Através do peso e da leveza intersubjetiva dos corpos, Contato Improvisação celebra 50 anos de existência

Com base na escuta e no jogo de resistência entre os corpos, a prática cruza linguagens artísticas, promove reflexões sociais e aprofunda o entendimento sobre a consciência por trás do movimento 

por Kátia Appolinário

O bailarino, atleta e coreógrafo Steve Paxton é o grande idealizador do Contato Improvisação. Foto: divulgação

“Será atroz o peso e bela a leveza?” Essa reflexão é proposta por Milan Kundera logo nas primeiras páginas do clássico literário “A insustentável leveza do ser”, mas pode  ligeiramente remeter aos princípios que contribuem para o entendimento do Contato Improvisação (CI), que há 50 anos nos mostra que tanto o peso, quanto a leveza carregam consigo um valor particular e, mais do que isso, se complementam para que a dinâmica entre os corpos flua dentro do espaço. A técnica, desenvolvida na década de 70 pelo dançarino experimental e coreógrafo americano Steve Paxton, mescla dança, artes marciais, princípios físicos e o contato sensorial, que dá origem a uma série de movimentos fluidos e intersubjetivos.

Na teoria, o Contato Improvisação busca entender a dilatação do tempo e a resistência do corpo, ao lado da sutileza das percepções a partir de uma comunicação que se dá através da escuta. “As exigências da forma ditam um modo de movimento o qual é relaxado, constantemente consciente e preparado, e em fluxo. Como um foco básico, os dançarinos permanecem em toque físico, mutuamente solidário e inovador, ponderando sobre as leis físicas relativas às suas massas: gravidade, momentum, inércia e fricção. Eles não se esforçam para chegar a resultados, mas antes, para encontrar a realidade física em constante mudança com posicionamento e energia apropriados”. Foi assim que Paxton definiu o CI em um de seus ensaios teóricos entre os anos 70 e 80.

Na prática, o Contato Improvisação transborda suas próprias definições. Normalmente, os “contateiros” – termo carinhoso usado para denominar aqueles que fazem parte da comunidade praticante – se reúnem nos “jams”, que são arenas experimentais para o treino desta dança que até hoje instiga não só os iniciantes, mas também os mais experientes, como a gestora cultural, pesquisadora e coreógrafa, Marília Carneiro. “O Contato Improvisação pode ser pensado em várias camadas, mas no geral, acredito que o principal desafio é encontrar o fio da meada e entender o que realmente está em jogo durante a prática. Neste processo, ter ao lado alguém que possa transmitir um conhecimento sistematizado a partir da sua própria experiência é essencial”, declara a especialista que estuda o CI há mais de 20 anos e hoje possui sua própria metodologia de ensino.

Marília desenvolveu a própria metodologia de ensino do Contato Improvisação. Foto: arquivo pessoal Marília Carneiro.

Um instrumento de reflexão social

 

Entre uma troca e outra, o CI também proporciona aos praticantes uma reflexão mais abrangente a respeito do cotidiano. É o que conta a facilitadora corporal, jornalista, pesquisadora e produtora em dança, Flor Castilhos. “Durante a dança, você percebe que os movimentos executados, muitas vezes, refletem questões da sua própria vida. Se eu sou uma pessoa que se joga nas relações, eu solto o meu peso, se eu sou uma pessoa que guarda tudo pra mim, eu carrego o meu peso e o de outras pessoas. Nós nos colocamos ali, entende?”, explica, valendo-se de que, a partir dessa dinâmica entre os participantes, os corpos se comunicam, respondem a estímulos e influenciam a performance dentro do espaço como um todo.

Além de ser uma prática não hierárquica, o Contato Improvisação também dialoga com a educação somática, que basicamente estuda a relação entre a consciência, o biológico e o meio ambiente. Dentro deste processo relacional, inúmeras outras linguagens artísticas podem se entrelaçar de acordo com a experiência individual de cada contateiro. Foi justamente essa possibilidade de unir linguagens e de mergulhar em um processo de autoconhecimento que cativou a artista visual e pesquisadora Kamyla Matias. “Passei a ver o meu corpo como algo pertencente e responsivo ao ambiente com o qual ele interage. Através desse entendimento corporal, aos poucos também percebi como o CI pode conversar com outras linguagens.  É muito comum encontrarmos em festivais e workshops contateiros que trazem uma bagagem do teatro, da psicologia, do cinema, ou que são artistas de cena e, no final tudo, isso se entrelaça e torna a nossa trajetória ainda mais interessante”, compartilha.

