordenado pelo Department of Energy Joint Genome Institute (DOE JGI), o projeto objetiva a elaboração da Enciclopédia Genômica das Bactérias e Archea [Genomic Encyclopedia of Bacteria and Archaea (GEBA)]. Os primeiro 56 genomas deste projeto foram publicados na revista Nature em seu número de 24 de dezembro. Um belo presente de natal para a ciência.

Segundo o diretor do DOE JGI, Eddy Rubin, “Os microrganismos participam em praticamente todos os processos biológicos do planeta. Sua descrição genômica revolucionou o conhecimento científico que hoje dispomos destes seres microscópicos. A informação obtida a partir do genoma destas 56 primeiras espécies analisadas forneceu uma enorme variedade de novas enzimas e rotas bioquímicas, que podem ser extremamente úteis para a humanidade, na produção de biocombustíveis, biorremediação e como o CO2 é ‘capturado’ da atmosfera, por exemplo.”

Até hoje, apenas as linhagens microbiológicas chamadas de “culturáveis” (por crescer em meios de cultura artificiais) puderam ser bem caracterizadas e exploradas. A intenção dos pesquisadores do DOE JGI é, literalmente, descrever a ‘matéria negra’ microbiológica do planeta Terra. Com isso, conhecer também como estes microrganismos interagem entre si e com outras espécies biológicas. Até hoje as descrições genômicas de microrganismos focalizaram o estudo de linhagens economicamente importantes. A intenção do projeto da GEBA é ampliar significativamente a “árvore filogenética” dos microrganismos, buscando aqueles pouco conhecidos e ainda totalmente desconhecidos. Como conseqüência, espera-se que o conhecimento adquirido como fruto deste projeto possa esclarecer a diversidade genética dos microrganismos, demonstrar como os microrganismos adquirem e/ou exercem novas funções no ambiente em que se encontram, entender como funcionam as comunidades microbiológicas e a sua complexidade. A obtenção de produtos microbianos na forma de sequências genéticas específicas, enzimas e metabólitos deve ser uma decorrência natural do desenvolvimento deste projeto.

Por exemplo, dois pesquisadores do DOE JGI, Natalia Ivanova e Athanasios Lykidis, descobriram novas celulases, enzimas que degradam celulose em seus componentes – diferentes tipos de açúcares – que podem ser utilizadas na produção de biocombustíveis.

O projeto GEBA está sendo desenvolvido conjuntamente por pesquisadores do DOE JGI e da DSMZ (Deutsche Sammlung von Mikroorganismen und Zellkulturen, ou Coleção de Microrganismos e de Culturas Celulares da Alemanha). As linhagens seqüenciadas estarão disponíveis para serem posteriormente utilizadas. As sequências genômicas já descritas no âmbito do projeto GEBA estão disponíveis na página da revista Journal Standards in Genomic Sciences (SIGS), que é de acesso aberto. A lista completa dos projetos piloto do GEBA pode ser encontrada na página http://www.jgi.doe.gov/sequencing/GEBAseqplans.html

Bactérias halofílicas de 30.000 anos

A sobrevivência de microrganismos em ambientes extremos constitui uma característica incomum de bactérias e de outros tipos de seres microscópicos, muitas vezes denominados de micróbios.

Abre parêntese: “micróbio” é uma designação bastante antiga, até mesmo “out-of-date”, de microrganismos como bactérias, fungos, cianobactérias, além de inúmeros outros organismos que só podem ser observados em microscópios. O termo micróbio deveria ser definitivamente abandonado, pois tem um significado muito geral, que não quer dizer nada. É muito melhor que se especifique a qual tipo de microrganismo se refere: se bactéria, fungo, ou outro qualquer. Fecha parêntese.

