EXILIA – TROCANDO SEGREDOS EM RELATOS DE CRIAÇÃO

Juliana Pautilla

Juliana Pautilla é artista cênica e pesquisadora autônoma. Mestre em Artes pela UFMG. Especialista Sistema Laban-Bartenieff pela FAV. Graduada em música pela UEMG. Site: www.julianapautilla.com

 

RESUMO: Exília é uma criação cênica minha (atuação, direção, dramaturgia e textos) com a colaboração de Ana Luísa Santos (textos e provocações performativas) e Lucas Morais (criação, atuação e instalação sonora). Esse artigo ensaia meu olhar sobre o processo de criação, pensando meu corpo como imaginação.  Durante a pesquisa, que teve início em 2016 ainda como um desejo amorfo, venho colecionando materiais criativos e elaborando um caderno de anotações como dispositivo de observação da minha prática-vida-pesquisa, expondo pensamentos, treinamentos e metodologia na criação.

Palavras-chave: processos de criação, feminismos, descolonização.

ABSTRACT: Exília is my scenic creation (acting, scenic direction, dramaturgy and texts) with the collaboration of Ana Luísa Santos (texts and performative provocations) and Lucas Morais (creation, acting and sound installation). This article rehearses my look at the creation process, thinking the body as imagination. During the research, which began in 2016 as an amorphous desire, I have been collecting creative materials and elaborating a notebook to observation device of my life-practice-research, exposing thoughts, training and methodology in creation.

Key words: creation processes, feminisms, decolonização.

 

Antes, durante, agora

Vou falar aqui do processo de criação de Exília dentro do contexto de minha vida que possibilitou o trabalho existir. Exília foi (está sendo) criado por mim, Juliana Pautilla (atuação, direção, dramaturgia e textos), a colaboradores Ana Luísa Santos1 (pesquisa e provocações performativas) e Lucas Morais2 (criação, atuação e instalação sonora). Esse texto ensaia uma análise do processo de criação, pensando o corpo como imaginação, refazendo o percurso que tracei no decorrer da pesquisa.

 

Pergunto-me: como me libertar de uma estrutura de gênero colonial? Como deslocar meu corpo e como reprogramar minhas células sabendo-me herdeira de todo pensar hegemônico que me moldou tendo uma Europa branca cis-hétero-normativa como referência? Exilar-me, não do mundo, mas de uma ideia de mundo, tem sido a chave para uma transformação pessoal e social, no sentido de que afeto os espaços que me encontro, no desejo de construir uma dissidência que permitirá produzir um pensamento crítico sobre estar nesse mundo que habito, re-politizando feridas (ANZALDÚA apud GONZÁLEZ, 2019) através da escrita e da criação.

 

Sou constituída de muitos encontros. Alguns sou incapaz de enxergar, outros me assombram nos sonhos. Saber-me violentada, impedida, silenciada hoje é, em certo sentido, motor para deixar de imaginar o status familiae e seu futuro esperançoso e reprodutor, que enseja a posse subjetiva do meu útero: mulher, por isso mãe, por isso compreensiva, por isso guerreira. Em Exília me pergunto se a violência sexual misógina ao meu corpo criança foi um projeto de silenciamento para “o meu próprio bem”.

 

Para o processo de criação-cura me fiz algumas perguntas: Quem estou eu agora? Como se apresenta o momento? O que consigo relatar dessa minha experiência de presente? Repeti essas perguntas durante todo o processo de criação. Elas funcionaram como uma necessidade psicofísica antes mesmo de formulá-las na boca, ou nas palavras que saem para o mundo. Percebo a importância desses questionamentos, pois através deles a metodologia do trabalho foi se constituindo, dia a dia, como uma busca de tornar-me outra daquilo de que fui constituída. Ou simplesmente, tornar-me.