Entender o toque em seu sentido genuíno, desprovido de segundas intenções faz parte do Contato Improvisação. Foto: arquivo pessoal do Coletivo TraveCia.

E nesse percurso, a desmistificação do toque compõe parte da descoberta do Contato Improvisação, principalmente quando esbarramos em questões sensíveis, como o machismo e a hiperssexualização. Este é um dos pontos levantados pela produtora cultural e bailarina-pesquisadora, Mar Mendes. “Durante a prática do CI, esse lugar do toque é desmistificado, ou seja, você pode ter contato em qualquer parte do seu corpo, por pessoas de qualquer gênero sem que isso tenha um fim sexual. No entanto, ainda há pessoas que hiperssexualizam o CI. Isso acontece desde sempre e infelizmente continuará acontecendo, porque é um problema intrínseco à sociedade”, compartilha Mendes, alegando que dentro dos JAM’s, ela também aprendeu a lidar com situações desconfortáveis do cotidiano. “A dança me trouxe essa sagacidade”,  completa.

Para Kamyla, esse conjunto de questões contribui para seu processo de empoderamento. “Não estamos acostumadas a sermos tocadas nem a tocar, a levantar peso, então essa relação com o corpo empodera a partir do momento que você se conhece e reconhece a potência de poder se mover e carregar uma pessoa maior do que você, de se libertar na arena, extravasar e viver essa catarse. É uma sensação indescritível no qual notamos que o corpo tem uma inteligência e que ele gera poder”, reitera.

Foi entre um JAM e outro que Mar, Flor e Kamy se conheceram, fortaleceram laços e criaram o TraveCia, um coletivo de mulheres artistas que reverberam a prática do Contato Improvisação. “Essa junção se deu não só a partir de um lugar de amizade, mas também em um lugar de conforto e identificação que o Contato Improvisação nos proporciona. Juntas encontramos a possibilidade de sonhar e nos fortalecer, isso sem deixar de considerar o que é importante para cada uma de nós individualmente. Isso porque, mesmo como um coletivo, acreditamos que a nossa bagagem individual se complementa”, explica Mar. Desde então, o trio têm trabalhado em inúmeros projetos, oficinas e workshops que contribuem para o espalhamento desta prática que ainda é vista como uma arte um tanto quanto restrita.

Dos Jam’s para a vida: O TraveCia permitiu que Flor, Mar e Kamyla pudessem criar juntas. Foto: arquivo pessoal do coletivo TraveCia.

Rompendo a bolha cultural

O professor, bailarino e ator, Ricardo Neves, enxerga a necessidade de expansão do Contato Improvisação para diferentes classes sociais, raças e gêneros. “Se partimos de algo que todo mundo tem acesso, como o corpo, a respiração e a gravidade, nós viabilizamos uma prática que está além das culturas, ou seja, não é algo que necessita de grandes aparatos ou estruturas para que possa ser praticado. No entanto, sabemos que o CI ainda existe dentro de uma bolha muito elitista”, reflete.

Em busca de tentar quebrar essas barreiras e expandir a visibilidade da comunidade contateira, Neves investe em várias iniciativas frente a um time de peso que compõe o Núcleo Improvisação em Contato (NIC), coletivo voltado para a pesquisa, criação e formação, no qual ele é orientador e diretor artístico. Contemplado pela 27ª edição do Programa de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, o NIC, realizou a tradução de conteúdos teóricos da revista norte americana Contact Quarterly e ainda um trecho do livro “Dancing Deeper Still”, escrito por Martin Keogh, que resultou em um rico material que aborda conceitos, princípios e ensino e pode ser baixado gratuitamente aqui .

Em “Só Se For Agora”, bailarinos refletem sobre como preencher as lacunas da consciência enquanto nos movemos. Foto: divulgação.

Referências bibliográficas:

PAXTON, Steve. A definition. [1978/79] Contact Improvisation Source Book: collected writings and graphics from Contact Quarterly dance journal 1975-1992. Massachusetts: Contact Editions, p. 37, 1997a.

Contato Improvisação: Tradução de textos da revista Contact Quarterly. São Paulo: Núcleo Improvisação em Contato e Radar Cultural Gestão e Projetos, 2020.

Kátia Appolinário
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Jornalista, apreciadora da arte em suas diversas manifestações.Pós-graduanda em Mídia, Informação e Cultura pela Universidade de São Paulo.

E-mail: ka.appolinario@gmail.com
LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/katia-appolinario/ 

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