Fato é que um tipo particular de bactérias é o das halófilas, ou halofílicas, bactérias que se desenvolvem em ambientes com alta concentração de sais, particularmente cloreto de sódio (NaCl). Vem daí o seu nome, uma vez que cloro é um halogênio (halo: de halogênio; filo: afinidade). A presença de bactérias halófilas já foi detectada em sedimentos ricos em sais, datados de mais de 250 milhões de anos. Porém, a viabilidade celular de tais bactérias tem sido continuamente criticada (ou seja, se estas bactérias ainda permaneceram vivas depois de todo este tempo), levantando-se a hipótese de que uma manipulação menos cuidadosa teria levado à contaminação destas amostras com bactérias “atuais” e vivas.

Em estudo publicado neste ano na revista Geology, pesquisadores da State University of New York conseguiram isolar e cultivar bactérias que estavam até então “dormentes”, na forma de esporos, de minerais ricos em sais datados de entre 22.000 a 34.000 anos. Junto com tais bactérias os pesquisadores encontraram fragmentos de algas do gênero Dunaliella. O tamanho das células das bactérias encontradas, muito menor do que o tamanho “normal” das células de bactérias comuns, indica que as bactérias que permaneceram todo este tempo em contato com altas concentrações de sais entraram em estado de desnutrição extrema (starvation), podendo manter-se unicamente por se aproveitar da matéria orgânica fornecida pelas algas com as quais permaneceram em contato. As bactérias isoladas mostraram ser do grupo das Archea, um dos grupos mais primitivos de microrganismos, e foram classificadas como pertencentes aos gêneros Halorubrum, Natronomonas e Haloterrigena. Em seu trabalho os autores tomaram cuidados extremos para evitar qualquer tipo de contaminação com bactérias atuais, e comprometer suas análises.

Microfotografias em branco e preto, e em cores, de células de Dunaliella em fissuras com fluidos em cristais salinos. A: células de Dunaliella (flechas brancas) e células de procariontes (flechas pretas) obtidas em sedimentos de 17,8 metros da superfície (e com cerca de 34.000 anos); B: carotenos cristalinos incrustantes e saindo de células de Dunaliella (14,5 me da superfície, antigas de 26.000 anos), F.I.: limite da inclusão fluídica produzida por Dunaliella; C: células de Dunaliella de 17,8 metros de profundidade (34.000 anos), algumas com carotenos incrustados.

O estudo começou com a coleta de amostras de sedimentos de 90 m de profundidade, na região do Vale da Morte na Califórnia (EUA), contendo altas concentrações de sais. Foram obtidos cristais com orifícios muito pequenos, alguns com menos de 1 micrometro de abertura. Fluidos coletados destes orifícios apresentaram células de vários procariontes (microrganismos desprovidos de membranas dentro de suas células, ou seja, membranas que delimitam o núcleo celular, por exemplo, como é o caso de bactérias). Além disso, os pesquisadores verificaram que tais microrganismos são abundantes nos fluidos de cristais de sais da região em que foram coletados.

Para se ter uma idéia da concentração da solução de sais utilizada pelos pesquisadores para o crescimento das bactérias isoladas, de até 4,3 moles de sal/litro, a concentração de NaCl em uma solução fisiológica (utilizada para colírios, nariz e tratamento de diarréia em crianças, p. ex.) é de 0,15 moles/litro. Não é qualquer tipo de bactéria que cresce em um meio de crescimento contendo uma concentração de sais tão alta. Somente bactérias muito bem adaptadas a um meio tão salino crescem nestas condições. Esta concentração de sais também evita a contaminação por bactérias “atuais”. Os autores processaram 881 cristais coletados em sedimentos do Vale da Morte, e conseguiram isolar bactérias a partir de 5 destas amostras. As bactérias isoladas demoraram 3 meses para “aparecer” nas placas de Petri (onde as bactérias são isoladas em laboratório). Uma vez que conseguiram isolar as bactérias, os pesquisadores analisaram uma parte do seu RNA ribossômico, chamada de 16S. Esta região do RNA ribossômico é muito utilizada para a classificação de bactérias. Estas análises forneceram informações sobre a classificação das bactérias isoladas, como partencentes ao grupo das Archea halofílicas.