 

  1. Demitida de um trabalho relevante para mim por causa um processo político de troca de governos, e ao mesmo momento, um casamento fechou seu ciclo. Foi nessa crise começaram os primeiros esboços de um possível trabalho cênico que eu nem saberia como se daria. Sem produção, sem ideia de produtividade. No início apenas eu e minha vontade insana de chorar (ainda vou criar um treinamento sobre os líquidos, eles foram fundamentais para a minha reestruturação molecular!). Comecei tocando a rabeca, instrumento musical que se tornou expressão de um sentimento de perdas e dor. Saía pelo som. Algumas vezes por semana ia para uma sala de ensaio e movia o corpo para expurgar a dor e viver o luto. O trabalho começa como elaboração desse luto.

 

  1. Em 23 de abril, mudei de cidade, de Belo Horizonte para São Paulo, a babilônia, a cidade que não dorme, mas eu só queria dormir. Queria ficar na cama ou no chão fazendo exercícios de auto-observação, lentos. Queria ler, escrever, tocar, cantar, mover. Mas tudo bem lento. E era só para mim, mais que para outras pessoas. O tempo por fora corria, mas dentro de mim havia uma dilatação. E eu tentava trabalhar – a cidade do trabalho, “poxa eu vim para trabalhar e produzir!” – eu não conseguia.

 

  1. Li muito. Devorei mulheres. Admirei mulheres. Admirei minha mãe ainda mais, como uma mulher que não pariu. Tem sido um reencontro. Minha mãe é uma rocha com uma nascente dentro. Escrevi isso tempos atrás. No fim do ano resolvi iniciar o que vem a ser o processo de construção de Exília. Chamei Ana Luísa Santos e Manu Pessoa3 para me acompanharem no processo inicial de pesquisa. Partilhava com elas minhas ideias, alguns textos, conversas, encontros. Em princípio, eu tinha uma ideia de função na formação de equipe – Ana na dramaturgia e Manu na assistência de direção – mas o processo era muito experimental e sem uma perspectiva de financiamento então naquele momento aconteceram apenas algumas trocas, vivências e um apoio testemunhal da minha experiência. Com Ana, a parceria acabou se aprofundando mais, com trocas de textos e costura dramatúrgica.

 

  1. Nas conversas com Ana, falamos muito de exílio, de autoexílio. Estávamos ambas morando em São Paulo e ainda na tentativa de adaptação, sem nos entregar totalmente à vida precipitada da cidade, do pragmatismo, do cansaço, da poluição, do sufocamento dos afetos, das pessoas como cartões ambulantes prontas a sacar seu currículo no primeiro oi para fazerem sua network, da competitividade, da acumulação, da concentração na ideia de capital cultural do Brasil. Tentávamos rir disso. Todas essas conversas chegaram ao nome do trabalho, proposto por Ana. Estávamos exiladas. Fui percebendo que o exílio do qual falávamos também vinha de uma escolha voluntária de despencar de mim mesma – brinco com a palavra despencar em oposição a padecer. Parêntese. Ser mãe é padecer no paraíso ou o prazer é apagado do seu corpo. Fecha parêntese.

 

A dramaturgia de Exília foi sendo construída, então, a partir dessas experiências corporais, de conversas, da produção de textos e leitura de muitos materiais feministas (podcasts, vídeos, palestras, filmes, literatura, ensaios, artigos acadêmicos, manifestos, etc.) e outros que traziam o tema do exílio. O recorte do exílio foi um tema importante, articulando em seus vários sentidos: aquele baseado na expulsão por causa da desobediência feminina contida no mito adâmico (SEGATO, 2018; MUSZKAT, 2019), a desterritorialização, a errância e a criatividade, como necessidade de invenção de uma nova realidade (FLUSSER, 2011). O trabalho busca uma episteme que reconhece as possibilidades múltiplas de ser mulher e o autoexílio como recriação de si para entender os modos de colonização do corpo feminino.

