Texto de Rafael Lopes Paixão da Silva

Como disse um famoso pensador alemão do século XIX, “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Essa frase não se refere à ciência propriamente dita, mas refere-se às nossas certezas sobre como se dão as relações políticas e clamando por materialidade em nossas análises sobre a realidade.

Com a pandemia do vírus SARS-Cov-2, algo no reino da ciência foi abalado também. Primeiro que muito do que se produziu e se sabia sobre epidemias, se desmanchou no ar. Assim que este novo vírus emergiu, nos colocou frente a contradições de como nos relacionamos com o planeta. Mas isso é um ponto para outro texto, o ponto aqui é: a ciência foi chamada a desenhar e entender políticas públicas, para que pudéssemos fazer frente a essa crise global que é a pandemia de COVID-19.

Já aviso que o título é chamativo e impositivo, na linguagem moderna clickbait, como forma de ironia, ciência não é algo único e imutável e não há um modo correto de utilizar-se das ciências. 

Esse pensamento é a forma como a moderna epistemologia compreende a ciência. Epistemologia é a tentativa científica de se entender e estudar como se dá e se deu o conhecimento humano. Ou seja, a própria ciência. Logo, de forma corolária, isto é, estritamente consequente a essa constatação, é lugar comum que deva haver uma epistemologia para cada ciência. Como assim?  Ora, assim como há diferentes ciências e formas de se construir esse conhecimento, há diferentes formas de se entender e construir esses processos.

Mais uma agora, Epistemologia?

Tá mas de onde vem todas essas afirmações? Bom da epistemologia mesmo. Vamos começar por quando ela surgiu. Formalmente a palavra epistemologia é cunhada nos fins do século XV, com John Locke inserindo pela primeira vez a palavra para algo próximo do uso moderno. Nessa mesma época, a filosofia se dividia entre duas escolas de pensamento que disputavam o que seria o entendimento do que é o conhecimento humano e como ele se deu. A disputa se dava entre os racionalista de um lado, representados por Descartes, Spinoza e Leibniz, e os empiristas, Locke já citado, Hume e Berkeley

É notável como  todos contribuíram com o pensamento matemático, assim como em áreas ditas hoje em dia de “humanas”.  Naquela época não havia divisão das ciências por áreas de interesse ou qualquer coisa do tipo. Isto é, todos estudavam diversos aspectos da natureza e com diferentes ferramentas e métodos.

Porém a epistemologia só se torna um corpo sintetizado e organizado, seja lá o que isso for, ou uma ciência formal, perto do fim do século XIX. E isto vai acontecer com as postulações e investigações das consequências da lógica para dentro da matemática. 

Bertrand Russel, Ludwig Wittgenstein e Alfred Whitehead, desenvolvem noções mais estritas da lógica moderna. A partir dessas visões começam a comandar uma tentativa, que se mostrou falha, de compilar e sistematizar a forma pela qual se daria o conhecimento científico. Isto é, algo como, se sabemos como se deu o conhecimento científico e suas revoluções, podemos tentar fomentar isso deliberadamente. Ou pelo menos saber quais são os furos e as tentativas as quais deram errado. 

Incompletudes do saber

Esse esforço, principalmente de Russel, que tentou resumir a matemática e a lógica em aspectos axiomáticos. Ou seja, aspectos mínimos dos quais tudo poderia derivar, falharam. Russel falha nessa tentativa porque basicamente se constata que qualquer corpo lógico, linguagem, como a matemática, é incompleto e inconsistente. No sentido que, apesar de ser constituído por e formalizado através de lógica formal, ainda há possibilidades de que haja paradoxos, furos, inconsistências, etc.

Tá mas então nada mais é válido, nada mais é objetivo, assertivo?

De modo algum, basicamente o que conseguimos com isso tudo é uma compreensão que a ciência é uma expressão e uma construção humana. Ao ser tomada como construção humana está sujeita a diversas falhas, contextos e vieses, que vão desde fatores implícitos, como momento histórico, até fatores explícitos, política de investimento em ciência, exaltação de algumas áreas e desmerecimento de outras, para citar alguns elementos desta construção.

Thomas Kuhn, físico e epistemologista, escreve exatamente sobre isso! A ciência significa nada mais que uma sucessão, não necessariamente deliberada e organizada, de paradigmas. Estes paradigmas são subscritos por fatores sociais, históricos e culturais. Ciência é a quebra do paradigma passado e sua substituição pelo novo, essa ideia se contrapõe fortemente à ideia de Karl Popper, de que a ciência seria uma busca sucessiva da verdade.

