A invisível Lagoa da Turfeira, uma tragédia ambiental anunciada…
por Luciano Moreira Lima
Uma das últimas grandes áreas úmidas da região sul fluminense corre sério risco de desaparecer
Das milhares de pessoas que diariamente passam pelo km 299 da Rod. Presidente Dutra (BR 116), poucas devem notar que contornada a oeste por uma abrupta curva do rio Paraíba do Sul está uma das últimas grandes áreas úmidas naturais da região sul fluminense, a Lagoa da Turfeira (também conhecida como Lagoa da Kodak devido a proximidade com uma antiga fábrica da referida empresa). Essa situação, no entanto, causa pouco espanto já que a grande lagoa parece não ser invisível apenas para os motoristas concentrados na estrada. Não adianta procurar pelos seus cerca de 700.000 metros2 em um detalhado mapa hidrográfico do município de Resende produzido em parceria com a prefeitura municipal –disponível aqui –. Você não verá a indicação de nem um pingo d’água em seu local. Fato no mínimo inusitado, uma vez que lagoas até 10 vezes menores são corretamente indicadas no mapa e se dos dermos conta que a Lagoa da Turfeira pode ser claramente observada a mais de 10.000 metros de altitude via Google Earth.
Se uma área equivalente a mais de 70 campos de futebol pode passar desapercebida, imagine aqueles que a habitam, como o diminuto tricolino (Pseudocolopteryx sclateri) de topete invocado e míseros 9,5 cms. Não bastasse o tamanho, esse bonito passarinho vive apenas no meio de densas moitas de taboa (Typha domingensis), uma das plantas mais características de áreas alagadas no Brasil. Ornitólogos e observadores de aves sabem que para poder observá-lo não basta apenas vontade é preciso se embrenhar-se no taboal, muitas vezes afundar com água acima do joelho e ficar de ouvidos atentos ao seu discretíssimo canto – ouça aqui – .
Mais de 11 anos de visitas regulares a Lagoa da Turfeira e seu entorno imediato realizadas em parceria com o amigo e também ornitólogo Bruno Rennó, resultaram no registro não apenas do discreto tricolino mas também de pelo menos outras 169 espécies de aves silvestres no local. Nesse total, que representa cerca de 20% das aves do Estado do Rio de Janeiro, estão incluídas espécies ameaçadas de extinção em âmbito estadual e diversas aves migratórias paras quais a lagoa representa um importante refúgio.
Os resultados desse estudo – parcialmente apresentados no XVI Congresso Brasileiro de Ornitologia – tornaram evidente a importância da Lagoa da Turfeira para conservação da biodiversidade fluminense e auxiliaram na sensibilização do poder público municipal para que algo fosse feito em prol da sua preservação . Dessa forma, em 2010 a Agência do Meio Ambiente do Município de Resende elaborou o documento “Estudo Técnico Preliminar para Constituição de Área Protegida no Banhado da Kodak”, e entre as principais conclusões estavam:
“A criação e implantação de unidade de conservação no Banhado da Kodak alinha-se aos compromissos internacionais do Brasil de proteger o ambiente, conforme metas estabelecidas pela ONU, em se tratando do Ano Internacional da Biodiversidade.
A criação e implantação da unidade acarretará ainda um aumento do ICMS do município, conforme prevê a Lei no 5.100 de 04 de outubro de 2007 e o Decreto no 41.101 de 27 de dezembro de 2007.
Constata-se, portanto, que a unidade trará grandes benefícios para o município […]”
Dois anos se passaram após finalização desse documento e aos poucos a Lagoa foi novamente caindo no esquecimento dos órgão governamentais, até a semana passada. Na última quinta-feira (19/04), alertado por amigos, descobri que a prefeitura Municipal de Resende havia orgulhosamente publicado uma imagem da Lagoa invisível em sua página do Facebook acompanhada de alguns parágrafos de notícia. No entanto, ao invés do título fazer qualquer menção a alguma ação visando a conservação da área lá estava: “As obras da Nissan”. Meio sem rumo e sem querer acreditar no que eu havia lido me dei conta que não apenas não seria feito nada para conservar a Lagoa como também estava sendo orgulhosamente anunciada o que poderia se tornar em uma das maiores tragédias ambientais recentes da região sul fluminense. Esperei o final de semana chegar e fui para casa em Resende ver com meus próprios olhos a situação da área.
