No início do texto do Código de Ética Médica. Resolução CFM n 1.931/09 aparece o símbolo do Código, Janus, e a justificativa “orientação de unir em só traço o passado, o presente e o futuro”. Cabe lembrar que a construção desse “traço” passa, inevitavelmente, pela ciência, o que já é enfatizado no Capítulo I: “usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente”. Nesse sentido, nos espanta a manifestação do atual presidente do Conselho Federal de Medicina publicada no jornal Folha de São Paulo, no dia 24 de Janeiro de 2021 destacada abaixo:
“Lamentavelmente, no Brasil, há uma politização criminosa em relação à pandemia entre apoiadores e críticos do presidente da República. Assuntos irrelevantes relacionados à Covid-19 dominam o noticiário, com discussões estéreis entre pessoas sem formação acadêmico-científica na área de saúde, dando opiniões como especialistas, porém com cunho político e ideológico.
Além disso, profissionais não médicos, que se autodenominam cientistas, com imenso acesso à mídia, falam sobre tudo, inclusive temas médicos sobre os quais não têm competência para opinar —e sempre evocando a ciência, como se fossem os únicos detentores do saber, disseminando informações falsas que desinformam e desestabilizam a já insegura sociedade brasileira.” (Ribeiro, 2021, Folha de São Paulo)
Existem inúmeras questões problemáticas no texto de Mauro Luiz de Britto Ribeiro na Folha de São Paulo. Dentre elas a própria negação do papel de um conselho profissional – que inclui disciplinamento, fiscalização e normatização da profissão.
Entretanto, seria fundamental ressaltar os parágrafos em que Ribeiro aponta para as áreas que tem falado sobre discussões mencionadas como estéreis por pessoas sem formação acadêmico-científicas na área da saúde e de pessoas que se autodenominam cientistas.
Ao contrário do que possa ser pensado, a “saúde” é um campo amplo que não se restringe aos profissionais das áreas biomédicas. O texto de Mauro Ribeiro deixa explícito seu desconforto por existirem diferentes profissionais debatendo acerca da Covid-19 e seus efeitos na população e nos indivíduos. Ressaltamos, todavia, que o conceito de saúde, em si, é um campo de disputas por significados que, na pandemia, tornou-se evidente alguns dos motivos – que destacaremos neste texto.Vamos apontar algumas destas disputas e, também, seus efeitos.
“Saúde”, segundo a Organização Mundial de Saúde, significa “bem estar físico e mental”. Ao tratar da saúde como algo que deve ser debatido entre paciente e médico – em um espaço limitado de consultório e/ou hospitalar – limitamos todas as condições do que é bem estar físico e mental e como estes processos se dão para os indivíduos.
Mais do que ausência de doenças, a saúde é, no nível individual, um processo de compreensão de si mesmo, do funcionamento e percepção do seu corpo. Para tanto, poderíamos citar como profissionais envolvidos só neste quesito (sem nos alongarmos muito, fazendo um rápido levantamento): educadores, educadores físicos, professores de ciências e biologia, nutricionistas, enfermeiras, psicólogos, dentistas e médicos.
Se também incluirmos como saúde o conceito de saúde pública – advindo desde a formação dos Estados Nacionais e consolidação da estatística como ferramenta de governo, em meados dos séculos XVIII até os dias atuais, teremos como profissionais atuando, além dos citados anteriormente: estatísticos, matemáticos, biólogos, biomédicos, epidemiólogos, assistentes sociais, antropólogos, sociólogos, demógrafos, geógrafos e físicos.
Citamos, apenas, profissões que necessitam de formação acadêmica técnica e científica, facilmente relacionadas ao levantamento de dados populacionais que nos permitem aferir, compreender e gerenciar a saúde no país, para aplicar medidas de contenção de doenças e promoção à saúde populacional. Ressaltamos, neste sentido, que ainda há um verdadeiro conjunto de profissões, nomeados como técnicos e/ou auxiliares que atuam cotidianamente (e muitas vezes de forma invisível e pouco consideradas como importantes), que atuam sistematicamente no combate às doenças de modo direto com a população.
Para que todos os profissionais – formados tecnicamente – atuem com base em conhecimento acadêmico e técnico, existe um conjunto de outros profissionais – juristas, físicos, cientistas da computação, químicos, farmacêuticos, engenheiros, assim como muitas outras profissões.