Os autores também encontraram nos mesmos cristais salinos fragmentos de algas do gênero Dunaliella, que são conhecidas por produzir glicerol para manter o equilíbrio osmótico destas algas no ambiente salino em que se encontram. Este mesmo glicerol pode servir de fonte de carbono a organismos procariontes que vivem associados a estas algas. De fato, os pesquisadores observaram que as bactérias halofílicas isoladas dos cristais coletados são capazes de crescer em placas contendo unicamente glicerol como nutriente. Além disso, também verificaram que as algas Dunaliella presentes nos cristais secretam material intracelular para o interior das fissuras dos cristais quando se encontram na presença das bactérias. O fluido secretado pelas algas pôde ser visualizado sob condições naturais, pois contém carotenos, que são substâncias coloridas, visíveis até mesmo a olho nú, que cristalizam quando em contato com os cristais salinos. Segundo os autores, a quantidade de glicerol liberada no fluido de uma única célula de Dunaliella é capaz de ser utilizada por uma única célula de procarionte para manter seu DNA em boas condições durante 12 milhões de anos.

Os autores concluiram seu trabalho afirmando que fissuras em cristais salinos contendo fluidos com material orgânico constituem microambientes ideais para a longa sobrevivência de microrganismos halofílicos. Isso porque a constituição salina destes cristais diminui a probabilidade de ocorrência de danos no DNA dos microrganismos ali presentes. Também verificaram que tais microrganismos não entram em “estado de dormência”, mas sim em miniaturização, de maneira a diminuir ao máximo suas necessidades metabólicas, para o qual somente glicerol produzido por algas basta para a sua sobrevivência por longos períodos de tempo.

A referência completa deste trabalho é Brian A. Schubert, Tim K. Lowenstein, Michael N. Timofeeff and Matthew A. Parker, How do prokaryotes survive in fluid inclusions in halite for 30 k.y.?, Geology, 2009, 37, 1059-1062. Veja aqui.

Agradeço ao Prof. Brian Schubert, quem gentilmente me enviou uma cópia de seu trabalho (I wish to thank prof. Brian Schubert who kindly sent me a pdf copy of his article). Este é um belo exemplo de processo adaptativo via seleção natural, ocorrido há milhares de anos, que favoreceu a “permanência” de apenas algumas espécies de bactérias em ambientes muito adversos.

O frágil bioma dos pampas brasileiros

Aparentemente muito interessante, deve valer a pena ler o artigo publicado por pesquisadores da Universidade Federal do PAMPA-Campus São Gabriel, intitulado “The Brazilian Pampa: A Fragile Biome”. A referência encontra-se indicada a seguir. Como o artigo foi publicado em revista “Open Access”, pode ser baixado diretamente aqui.

ResearchBlogging.org

Luiz Fernando W. Roesch, Frederico C.B. Vieira, Vilmar A. Pereira, Adriano Luis Schünemann, Italo F. Teixeira, Ana Julia T. Senna and Valdir Marcos Stefenon (2009). The Brazilian Pampa: A Fragile Biome Diversity, 1 (2), 182-198 : 10.3390/d1020182

Ciência fundamental ou ciência aplicada?

Em referência à postagem anterior, o texto a seguir foi publicado no Jornal da Ciência, 1998, 13 (395), 7, sem as citações finais em inglês. O mais inusitado é que o então diretor científico da FAPESP, Prof. José Fernando Perez, publicou texto relacionado ao mesmo tema no mesmo número do Jornal da Ciência, 1998, 13 (395), 6. Não encontrei versões on-line destes textos. Assim, escaneei e disponibilizei ambos no blog Química de Produtos Naturais.

Ciência fundamental ou ciência aplicada?

Pure and applied science are inseparable and can only grow together.”
 Charles H. Townes, Nobel de física em 1964

Tal questão têm sido frequentemente levantada, porém com muito mais ênfase na última década visto que o investimento na pesquisa científica atingiu números sem precedentes. A fusão das indústrias farmacêuticas Glaxo Wellcome e SmithKline Beecham, por exemplo, levará as mesmas a aplicar um montante equivalente a 2,34 bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento durante os próximos anos, e deverá constituír uma companhia com valor de mercado estimado em 125 bilhões de dólares (The Globe and Mail, 02.03.98) . Se por um lado o setor empresarial privado internacional não mede esforços para desenvolver novos produtos e processos, por outro lado pouco se sabe sobre investimentos dessa natureza no mercado brasileiro. Seja porque pouco se divulga sobre esse assunto ou porque tal investimento é negligível.