 

Esse ano de 2019 também foi o de entender que o processo se daria em performance, buscando a convicção do trabalho, o que era o mais importante. Isso fez sentido à medida que Ana me provocava no lugar da performer, da presença. Fui desconstruindo essa tecnologia da preparação para cena tão cara às técnicas de atuação, e aceitando que cada vez que eu encontrasse o público seria uma performance dentro do material que eu gostaria de disponibilizar para aquele encontro. Então fui escolhendo formas de trocar com a audiência e, ao mesmo tempo, definindo o modo de criação, realizando um diário-mapa-de-percurso em cada apresentação e explicitando o caminhar. Nesse ano foram cinco experimentos, entre março e dezembro de 2019, em São Paulo (3), Belo Horizonte (1) e Uberlândia (1). Gosto de pensar no público (audiência, espectador) como um atuante transformador da performance, pensando na energia de troca que se estabelece em cada encontro e na capacidade imaginativa que o trabalho possa abarcar em cada pessoa.  Finalizei o ano participando da Residência Artística da Casa da Pau Brasil, que me possibilitou esboçar a dramaturgia da maneira mais próxima que editei na publicação.

 

 

Pergunto-me: como me libertar de uma estrutura de gênero colonial? Como deslocar meu corpo e como reprogramar minhas células sabendo-me herdeira de todo pensar hegemônico que me moldou tendo uma Europa branca cis-hétero-normativa como referência? Exilar-me, não do mundo, mas de uma ideia de mundo, tem sido a chave para uma transformação pessoal e social, no sentido de que afeto os espaços que me encontro, no desejo de construir uma dissidência que permitirá produzir um pensamento crítico sobre estar nesse mundo que habito, re-politizando feridas (ANZALDÚA apud GONZÁLEZ, 2019) através da escrita e da criação

 

Ensaio fotográfico para estreia em São Paulo, fev 2020. Foto: Nubia Fernamo

Making off vídeo-performance, fev 2021. Foto: Nubia Fernamo.

 

2021. Foi no início do ano que decidi publicar a dramaturgia, pensando que talvez o trabalho não viesse a ser encenado ao vivo algum dia. Em fevereiro, através da Lei Aldir Blanc, realizei uma vídeo-performance com uma apresentação virtual através da plataforma zoom, seguida de debate. Foi um momento importante para o trabalho se manter vivo. Em 19 de novembro de 2021 estreei a performance ao vivo na Mostra Reencontro do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte e faço o lançamento da dramaturgia no mesmo evento. Nessa performance, uso elementos da vídeo-performance feita no inicio de fevereiro, no intuito de interconectar as linguagens sonoras e visuais junto ao texto.

 

 

Faço esse resumido relato ano a ano porque considero que esse processo criativo totalmente entrelaçado à minha vida e foi nesse caminho que retornei à performance/atuação, diferente das funções de direção e dramaturgia que vinha me dedicando mais desde 2010. E esse texto acaba por articular, e eu mesma entender, como a vida está conectada aos meus processos artísticos.

 

A questão autobiográfica tem estado presente nos espetáculos que vinha dirigindo desde 2015, em um dispositivo criativo que chamei poéticas de si como política. O princípio que trabalhava era uma conexão com o corpo através de práticas somáticas, produção de textos íntimos, mapeamento de sensações e pesquisas temáticas que se interconectavam a partir dos desejos de fala e produção de cada artista que dirigi e fiz co-dramaturgias4. Além dos espetáculos, dei oficinas e participei de outros processos criativos, usando o dispositivo de escuta de si, percebendo e considerando os movimentos, as falas e as escritas que surgem nesse processo.