Para gerar conhecimento científico sobre saúde e doenças, não basta, entretanto, apenas a formação em nível de graduação. Existe uma exigência de continuidade na formação em áreas especializadas – que incluem pesquisas de mestrado e doutorado, em grupos de pesquisa em cada área de todas profissões citadas anteriormente.
Tudo isso para que o médico consiga atender um paciente e realizar um diagnóstico? Sim. A relação médico-paciente, ou sistema de saúde-pacientes estão amparados e são antecedidos, no mundo inteiro, por normativas legais e preceitos científicos postulados por órgãos que sistematizam essas produções.
Destacamos entre estes órgãos, o Ministério da Saúde e, em primeira instância no caso vivenciado neste momento, a Organização Mundial de Saúde e o Conselho Federal de Medicina. Este último dispõe sobre a relação importante entre ciência e a tomada de decisão do profissional em seu próprio Código de Ética:
“XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”.
Na construção dos conhecimentos cientificamente reconhecidos, os cientistas são essenciais e também vem atuando, há muito tempo, junto à sociedade no que costumamos chamar de Divulgação Científica. Junto com Jornalistas Científicos, os divulgadores científicos têm buscado apurar o que vem sendo publicado dentro dos periódicos acadêmicos e técnicos, para produzir materiais passíveis de serem compreendidos pela população não especialista.
Diariamente, e mais rotineiramente desde o início da pandemia, vemos um esforço em produzir um material de qualidade, criterioso e cientificamente embasado acerca da compreensão de como a doença se desenvolve, como a ciência produz conhecimento sobre o vírus e as patologias associadas, assim como de que modo isso impacta em nossa saúde.
Falar sobre como determinantes sociais – que incluem acesso à informação – são essenciais para a promoção à saúde da população, assim como discutir o quanto tratamentos não funcionais não podem ser geridos por uma suposta “autonomia médica” sem respaldo científico não é um debate estéril, nem frugal. Especialmente quando se entende o desafio da comunicação sobre saúde em uma sociedade em que o ensino fundamental e médio sofre um esvaziamento de debates científicos aprofundados, essenciais para a promoção da cidadania, promovendo a autonomia das pessoas frente aos temas relacionados à própria saúde.
A requisição por um posicionamento do Conselho Federal de Medicina não é feito de modo descabido, tendo em vista que a medicina – como todas as profissões mencionadas neste documento – deveria ter respaldo em sua área de atuação que possui base em uma formação técnico-científica.
Aqueles “autodenominados cientistas” passam longos períodos debruçados sobre problemas inseridos em nossa sociedade e presentes em suas pesquisas em uma atividade diária que dentro de laboratórios de pesquisa, e/ou trabalhando em campo, realizando pesquisas teóricas e com coletas de dados extensas. Todo esse processo não é individual, mas passa por conhecer pontos de vista diversos, discutir com os pares, para compreender o processo de adoecimento em sua multiplicidade e, quando necessário, reformular teorias durante a pesquisa.
Não podemos esperar que profissionais da medicina, da enfermagem e do atendimento direto aos pacientes acompanhem a literatura científica tão frutífera e numerosa nos últimos meses. Também não podemos esperar que estes profissionais tenham tempo para fazer discernimentos sobre os melhores desenhos experimentais, significância de dados estatísticos e cálculos de como a doença se espalha pela sociedade brasileira. Este trabalho é feito por cientistas. Não é justo exigir isto de quem nos trata num momento tão delicado como é esta pandemia. O papel de comunicar à sociedade médica sobre as melhores práticas é do CFM. Assim como é do CFM o papel de se defender a boa prática médica e garantir a defesa da saúde da sociedade.
Exigir que as categorias profissionais respeitem e escutem a ciência e os cientistas ampliando visões sobre um determinado assunto, é sim assumir o caráter político dessas instituições – uma vez que elas existem para regulamentar a ética e a conduta destes profissionais. Isto é ter uma posição política – a de defesa da vida, da saúde e da população.
Tal como deveria ser.
Assinam este texto as equipes técnicas, científicas e administrativas dos grupo:
1 comentário
Cristiano lamb · 28/02/2021 às 12:57
Concordo