No Brasil, tanto a pesquisa científica quanto tecnológica são essencialmente financiadas por órgãos públicos estaduais e federais de fomento. Este financiamento é e continuará sendo por muito tempo absolutamente imprescindível. Porém, este é um quadro em mudança: atualmente, estimula-se a elaboração de projetos de pesquisa científica e tecnológica em parceria com o setor privado, de tal maneira que o conhecimento adquirido ou gerado possa levar ao desenvolvimento de processos e produtos de utilidade para a sociedade. Essas iniciativas só podem ser vistas com bons olhos, tendo-se em vista necessidades regionais de desenvolvimento científico e tecnológico. Contudo, ainda questiona-se a eficácia de tais programas pois acredita-se que o financiamento de pesquisa por parte do setor privado possa limitar o campo de atuação da ciência que obtenha este tipo de financiamento. A história nos mostra, porém, que cabe ao próprio cientista conduzir o trabalho de investigação científica. De acordo com sua filosofia de trabalho, o cientista poderá caracterizar sua investigação seja por um caráter mais fundamental, seja por um caráter mais aplicado, ou ainda por uma mistura de ambas, denominada “pesquisa fundamental orientada à aplicação”.

Como exemplo da primeira, poderíamos citar: a) o trabalho de Niels Bohr, físico alemão que dedicou-se a estudar a estrutura do átomo no início do século; b) as pesquisas de Linus Pauling sobre a natureza das ligações químicas e a estrutura das proteínas; c) as descobertas de Albert Einstein sobre a teoria da relatividade e a LASER (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation), ou; d) a descrição por Bloch e Purcell do fenômeno de Ressonância Magnética Nuclear (RMN) no fim dos anos 40. Interessante, porém, é notar que todos estes exemplos serviram de base para o desenvolvimento posterior de inúmeros projetos de ciência aplicada, os quais modificariam o rumo da história: no caso de Bohr e outros físicos e químicos que se dedicaram ao estudo das partículas fundamentais da matéria, ao desenvolvimento e aplicação da energia atômica; no caso de Pauling, ao desenvolvimento da biologia molecular e em última instância da biotecnologia; no caso de Einstein, a teoria da relatividade, em conjunto com outras descobertas, permitiu a implantação dos programas de exploração espacial e a LASER levou à descoberta da MASER (Microwave Amplification by Stimulated Emission of Radiation) a qual, por exemplo, é utilizada em leitores de discos compactos e códigos de barra; e no caso de Bloch e Purcell, ao desenvolvimento das inúmeras técnicas de RMN tanto em estado sólido como em estado líquido, dentre as quais a geração de imagens em medicina. Fato interessante, quando Einstein descreveu a LASER, o fenômeno foi considerado de “interesse puramente teórico, sem qualquer utilização prática”.

Como exemplo da segunda forma de utilização da ciência, de caráter essencialmente aplicado, poderíamos citar a descoberta da técnica de polymerase chain reaction (PCR), descrita por Kary Mullis (prêmio Nobel de química de 1993), e as inúmeras invenções de Thomas Edison. No primeiro caso, Mullis estava preocupado em como obter maior quantidade de material genético, sem ter que se limitar a extrair DNA durante semanas a partir da fonte original do mesmo. As decorrências da descoberta da técnica de PCR são inúmeras, como, por exemplo, para a realização do Projeto Genoma Humano. No caso de Edison, é notório o fato deste cientista não ter se preocupado em estudar a natureza do fenômeno elétrico, mas apenas em desenvolver uma enorme gama de aparelhos que pudessem ser úteis. Tanto em um caso como em outro, a visão de ciência essencialmente aplicada foi essencial para descobertas revolucionárias.

