Em cerca de 8 meses a covid-19 surgiu, espalhou por todo o mundo e se tornou uma pandemia de efeitos devastadores… O que talvez você não saiba é que, paralelamente à covid-19, uma outra pandemia vem ganhando cada vez mais importância trazendo muita preocupação dos cientistas da área. A relação entre as duas é importante, sendo um caso de uma pandemia impulsionando outra. E quando falamos de pandemia impulsionada não estamos falando da covid-19, mas sim da pandemia que já estava em andamento, a das bactérias multidroga resistentes (também chamadas de superbactérias).
Ainda não temos uma terapia licenciada ou uma vacina para o tratamento da covid-19 e cujo alvo seja o SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Essa situação tem levado diversos médicos a considerarem e testarem drogas baseadas na modulação da resposta imunológica (reduzindo a inflamação) observada em testes in vitro (como falamos no post anterior “Antibiótico contra vírus?”). Muitas vezes, esse hype prematuro em torno de possíveis terapias para a covid-19 é associado a relatos da mídia e de líderes políticos que amplificam o possível uso dessas drogas — apesar da falta de evidências clínicas de sua eficácia. Isso pode contribuir, ainda, para a escassez dessas drogas para quem efetivamente precisa; como, por exemplo, aconteceu com a cloroquina aqui no Brasil.
Sabemos que infecções respiratórias causadas por vírus podem fazer com que pacientes tenham mais chances de serem acometidos por coinfecções causadas por fungos e/ou bactérias. Da mesma forma, infecções prévias podem atuar agravando o quadro da infecção respiratória. Apesar de ainda estarmos aprendendo sobre a progressão da covid-19, acredita-se que esses cenários que envolvem coinfecção piorem o quadro da doença. Por exemplo, sabe-se que a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 pode aumentar a colonização e a adesão bacterianas ao tecido, e que as infecções combinadas podem resultar no aumento da destruição tecidual que, por sua vez, pode facilitar a disseminação sistêmica dos patógenos, aumentando o risco de infecções da corrente sanguínea e sepse.
É relevante considerarmos essas questões, pois, além dos riscos relacionados aos vários efeitos colaterais, ao reduzirem a resposta imunológica, essas intervenções podem acabar aumentando o risco de infecções bacterianas secundárias e potencialmente fatais. Por isso, é sempre importante ressaltar a necessidade de se realizar análises cuidadosas acerca das dosagens e da forma de administração das drogas, além da importância de os pacientes estarem sendo acompanhados de perto pele uma equipe médica.
E aonde queremos chegar com isso tudo?
Apesar dos poucos dados disponíveis sobre o assunto, o que está sendo observado é que há um aumento considerável na prescrição de antimicrobianos, ainda que não seja observado um aumento proporcional no número de coinfecções durante as internações por covid-19. Só para você ter uma ideia, as estimativas sugerem que cerca 60-70% dos pacientes são tratados com antimicrobianos, ainda que de 1% a 10% tenham apresentado coinfecção fúngica ou bacteriana. Esses pacientes podem, portanto, estar recebendo desnecessariamente antibióticos com eficácia questionável ou ainda não comprovada. Sem contar que, inclusive, em alguns lugares, as terapias com antimicrobianos fazem parte do protocolo de tratamento clínico inicial ou até “preventivo”
Orienta-se que a administração de antimicrobianos seja feita, sempre que possível, com um antibiótico de espectro curto e direcionado ao patógeno primário, ou seja, aquele a que se quer combater. No caso da covid-19, os principais sintomas observados são tosse e febre – que já estão associados a um maior uso de antibióticos nos hospitais e na comunidade. E, além disso, quando os médicos não possuem todas as informações necessárias para entender realmente o que está acontecendo ao paciente, eles tendem a utilizar mais antibióticos —situação que parece ter se agravado ainda mais com os atendimentos remotos, que ocorrem a distância, via chamada pelo celular ou computador (telessaúde).
Claro que temos que lembrar que os hospitais estão lotados e que pacientes em estado crítico são, geralmente, intubados e ficam hospitalizados por semanas em UTIs. Essa situação cumpre praticamente todos os requisitos necessários para a ocorrência de infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS – esse é o nome chique do que chamávamos simplesmente de infecção hospitalar). E, ainda por cima, dados hospitalares mostram um aumento lento e constante da resistência a múltiplas drogas pelas bactérias Gram-negativas, que podem ser potencialmente mortais quando associadas à covid-19. Mais preocupantemente, existem evidências clínicas que sugerem que o uso empírico e inadequado de antibióticos de amplo espectro pode estar associado a maior mortalidade, pelo menos em casos de sepse.
Além de tudo isso que falamos, preocupa o fato de que é frequentemente observado o uso de antibiótico de amplo espectro (que são desenvolvidos para matar uma grade variedade de bactérias) nesses tratamentos. Isso é preocupante uma vez que o uso excessivo e inapropriado dessas drogas (uma vez que as terapias não são focadas para a eliminação de um único patógeno primário) podem acabar agravando os quadros de resistência a antimicrobianos.
Para terminar, é importante ressaltarmos que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, desencoraja o uso de antibióticos para casos leves de covid-19, ainda que recomende o uso em casos graves com risco aumentado de infecções bacterianas secundárias e morte.
Vamos falar sobre resistência e porque pensar sobre ela é tão importante. Veja na continuação desse post!
Clique para ler: “Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?”
Resumindo o que falamos até agora:
- Antimicrobianos estão sendo comumente prescritos para prevenção ou tratamento da COVID-19, mesmo sem a ocorrência de coinfecção bacteriana presumida ou confirmada diretamente relacionada ao covid-19, ou que coocorrem no momento da infecção, ou que seja associada aos cuidados de saúde (internação prolongada em UTI)
- Evidências atuais sugerem que a coinfecção não-viral (bacteriana ou fúngica) em pacientes com covid-19 é baixa (1 a 10%). Contudo, as taxas de prescrição e uso de antimicrobianos de amplo espectro são altas (60 a 70%).
- A utilização de antibióticos, principalmente de amplo espectro, pode contribuir para o agravamento da pandemia já em curso das superbactérias, que são resistentes a vários antibióticos e, portanto, difíceis de serem mortas.
Referências:
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Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura
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