Era por volta de 14:00 do último sábado (21/04). Da Dutra já era possível ver uma gigantesca área de terra exposta meio enevoada pela poeira levantada pelo ir e vir constante de uma verdadeira frota de máquinas escavadeiras e caminhões. Segui pela estrada de chão paralela a lagoa e encarado pelo olhar apreensivo das pessoas que lá trabalhavam fui desviando das escavadeira e caminhões. O barulho constante dos motores e a poeira contribuíam deixando o cenário de destruição ainda mais desolado e logo me dei conta que eu não era o único perdido por ali, uma garça-branca-grande (Ardea alba) e duas garças-brancas-pequenas (Egretta thula) voavam sem rumo entre duas poças já lamacentas sendo repetidamente espantadas pelas máquinas.
Procurei em vão pela área onde em 2001 havia feito o primeiro registro documentado da triste-pia (Dolichonyx oryzivorus) no Estado do Rio de Janeiro – veja a publicação científica aqui – e onde também observávamos com frequência o ameaçado coleiro-do-brejo (Sporophila collaris). Tarde demais, a passarada havia simplesmente virado terra nua. Um pouco mais para frente em uma área que ainda mantinha um pouco de vegetação uma concentração impressionante de aves, onde chamava atenção o colorido dos chopim-do-brejo (Pseudoleistes guirahuro) e da polícia-inglesa-do-sul (Leistes superciliaris), lembravam refugiados aglomerando-se as centenas e fugindo de um verdadeiro massacre.
Um pouco mais pra frente na estrada dirigi até o alto de uma colina e de lá pude avaliar melhor o estrago. A extensão da área aterrada era impressionante e embora até aquele momento tenha sido poupado o espelho d’água principal diversas áreas úmidas existentes ao seu redor foram completamente aterradas. De lá também pude rever também algo que sempre me causou especial presságio. Um antigo canal localizado no canto nordeste ligando-a ao Rio Paraíba do Sul, embora hoje esteja parcialmente assoreado já funcionou como sangradouro de suas águas podendo novamente ser utilizado para extinguí-la. No caminho de volta, entrei por uma estrada que acabava de ser aberta e estranhamente terminava no espelho d’ água, fiquei ainda mais apreensivo me perguntando a função daquele caminho.
Por conta do mestrado sou obrigado a morar em São Paulo e aos poucos vou me acostumando com os engarrafamentos, poluição e violência urbana. Por isso, nada contra a montadora de carros, tampouco contra o dito progresso que prevê que a população de Resende aumente cerca de 50.000 pessoas nos próximos 5 anos. Mas, vale lembrar que lagoas são caracterizadas como áreas de preservação permanente, por isso são áreas intocáveis.
Além disso, certamente deve ter sido produzido um estudo de impacto ambiental para uma obra dessa magnitude, o qual certamente também deve ter identificado que qualquer atividade que afete a lagoa poderá resultar em uma tragédia irreversível para biodiversidade da região. Sendo assim, gostaria também de ter tido a oportunidade de participar de alguma audiência pública onde o destino da Lagoa da Turfeira pudesse ser seriamente debatido.
Embora seu entorno já tenha sido bastante impactado ainda há tempo de salvar o que restou da última grande área úmida natural da região meridional do vale do Rio Paraíba do Sul. A implementação de uma unidade de conservação no local, em âmbito municipal ou estadual, seria não apenas uma forma de garantir a existência a longo prazo da Lagoa da Turfeira e sua rica biodiversidade, mas também a oportunidade de criação de um espaço onde através de trilhas interpretativas e um centro de visitação a população resendense conquistasse uma nova opção de lazer que vai totalmente de encontro a vocação ambiental do município. Vale lembrar o grande potencial da área para prática de uma das atividades ao ar livre que mais crescem no país a observação de aves. Não por acaso, a Lagoa da Turfeira ocupa três páginas do livro “A Birdwatching guide to South-East Brazil”, o qual traz informações detalhadas sobre alguns dos principais locais para observação de aves no sudeste do país. Sem contar nas inúmeras fotos clicadas no local e disponíveis no site WikiAves – veja aqui – e que demonstram que os ambientes da lagoa são frequentemente procurados por observadores de aves.
Por volta das 16:30 o céu nublado evolui para uma chuva fraca que ajudou a esconder os olhos cheios. De fato a ignorância é o melhor caminho para felicidade. Minha tristeza maior não era por ser testemunha ocular de tamanha agressão a natureza, mas principalmente por saber a importância daquele lugar para a vida e conhecer pelo nome e sobrenome todos aqueles fadados a buscar em vão um novo lar. Voltei para casa desolado mas disposto a fazer todo o possível para mostrar que as cores e os sons das milhares de vida que dependem da Lagoa da Turfeira fazem que ela seja considerada qualquer coisa, menos invisível. Cientes que a tragédia estava anunciada depende de nós deixar ou não que ela aconteça.
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[...] written by Luciano Moreira Lima, published in Portuguese at Caapora. [...]