A terceira forma de utilização da ciência, que combina pesquisa fundamental e aplicada, poderia ser exemplificada pelos trabalhos de Louis Pasteur. Por possuir ligações familiares com produtores leiteiros, Pasteur esteve inicialmente inclinado à trabalhos de natureza essencialmente aplicada. Contudo, com o intuito de melhor compreender a contaminação do leite e outros alimentos, Pasteur rapidamente iniciou estudos de caráter fundamental para encontrar as razões para tal e dos fenômenos microbiológicos em geral, bem como para as causas de doenças infecciosas e da natureza quiral do átomo de carbono. Mesmo assim, Pasteur nunca perdeu de vista a aplicação prática de seus conhecimentos na indústria de alimentos, por exemplo, que consequentemente levou à descoberta do método de pasteurização do leite.

Outra área que combina conhecimentos de pesquisa fundamental e aplicada é a descoberta de novos medicamentos. Inúmeros cientistas estão atualmente envolvidos em projetos para melhor entender o funcionamento do sistema imunológico, de resistência de microorganismos e na descoberta de novas substâncias farmacologicamente ativas, para que estes conhecimentos possam contribuir para melhorar a qualidade de vida de uma forma geral. Particularmente neste último caso, a natureza inter- e multidisciplinar da pesquisa em saúde humana é tão ampla que deixou de ser tema de áreas exclusivas do conhecimento e passou a integrar ecologia, biofísica, medicina, farmacologia, antropologia, química, bioquímica e biologia.

O ponto fundamental é que, tanto a ciência aplicada como a ciência fundamental mantêm entre si laços bastante estreitos para serem separadas como se fossem dois ramos extremos da atividade científica. Tal separação foi proposta por Vanevar Bush, quando da elaboração de um plano nacional norte-americano para o financiamento de pesquisa científica, solicitado pelo então presidente Franklin D. Roosevelt após a 2a Guerra Mundial. Além do plano de Bush ter sido bastante criticado pelos seus pares, o plano sugeria que se fortalecessem estudos principalmente na área de agricultura, engenharia mecânica e para a fabricação da gasolina sintética, a qual, acreditavam, estaria sendo desenvolvida pelos alemães. Em essência, a comissão que elaborou o plano solicitado por Roosevelt priorizou estudos
que já vinham sendo desenvolvidos, pois é praticamente impossível prever novas e importantes descobertas. Dentre aquelas que surgiram nos anos seguintes (e que passaram “despercebidas” à referida comissão) estão os antibióticos, então já descritos por Fleming, mas completamente ignorados, os jet aircraft (“carros flutuadores”), os foguetes e a exploração espacial, os computadores, o transístor, a MASER, a engenharia genética, entre outras.

O estabelecimento de prioridades para a pesquisa científica é uma realidade. Do mesmo modo, os próprios cientistas não devem perder a convicção de que a pesquisa fundamental é absolutamente necessária. Como complemento, voltar os olhos para a aplicabilidade do conhecimento científico deve ser uma das metas daqueles que são responsáveis pela formação de profissionais altamente qualificados, bem como pela geração de conhecimento.

A integração universidade-setor privado, porém, ainda é vista com extrema cautela por diversos setores da comunidade científica. Talvez por falta de experiência, acredita-se que o desenvolvimento de projetos de ciência aplicada deixará de lado a busca de questões fundamentais. O caso de Pasteur mostra que não é esse o caso. Cabe ao cientista combinar os elementos necessários, sejam eles de caráter fundamental ou aplicado, para o desenvolvimento de um projeto em particular. Também, cabe à iniciativa privada levantar questões e problemas, bem como estimular a busca de soluções de caráter aplicado que possam contribuir para o aprimoramento de um setor produtivo mais competitivo, menos imediatista e que se integre de forma muito mais efetiva à comunidade científica e ao desenvolvimento da nação.

