Perdido e achado: o tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca

por Rafael Marcondes

Muita gente costuma achar que a maioria dos animais e plantas já são bem conhecidos e não falta muito a se descobrir. Um dos objetivos do Caapora é revelar que essa crença está muito longe da realidade: nossa fauna é tão diversa e o Brasil é tão grande e relativamente pouco explorado cientificamente que todo ano são descritas dezenas de novas espécies de animais no nosso país, incluindo até mesmo aves, que supostamente estão entre os grupos de animais mais bem estudados. Mas talvez mais interessante e surpreendente do que a descrição de novas espécies é o fato de que há diversos casos de aves que foram descritas há décadas ou às vezes quase um século atrás e nunca mais foram vistas! Os últimos anos, felizmente, têm visto uma série de redescobertas destas espécies conhecidas apenas de sua descrição. Como minha primeira contribuição nessa empreitada do Caapora para revelar as camadas mais obscuras da fauna brasileira, o tema desse post é uma dessas aves “perdidas e achadas”: o tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca.

O tiê-bicudo foi descrito pelo zoólogo francês Jacques Berlioz em 1939 com base em um único macho coletado no ano anterior por J. A. Vellard, um especialista em aranhas que era o naturalista de uma expedição pelo Brasil do famoso antropólogo Claude Lévi-Strauss. Esse espécime, o holótipo da espécie (principal indivíduo no qual se baseia a descrição de uma espécie nova), encontra-se até hoje no Muséum National d’Histoire Naturelle, em Paris e, segundo Berlioz, foi coletado em “Juruena, northeast of Cuyaba”.

Por mais de seis décadas que seguiram à sua descoberta o tiê-bicudo jamais voltou a ser encontrado, tornando-se uma das maiores incógnitas da ornitologia neotropical. Por praticamente 64 anos tudo que se sabia sobre a espécies resumia-se ao espécime coletado por Vellard e as poucas informações fornecidas em sua descrição. Informações básicas permaneceram completamente ignoradas por todo esse tempo, como por exemplo a morfologia da fêmea, vocalização, alimentação e demais aspectos sobre sua biologia. Não por acaso o tiê-bicudo chegou praticamente a ser considerado extinto.

Lévi-Strauss acampado à beira do rio Machado, onde ficou quinze dias entre outubro e novembro de 1938, com alguns índios tupi-cavaíba. Agarrando-se à bota dele, está a macaquinha Lucinda, que o antropólogo adotou durante a viagem. Clique na imagem para ser direcionado a reportagem da revista Leituras da História sobre esse famoso antropólogo que chefiou a expedição em que foi descoberto o tiê-bicudo.

Os poucos ornitólogos que se empenharam em redescobrir a espécie esbarravam em uma outra dificuldade além de sua raridade: o rio Juruena fica a noroeste de Cuiabá, não a nordeste, como mencionado por Berlioz, o que levantava certa suspeita sobre o real local de coleta da espécie. Essa história só começou a mudar em 2003, quando o tiê-bicudo foi encontrado no Parque Nacional das Emas, no estado de Goiás, surpreendentemente a 750 km de distância do rio Juruena! (Buzzeti & Carlos, 2005) Desde então, o tiê-bicudo, inclusive fêmeas, tem sido regularmente observado nessa localidade.

Mas a virada mesmo para o tiê-bicudo só veio três anos depois, em 2006, quando o ornitólogo Carlos Ernesto Candia-Gallardo, da Universidade de São Paulo, gravou e fotografou um macho da espécie às margens do rio Juruena, na região da Chapada dos Parecis, estado do Mato Grosso. Esse registro acabou levando ao primeiro estudo da espécie desde sua descrição, publicado por Candia-Gallardo em 2010 na revista Bird Conservation International, em parceria com Luís Fábio Silveira e Adriana Akeni Kuniy. É desse artigo que retiro a maior parte da informação nesse post.

Tiê-bicudo, Conothraupis mesoleuca. Fotografado por Carlos Candia-Gallardo no local de sua descoberta original. Clique na imagem para ver mais fotos da espécie no Wikiaves.

A gravação do canto da espécie nesse primeiro encontro permitiu, através da técnica do play-back (em que aves, altamente territoriais, são atraídas pela reprodução do canto de sua própria espécie), a localização de mais indivíduos em diversas localidades na mesma região. Descobriu-se que o hábitat preferencial da espécie são matas ou campinas alagadas ao longo de rios, contrariando a descrição original da espécie, que dava o hábitat como “arid forest or scrub”. Isso talvez ajude a explicar por que o tiê-bicudo passou tantos anos desaparecido: os ornitólogos estavam simplesmente procurando no hábitat errado!

Clique para ouvir a vocalização da espécie gravada por Bruno Salaroli e disponível no site Wikiaves.

A redescoberta também levou à primeira descrição detalhada da fêmea do tiê-bicudo, com base em um espécime coletado e depositado no Museu de Zoologia da USP, onde ficará para sempre disponível a todos os pesquisadores interessados em estudar a espécie.

