Como explicar a não adesão de parte da sociedade às medidas sanitárias de enfrentamento da COVID-19?

O Brasil vive seu pior momento da pandemia da COVID-19, até agora, chegando à triste marca de 300 mil mortes e mais de 12 milhões de casos de contaminação. Especialistas acreditam que, em função de fatores como as novas variantes do vírus, o colapso da rede hospitalar e a falta de vacinas, não se pode descartar a ocorrência de 4 mil mortes diárias pela doença até o fim de abril.

No início de março deste ano, apesar da maioria dos estados apresentarem, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), taxas de ocupação de leitos de UTI acima de 80%, o índice de isolamento social oscilava em torno de 32%, número que só não é pior do que fevereiro de 2020 (26%), quando houve o registro do primeiro caso no país. 

Assim, o país segue na contramão da pandemia, registrando na última semana de fevereiro um aumento de 11% no número de mortos, ao passo que no mundo inteiro essa porcentagem diminuiu em 6%, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), cuja previsão de que a infodemia poderia atrapalhar a resposta dos países frente à crise sanitária se concretizou.

Infodemia é a superabundância de informações – algumas precisas e outras não – que ocorre durante uma epidemia. Isso pode levar à confusão e, em última análise, à desconfiança nos governos e na resposta da saúde pública. (1)

Pesquisadores, como o professor João Cezar de Castro Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vêm apontando que a Guerra Cultural liderada pelo Presidente da República é um dos principais fatores do desencontro nas diretrizes do enfrentamento à pandemia pelas autoridades de saúde. Além disso, a retórica do Palácio do Planalto está assentada em uma grande estrutura de apoio e de atuação nas mídias sociais encarregada de enquadrar a pandemia como debate político e, assim, fortalecer uma narrativa pró-Bolsonaro em meio às crises que o governo enfrenta, conforme mostra estudo (2) do Grupo de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais (Midiars) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Desinformação no Facebook

Outro estudo do mesmo grupo (3), agora envolvendo o medicamento hidroxicloroquina (ainda sem eficácia comprovada contra a Covid-19), analisou a circulação de 70 mil publicações sobre o medicamento em páginas e grupos públicos da rede social Facebook, entre março e julho de 2020. Os resultados mostram que as URLs sobre a hidroxicloroquina (HCQ) circularam de forma polarizada tanto nas páginas quanto nos grupos, ou seja, nas duas redes há comunidades distintas, uma pró-HCQ (azul) e outra anti-HCQ (verde),

Imagem 1: Gráficos de análise de rede indicam que o conteúdo que circula em um dos clusters (ou bolhas  de informação) não circula no outro. Fonte: Grupo de Pesquisa Midiars – UFPel.

Ainda segundo esse estudo, constatou-se que esse contexto polarizado é assimétrico, ou seja, que os comportamentos no consumo de informações dos grupos são diferentes. Enquanto o cluster anti-HCQ deu preferência a veículos da imprensa tradicional e não circulou desinformação (4), o inverso ocorreu no pró-HCQ onde a maior parte da circulação de URLs foi de desinformação, frequentemente apoiada em mídias hiperpartidárias, isto é, “veículos que produzem conteúdo que dá preferência a uma narrativa política, por isso, frequentemente, distorcem fatos e produzem desinformação” (3).

O hiperpartidarismo é caracterizado por contextos em que “usuários mais radicalizados em suas posições políticas tendem a ser mais ativos no reforço de uma narrativa única e compartilham com suas redes apenas informações que confirmam esta narrativa”. (5)

Desinformação no Twitter

Ainda em 2020, pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) analisaram 21.076 tweets que traziam links contendo as palavras-chave “cloroquina” e “hidroxicloroquina” em língua portuguesa, publicados entre março e abril daquele ano por 14.356 perfis únicos. Foram encontrados nesses links 819 domínios diferentes, dentre os quais, as notícias com maior número de compartilhamentos foram submetidas a análises qualitativas, a fim de verificar o grau de desinformação presente em seus conteúdos.

Dentre os 15 domínios mais referenciados, segundo o estudo, “pelo menos três foram previamente identificados como propagadores de desinformação sobre a Covid-19 por iniciativas de checagens de fatos brasileiras. Gazeta Brasil, Conexão Política e Jornal da Cidade Online aparecem num levantamento da agência de checagem Aos Fatos, que revela sites que lucraram com anúncios publicitários ao publicar desinformação sobre, por exemplo, a eficácia da cloroquina no tratamento da Covid-19”. Os demais sites identificados nessa investigação (Notícia Brasil Online, Senso Incomum, Agora Paraná e Jornal 21 Brasil) também apareceram na amostra, embora não estejam entre os 15 mais referenciados (6).