Para terminar, aproveitaria para citar o livro, “Science and Society”*, o qual reúne uma série de palestras proferidas por ganhadores de prêmios Nobel por ocasião das “John C. Polanyi Nobel Laureates Lectures” em 1994 na Universidade de Toronto. Os textos contém menções interessantes sobre a questão ciência basica e ciência aplicada:

“Nature speakes in many tongues. They are all alien. The task of the scientist pursuing “curiosity-driven” research is to try to discover something of the vocabulary and the grammar of one or more of these languages. To the extent that the scientist succeeds, we gain the ability to decipher many messages that nature has left for us, blithely or coyly. No matter how much human effort and money we might invest to solve a practical problem in science or technology, failure is inevitable unless we can read the answers that nature is willing to give us. The basic research that provides such understanding is the most practical investment we can make.” (no capítulo The Shape of Molecular Collisions, por Dudley R. Herschbach, prêmio Nobel de química de 1986).

“Science and technology can bring about changes within a decade or so. Young people can expect to see profound changes in their lifetime. No one knows now what they will be – making it difficult to plan for them – but they will take place, and science will play a major role in producing them. How can we devise a plan to accomplish important tasks if we do not know where the changes will be? A look ahead reveals nothing very clearly about presently unknown and new discoveries. Contrary to what most people believe, scientists do not possess the ability to predict the future, despite their intensive knowledge.” (no capítulo Unpredictability in Science and Technology, pelo prêmio Nobel de física de 1964, Charles H. Townes).

“We do not know exactly what research will pay off, what will build up, but we do know, historically, that important discoveries will occur and that they will have a major effect on technology and business.” (idem)

 “Society must be interested in ideas and must value them; it must be excited by them and by new discoveries. We must accept a long-range approach. We must accept failures by encouraging trial and error, because no person can plan what scientific research is going to be successful. We must support people in a variety of situations, especially people with different ideas, because the different ideas are most likely to lead to something new. There must be a diversity of approach, a diversity of situations, a diversity of people. There must also be a lot of interaction among them so they can exchange their thoughts.
The places where the activity is high, where many scientists are interacting, where there are outstanding people, where many factors are just right – those are the circumstances that are going to pay off the most. That doesn’t mean we don’t need the others, but we must see that there are places where the important factors all add up; that’s where we can expect to find the most intensive productivity.” (idem)

*(editado por Martin Moskovits, editora da Universidade de Toronto, 1995, ISBN 0-88784-589-4)

Petição em favor da pesquisa básica

Uma petição (abaixo assinado) com 18.000 assinaturas de acadêmicos do Reino Unido foi encaminhado para o Conselho de Financiamento de Educação Superior da Inglaterra (Hefce, Higher Education Funding Council for England), solicitando a não-inclusão da avaliação do impacto econômico em pedidos de financiamento de projetos de pesquisas.

Em setembro último (2009), a Hefce revelou que 25% das solicitações de auxílio à pesquisa encaminhadas à Research Excellence Framework (REF) seriam avaliadas segundo critérios de impacto econômico e social das propostas apresentadas. O novo sistema, designado “Research Excellence Framework (REF)” para avaliação da qualidade de projetos de pesquisa em instituições de ensino superior, entrará em vigor em 2013. Tal mudança provocou tensão no meio acadêmico, preocupado com o impacto que tal medida resultará no desenvolvimento da pesquisa básica (de caráter fundamental).

Uma campanha encabeçada pela União de Universidades e Faculdades do Reino Unido (UK’s University and College Union, UCU) obteve 18.000 assinaturas para que as propostas da REF sejam retiradas e para que os conselhos de financiamento trabalhem em conjunto com pesquisadores, visando a elaboração de um novo modelo de avaliação de propostas de projetos, que estimule a pesquisa básica em vez de diminuir a importância desta.

Alex Rossiter, da UCU, diz que “a pesquisa acadêmica não deve estar sujeita às tendências do mercado”, e ainda que “a grandeza da pesquisa científica é a busca do conhecimento, sem que existam pressupostos ou idéias preconcebidas sobre os objetivos a serem atingidos”. Manifesta ainda sua preocupação sobre os “indicadores de impacto”, que podem levar à direção oposta do que preconizam.