Os pesquisadores que redescobriram o tiê-bicudo também esclareceram com precisão a localidade-tipo da espécie (localidade onde foi coletado o holótipo). Pesquisando nos diários de Castro Faria, um antropólogo brasileiro que também acompanhava a expedição de Lévi-Strauss, descobriram que na data em que o tiê-bicudo foi coletado, Vellard estava acampado na Estação Telegráfica de Juruena (a noroeste de Cuiabá, confirmando o erro na descrição original). Essa estação era parte da linha telegráfica completada em 1915 pela comissão liderada pelo marechal Cândido Rondon, e que até a década de 1960 era o único acesso àquela região.

Observou-se que o tiê-bicudo vive geralmente solitário ou em casais, e alimenta-se de insetos e principalmente sementes. Esse hábito alimentar não é comum dentre os Thraupidae, a família em que o tiê-bicudo tem sido classificado e que também inclui os demais tipos de tiês, as saíras, saís e sanhaços. Isso nos leva a um dos aspectos mais surpreendentes sobre o tiê-bicudo: ele talvez sequer seja um tiê! O comportamento em geral da espécie, incluindo hábitos alimentares e a vocalização, e os padrões de plumagem assemelham-se mais aos de espécies de outra família, os Emberizidae, que inclui aves como os tico-ticos, os cardeais e os papa-capins. Especificamente, a plumagem, formato do bico e hábitat do tiê-bicudo são muito semelhantes aos do papa-capim-de-coleira, Dolospingus fringilloides, uma espécie pouco conhecida da família Emberizidae que vive no norte do Brasil, Venezuela e Colômbia. Estudos do esqueleto e moleculares (lembrando que apesar da redescoberta, o tiê-bicudo ainda é absolutamente desconhecido do ponto de vista genético e da anatomia interna) poderão revelar o verdadeiro parentesco do tiê(?)-bicudo.

O capítulo mais recente na história do tiê-bicudo veio em 2010, quando o ornitólogo Guilherme R. R. Brito e colegas, do Museu Nacional da UFRJ, descobriram na Serra do Cachimbo, no Pará, mais uma nova população da espécie. Essa população está a 400km do alto Juruena e a 1000km do Parque Nacional das Emas. Para uma espécie que passou décadas desaparecida, a distribuição do tiê-bicudo está se revelando mais ampla do se imaginava, ressaltando que uma das principais razões para o “sumiço” foi a simples falta de exploração científica. Sabendo onde e como procurar, aos poucos o tiê-bicudo está se revelando. Quantas espécies desaparecidas ou novas será que não estão por aí nesse Brasil, esperando serem (re)descobertas?

Infelizmente, esse post tem que terminar com um parágrafo sombrio. O tiê-bicudo está criticamente ameaçado de extinção, e estima-se que existam apenas entre 50 e 250 indivíduos vivos da espécie, somando as populações do Parque Nacional das Emas e do alto rio Juruena (BirdLife, 2011) – a nova população, na Serra do Cachimbo, ainda não entrou nesse cálculo. Seu hábitat, áreas alagáveis às margens de rios, é naturalmente fragmentado e vulnerável, e toda a região do Centro-Oeste brasileiro está sob forte expansão agrícola, principalmente da soja. Para piorar a situação, a região do alto Juruena é alvo de projetos de nada menos do que doze usinas hidrelétricas, sendo duas de grande porte. Pelo menos cinco já estão em construção (http://www.oeco.com.br/reportagens/37-reportagens/23761-o-bicudo-e-as-barragens). Os alagamentos causados por essas usinas podem suprimir grande parte do hábitat da espécie. Talvez o tiê-bicudo tenha sido redescoberto apenas para logo ser perdido de novo, dessa vez para sempre. Ou bem a tempo de ser salvo.

Referências:

BirdLife, 2011. Species factsheet: Conothraupis mesoleuca.

Brito, G. R. R. et al. 2011. First record of the Cone-Billed Tanager (Conothraupis mesoleuca) in Pará state, Brazil, with inferences about its potential distribution. Libro de Resumenes – IX Congresso de Ornitologia Neotropical.

Buzzeti, D. e Carlos, B. A. 2005. A redescoberta do tiê-bicudo (Conothraupis mesoleuca) (Berlioz, 1939). Atualidades Ornitológicas, vol. 127, p. 4–5.

Candia-Gallardo, C. E., et al. 2010. A new population of the Cone-billed Tanager Conothraupis mesoleuca, with information on the biology, behaviour and type locality of the species. Bird Conservation International. vol. 20, n. 2, p. 149-160.

Discussão - 1 comentário

  1. [...] família dos urutaus guarda ainda uma das espécies de aves brasileiras “perdidas e achadas” nas últimas décadas: o urutau-de-asa-branca (Nyctibius leucopterus), que ficou incríveis 168 [...]

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