A principal subversão que Kuhn propõe é que se quisermos medir o que é uma verdade de modo racional, é pouco producente pensar a ciência como neutra e implicitamente verdadeira. Por quê? Exatamente porque ela não advém do mundos das ideias (aqui resvalamos num neoplatonismo). A ciência não está no mundo das ideias: ela é produzida e compreendida pela materialidade humana e pelos atores humanos. Quem seriam estes atores? Sejam eles cientistas, políticos, ou até o cidadão comum, que usufruem dos avanços científicos no seu dia a dia, mesmo que quase sempre sem sequer notar isso.

Quando nos apegamos a essa ideia de ciência como neutra, ou a medida do que é certo e errado, ou ainda o que é necessário e importante pra sociedade, estamos legando à ciência um papel que não é dela.

Ciência é ferramenta, e não é validador de nada.

Assim como dizer que é só um exercício inocente de curiosidade é simplório e ingênuo. Assim, por ser fruto de nossas relações, principalmente políticas, a ciência está sujeita a toda sorte de idiossincrasias dessas atividades humanas. Idiossincrasias é: um comportamento (ou tipo de comportamentos) que é próprio de uma pessoa ou de um grupo social específico.

Sobre a relevância de compreender a ciência, para mim, cientista…

Eu sou físico e trabalho com modelagem de epidemias e análise dos dados de saúde pública. E saber sobre epistemologia e filosofia da ciência, tais como alguns dos aspectos que apresentei neste texto, , ao menos pra mim, é libertador. Mas é igualmente exigente também. Quando pesquiso e escrevo, sinto-me sempre atento a essas questões. Por exemplo: para quê e por quem a minha ciência poderá e será usada, apesar das minhas ânsias e idealizações sobre ela?

O cientista, hoje mais que nunca, precisa se ver pelo menos potencialmente como um ator político, mesmo que não ativamente. Ciência, nesses tempos de pandemia, pode servir de respaldo e fonte de credibilidade para que atores políticos tomem decisões, às vezes impopulares e necessárias. Porém também pode servir de respaldo para que o ator político tome ações em seu interesse. 

Ciência: Que tipo de ações e decisões?

Ao passo que a ciência nos fornece dados – que podem ser desde dados quantitativos, como estatísticas populacionais, até dados qualitativos, como estruturas sociais – temos em nossas mãos ferramentas que servem para governantes tomarem decisões e conduzir populações para um ou outro caminho no combate à doença.

A COVID-19 é letal, mas existem estratégias de governo que nos possibilitam como impedir que pessoas morram. Por isto chamamos de “mortes evitáveis”. Não é que ninguém morrerá, mas é evitável por ações simples e que demandam ações coordenadas e coletivas por parte da sociedade. Essas ações podem ser somente uma pactuação da política com a sociedade para que se possa caminhar numa direção desejada.

Porém, outras vezes essas ações de política pública são mais de interesse do político, que pode também estar se aproveitando do respaldo e da credibilidade que a ciência tem com a sociedade, para simplesmente impor seus interesses particulares através da estrutura pública que ele comanda.

Por fim…

Estamos atentos a isso, tanto como cientistas, quanto como cidadãos. Pois isto nos faz menos suscetíveis ao tipo de sequestro de parte da ordem pública por interesse particulares. Isto é, sequestro de pautas para valer e se cobrir de toda sorte de artifícios, às vezes a própria ciência, para impor-nos esse tipo de ação. Isso não é uma defesa de como a política é uma dádiva. Mas um chamado à realidade e à materialidade que é necessária ao estarmos sujeitos a ações políticas e seus atores.

Para saber mais

DESCARTES, René (2001) Discurso sobre o método São Paulo: Martins Fontes.

KUHN, Thomas S (1987) A estrutura das revoluções científicas, São Paulo:  Perspectiva. 

POPPER, K (1972) A lógica  da pesquisa científica, São Paulo: Editora Pensamento.

Outras leituras no Especial

Como se produz um resultado científico e o que isto tem a ver com a Covid-19?

Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 1)

Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 2)

O autor

Rafael Lopes Paixão da Silva é doutorando em física, estuda dados de saúde pública e sua dinâmica e relações com o clima é Físico, é pesquisador do Observatório Covid-19 Brasil e foi convidado pelo editorial para escrever no Especial COVID-19.

Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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