Para identificar quais as referências mais compartilhadas no contexto das disputas ao redor da cloroquina e hidroxicloroquina como tratamentos da Covid-19, os pesquisadores fizeram a análise das redes formadas em torno desses sites no Twitter. A partir do grafo a seguir, podemos observar como as diferentes fontes de informação abasteceram o Twitter com a polarização política e a controvérsia em torno da cloroquina. Foram destacados os 30 perfis com maior grau de entrada.

Imagem 3: Ao lado esquerdo do grafo, uma massa de conexões na cor vermelha, com destaque para domínios da imprensa tradicional e de sites noticiosos mais associados ao espectro da esquerda. À direita, na cor verde, destaque para domínios de sites e portais alinhados ideologicamente à direita e à extrema-direita. Fonte: LIMA, CALAZANS e DANTAS, 2020.

A dificuldade na resposta à Covid-19

Quando surge uma doença nova, dispõe-se de pouca ou nenhuma informação, especialmente sobre tratamentos eficazes, de modo que é preciso ser bastante criterioso na comunicação para que ela não piore ainda mais um cenário de incertezas. Por sua vez, as redes bolsonaristas trabalharam desde o início da pandemia para transformá-la numa disputa política, além de desacreditar a ciência, conforme mostram as pesquisas aqui citadas e muitas outras já disponíveis na academia.

Isso por si só já seria pérfido, fosse o Brasil um país do norte global dada a probabilidade de pessoas que poderiam morrer por fazer uso de remédios inócuos contra a Covid-19 ou por seus efeitos colaterais. Porém, diante do quadro de recessão econômica no qual o país se arrasta há pelo meno cinco anos, criar uma falsa sensação de segurança em parte da população para que ela vá para as ruas e se exponha ao vírus, sabendo que não há segurança, não há tratamento precoce e que a vacina é a única saída para a volta de uma vida normal é um crime contra a humanidade.

A partir desses dados científicos é possível deduzir que o fato de o Brasil ter feito (estar fazendo) a pior gestão do mundo na pandemia não tem sido fruto apenas de sua incompetência, mas de seu projeto de governo.

Para saber mais: 

(1) ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Infodemic Management. Disponível em: https://www.who.int/teams/risk-communication/infodemic-management/ Acesso em 22 mar. 2021.

(2) SOARES, Felipe Bonow et al. Desinformação sobre o Covid-19 no WhatsApp: a pandemia enquadrada como debate político. SciELO Preprints, 2020. Disponível em https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1334 Acesso em 22 mar. 2021

(3) SOARES, Felipe Bonow et al. Covid-19, desinformação e Facebook: circulação de URLs sobre a hidroxicloroquina em páginas e grupos públicos. SciELO Preprints, 2020. disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1476 Acesso em 22 mar. 2021

(4) Entendemos a desinformação como o conjunto de informações não factuais ou distorcidas que têm a função de enganar (FALLIS, 2015).

(5) RECUERO, Raquel et al. Polarização, hiperpartidarismo e câmaras de eco: como circula a desinformação sobre COVID-19 no Twitter. SciELO Preprints, 2020. (p.05). Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1154. Acesso em 23 mar. 2021

(6) LIMA, Cecília Almeida Rodrigues; CALAZANS, Janaina de Holanda Costa; DANTAS, Ivo Henrique. (Des) Informação em Câmaras de Eco do Twitter: Disputas sobre a cloroquina na pandemia da Covid-19. Revista Observatório, v. 6, n. 6, p. a5pt-a5pt, 2020. (p. 07 e 13) Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/9966 Acesso em 23 mar. 2021

Bibliografia

FALLIS, Don. What Is Disinformation?. Library Trends, v. 63, n. 3, p. 401-426, 2015. Disponível em https://muse.jhu.edu/article/579342 Acesso em 05 mar. 2021.

BRADD, Sam. Coronavirus disease 2019 (COVID-19) Situation Report – 86. World Health Organization. Genebra. 15 Abr. 2020 (p. 02). Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200415-sitrep-86-covid-19.pdf?sfvrsn=c615ea20_6 Acesso em 05 mar. 2021

Este texto é original e exclusivo do Especial Covid-19

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


editorial


1 comentário

Esmeralda · 19/04/2021 às 23:54

Excelente artigo!
Muito informativo.
Eu gosto muito deste blog para repassar a meus amigos!

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