 

O objetivo aqui não é me debruçar sobre a teoria de peças autobiográficas. O que procuro é explicitar o processo da criação em experiência. Explicitar um processo que leva em consideração uma percepção contínua de si, experimentando a escrita fluida e singular, poetizando traumas, fissuras, dores. Talvez chegue numa ideia de dramaturgia de sintomas, já que a escrita parte do reconhecimento de sintomas, porque é necessário estar atenta para mudar perspectivas, vendo a si mesma, e poetizando fissuras, pensado-agindo no pessoal-social. Gosto da autodescrição que Anzaldúa faz de si: “una lesbiana feminista tercermundista inclinada al marxismo y al misticismo. Me fragmentarán y a cada pedazo le pondrá uma etiqueta” (ANZALDÚA apud GONZÁLEZ, 2019). O reconhecimento da fragmentação de que somos constituídas é parte de muitas camadas e entrelaçamentos.

 

No processo de criação de Exília e na própria performance, permiti que aparecesse a mulher socialmente constituída, aquela que “encena demais sua adequação” (LEITE, 2017, p 4). Ver minha própria performatividade, a partir do papel da mãe que deixou a filha com o pai e foi morar em outra cidade, num duplo processo simbólico de separação (do pai e da filha), foi importante (e é) para constituir-me outra. Escrevi no diário:

O quanto sou ridícula em performar a mulher ou compactuar com as tecnologias que me fazem mulher: ações, rituais cotidianos, limpar para o outro, administrar a casa para o outro, achar que alguém vai me sustentar, o marido rico que vai me tirar do sufoco financeiro para ser uma artista, o marido que tem a casa e me dá abrigo, o homem que diz que seu desejo insaciável de preencher com porra meus buracos é o mais absoluto amor, o ciúme e a competição, seduzir e atrair a presa, a bunda e os peitos desejados, deixar o cabelo longo e pintado, esconder os cabelos brancos, esconder as rugas e a flacidez. Posso fazer isso tudo. Posso não fazer isso tudo. (ARQUIVO PESSOAL)

 

Essas escritas de diário foram importantes, ainda que muitas não entraram para a cena. Escrever e reler gerou um distanciamento para a percepção dessa adequação. Sem uma crítica e na dimensão da intimidade, fui tateando e me permitindo ver e me reconhecer.

 

Voltando às perguntas que fiz no início – Quem estou eu agora? Como se apresenta o momento? O que consigo relatar dessa minha experiência de presente? – elas foram o motor dos ensaios e me ajudaram a conectar com essa paisagem de mim mesma. O corpo prostrado do início dos ensaios dizia algo mais do que meu vão julgamento de improdutividade. Passei um bom tempo observando o que ele queria dizer. Trabalhando respiração e micro-movimentos. Transitando entre movimentar, tocar, gravar, escrever. Fui criando uma biblioteca de sons e um caderno de anotações (físico e virtual). Percebi que três dinâmicas de movimento se repetiam: o corpo muito pesado anunciando um cansaço, um leve balanço como um ninar e depois chacoalhar e tremer. Repeti muito esse caminho e brincava com essas dinâmicas. Um dos textos surgiu da dinâmica de chacoalhar, em que sílabas tônicas são pontuadas pelo movimento: “objetificada, violentada, falada, queimada, difamada, empregada, criada, mundana, cantada, dada, danada, morena (…)” (PAUTILLA; 2021). 

 

A movimentação contínua e lenta reverberou em uma composição musical que aparece no início da performance. Transpus a dinâmica de movimento para o gesto lento da arcada na rabeca, em que exploro os harmônicos do instrumento usando as cordas soltas.  Depois esse som foi trabalhado pelo Lucas Morais (músico e filósofo parceiro, autor da trilha e instalação sonora). Ele ampliou os harmônicos usando dispositivos eletrônicos. 

 

Na performance brinco com a materialidade das palavras, seus significantes e significados. Às vezes, isso é borrado pelo jogo com a gravação e composição ao vivo feita pelo Lucas. Buscando o desgaste das palavras e as falhas e erros da voz, tanto do ponto de vista físico-sonoro, quanto da perda e falácia de seus significados. Isso se dá principalmente pela repetição, distorção e falha. A questão sonora musical da peça merece maior aprofundamento para outro texto, principalmente porque na última versão realizada em novembro de 2021, dei bastante ênfase na palavra e no jogo sonoro entre voz e a imagem projetada.