Seis ganhadores de prêmios Nobel encontram-se entre os signatários da petição, dos quais quatro são químicos. Lee Cronin, professor de química da Universidade de Glasgow, acredita que a “ênfase na pesquisa de impacto” pode levar á uma falsa idéia do que constitui o real valor da ciência para o público em geral. Segundo Cronin, “estão dizendo ao público que nossa pesquisa é determinística – mas não é. Na verdade, esta é uma grande montanha russa de fracasso e de falta de inspiração, e o público não está sendo advertido sobre a perda da alma científica.” Diz ainda que “deve-se oferecer as melhores condições financeiras às melhores idéias para realizar descobertas, e não estabelecer restrições”. “Com o direcionamento objetivando o ‘impacto científico’, o público em geral passará a ver a ciência com objetivos pré-definidos, em vez de levar às fronteiras do conhecimento.”

Todavia, a Hefce nega que tais premissas sejam verdadeiras, e afirma que tais pressupostos não passam de mal-entendidos. Que as propostas não devem predizer como promoverão impacto para a sociedade, e sim esclarecer onde e quando houve impacto para a sociedade em decorrência do desenvolvimento científico. Atesta ainda que não se espera que projetos de pesquisa individuais promovam impacto social, mas sim o conjunto de programas investigativos realizados por uma determinada instituição acadêmica.

As avaliações da Hefce serão realizadas durante o verão (junho-agosto) de 2010, e, segundo o Conselho, serão baseadas em evidências e experiência. Todavia, os critérios de impacto não foram retirados. As 18.000 assinaturas da petição encaminhada à Hefce indicam a real preocupação dos acadêmicos ingleses sobre tais mudanças de critérios na avaliação de propostas de projetos científicos.

fonte: Chemistry World.

Nota: escrevi um texto sobre este assunto em 1998, no Jornal da Ciência, 13 (395), 7. Vejam a postagem seguinte.

Programa BIOTA-FAPESP recebe segundo Prêmio Ford de Conservação Ambiental

Uma das mais ousadas iniciativas científicas do século XX no Brasil completou 10 anos neste ano, e foi homenageado, pela segunda vez, com o prêmio Ford de Conservação Ambiental. Segundo o coordenador geral do Programa BIOTA/FAPESP, Carlos Joly

10 anos depois o Programa BIOTA/FAPESP volta a ganhar o Prêmio Ford de Conservação Ambiental. Em novembro de 1999 o então recém-lançado Programa BIOTA/FAPESP: O Instituto Virtual da Biodiversidade ganhou o Prêmio Henry Ford de Conservação Ambiental na categoria “Iniciativa do Ano”. O premio reconhecia o esforço de articulação da comunidade científica e da Diretoria Científica da FAPESP, em criar um programa de pesquisa integrando pesquisadores e instituições do Estado de São Paulo, em torno das premissas estabelecidas pela Convenção sobre a Diversidade Biológica.

O Programa BIOTA/FAPESP começou a ser planejado no início de 1996, quando a Diretoria Científica convocou uma reunião, com cerca de 100 lideranças da grande área que a temática caracterização, conservação e uso sustentável da biodiversidade abrange. Nesta reunião, realizada dia 8 de abril no Auditório da FAPESP, ficou patente o grande interesse dos pesquisadores pela criação de um Projeto Especial de Pesquisa e a pertinência da FAPESP apoiar um Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade, inicialmente denominado BIOTA-SP.

Nesta reunião também ficou definido que o Programa deveria ter como escopo todas as formas de organismos vivos do Estado de São Paulo (daí o nome BIOTA), fossem terrestres de água doce ou marinhos. O foco dos projetos deveria cobrir toda gama de pesquisas que a temática caracterização, conservação e uso sustentável da biodiversidade abrange.

Desde o início o Programa optou por utilizar a internet como meio de comunicação: a) criou uma homepage; b) criou uma Lista de Discussão; c) iniciou o diagnóstico do conhecimento biológico acumulado para cada grupo taxonômico, de microrganismos a mamíferos e angiospermas, incluindo os pesquisadores que trabalham, especificamente, com cada grupo e a infraestrutura instalada para conservação ex situ (Museus, Herbários, Coleções de Microrganismos, Arboretos, Jardins Botânicos) e in situ (Unidades de Conservação); d) organizou o workshop Bases para Conservação da Biodiversidade do Estado de São Paulo para sintetizar as informações produzidas e definir a estrutura e forma de implantação do Projeto Especial de Pesquisas em Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo.

A penúltima etapa deste processo foi concluída no dia 7 de maio de 1998, quando 16 Projetos Temáticos articulados foram formalmente protocolados na Fapesp. Com a aprovação dos primeiros projetos no final de 1998, e a publicação dos dois primeiros volumes da série “Biodiversidade do Estado de São Paulo: síntese do conhecimento ao final do século XX”, em fevereiro de 1999, o Conselho Superior da Fapesp aprovou a criação do Programa Biota/Fapesp – O Instituto Virtual da Biodiversidade, que foi oficialmente lançado no dia 25 de março de 1999, em sessão solene, no Auditório da Fapesp.

Este esforço da comunidade científica do Estado, com o apoio da Coordenação de Ciências Biológicas e da Diretoria Científica da FAPESP, justificou a concessão do Prêmio Henry Ford de Conservação Ambiental na categoria “Iniciativa do Ano”, no final de 1999.

Dez anos depois, reconhecido internacionalmente como uma experiência bem sucedida, especialmente porque: a) conseguiu gerar subsídios para o aperfeiçoamento da Legislação do Estado de São Paulo na área de conservação e recuperação da biodiversidade nativa, b) formou um exército de Mestres (169), Doutores (108) e Pós-Docs (80) capacitados e treinados para trabalhar em caracterização, conservação, recuperação e uso sustentável da biodiversidade; c) gerou mais de 750 artigos em periódicos nacionais e internacionais especializados, além de 16 livros e 2 Atlas; o Programa BIOTA/FAPESP passou a ser utilizado como modelo para implantação de programas semelhantes em outros Estados brasileiros (por exemplo Bahia, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul) e para o Programa Nacional atualmente em discussão no CNPq.

No âmbito internacional o Programa BIOTA/FAPESP estabeleceu parcerias com a DIVERSITAS, especialmente o core Project bioGENESIS cujo Science Plan foi concluído em evento organizado em conjunto na FAPESP, com o BIOTA África, com o ICSU-LAC e com o SCOPE.

Compreendendo que grande parte do sucesso do Programa vem da permanente avaliação crítica e discussão com a comunidade de pesquisadores que atuam nesta grande área temática, este ano a renovada Coordenação do Programa promoveu uma intensa discussão do Plano de Metas e Estratégias para 2020 (Science Plan & Strategies for the next decade), cuja 1ª versão foi amplamente discutida no Workshop BIOTA + 10: definindo metas para 2020, sendo posteriormente submetida às instâncias superiores da FAPESP, buscando a renovação do apoio ao Programa BIOTA/FAPESP para os próximos dez anos.

Coroando um 2009 de muita atividade, 3 Workshops (BIOTA + 10, Applied Ecology and Human Dimensions in Biological Conservation e DNA Barcoding), 2 chamadas (Coleções e Acervos Biológicos & Biodiversidade Marinha) o Programa BIOTA/FAPESP ganhou, novamente, o Premio Ford, desta vez na Categoria Ciência e Formação de Recursos Humanos.

Aproveitando este novo reconhecimento da importância do Programa BIOTA/FAPESP para pesquisa em caracterização, conservação, recuperação e uso sustentável da biodiversidade a Coordenação do Programa lança o novo site do BIOTA/FAPESP (http://www.biota-fapesp.net/) e coloca seu Plano de Metas e Estratégias para 2020 (Science Plan & Strategies for the next decade) em discussão, para que pesquisadores que atuam nesta grande área temática possam, por 90 dias, enviar críticas e sugestões. Terminado este prazo a Coordenação do Programa redigirá a versão definitiva do Plano de Metas e Estratégias que guiará as iniciativas do Programa nesta nova década.

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