 

Os quatro movimentos base – peso passivo em movimento contínuo, ninar, chacoalhar e tremer – se tornaram repetições de movimento que eu fui colando na composição cênica do trabalho. Durante a criação fiz um acompanhamento com Thiane Nascimento5, com foco no movimento pélvico (práticas somáticas e padrões de movimento relacionados a danças como o funk, samba, etc). Percebi, através dessas práticas, a importância da organização espinhal, compondo com a relação-alinhamento dinâmico entre o peso da bacia e da cabeça. Essa referência da organização espinhal vem da análise de movimento a partir dos Padrões Neurológicos Básicos/BNP (BARTENIEFF, 1979; COHEN, 1993; HACKNEY, 1998). Essa organização se tornou uma investigação basilar de movimento e traspusemos para a ideia de pelve-boca.  Foi uma descoberta importante porque pensei muito na relação simbólica do chacra sexual violentado que impede uma fala livre. E uma fala livre é a libertação do desejo. Na cena, não fecho uma coreografia, mas penso sempre em estabiliza-desestabilizar essa organização corporal, numa ideia poética de uma versão artificial da costela em descontrole remoto. Ao liberar a pelve, a partir de práticas somáticas e literalmente rebolar, libero minha voz, falo, comunico, penso, confesso.

 

A ideia de confissão apareceu no trabalho desde o primeiro experimento aberto6. Apresentei para um grupo de 8 mulheres em uma atmosfera de troca e proximidade. A atenção e interesse da audiência ao material exposto se estabeleceu muito rapidamente. Criei um roteiro que consistia em ler um texto sobre as bases do processo, relatando as referências de estudo e explicitando as ações que eu faria ali: apresentar pedaços de texto, de sonoridades e de movimentos. Após a apresentação conversamos longamente e ficou bem presente a ideia de intimidade e confissão como potência do material. Mas eu não usava nenhum texto em primeira pessoa e nem explicitava – o que passei a fazer a posteriori – que parte do material era a minha própria experiência de vida.

 

Foucault (1976) fala do papel da confissão como reguladora de uma prática que colocou no século XIX a sexualidade no centro da própria existência ocidental, porque a prática sexual precisava ser examinada, vigiada. E é no confessionário que ela é transformada em discurso. Sílvia Federici (2017, p. 344-345) critica o fato de que o dispositivo da confissão usado para a caça às bruxas, que matou milhares de mulheres na Europa, e depois na América Latina, através das práticas de inquisição nas colônias, foi negligenciado na análise foucaultiana. Essa perspectiva de Federici é importante para pensar em como muitas narrativas invisibilizam o corpo da mulher, corroborando para uma episteme hegemônica, a partir de uma suposta humanidade neutra. Mas Foucault também pensa na confissão como uma técnica de si para construir uma integridade. No caso de Exília, ao colocar o público como testemunha de uma fala confessional, exercito um modo não privado (igreja, consultório, família, etc). A questão se torna pública,  portanto, política.

 

Sem perceber, eu fazia uma distinção entre a escrita que era de diário (eu) e a escrita que era “dramatúrgica” (a performer). Demorei a colocar os textos mais confessionais porque fugia inconscientemente dessa perspectiva. Mas percebi que muitos dos textos, que eu pensava não serem sobre mim, eram. No divã, analisando meus sonhos, percebi que muitas das frases que escrevi eram imagens latentes de um passado que remetia à momentos violentos da minha infância e adolescência. Como escrevi muitos textos usando a técnica de escrita automática, colocando ideias soltas e associações, só fui perceber as imagens depois que organizei os textos em um primeiro roteiro e comecei a decorá-los, buscando sentido para as palavras. Os sonhos apontavam para a investigação de traumas que eu havia esquecido, ou melhor, escondido de mim mesma. Quando percebi isso, usei mais conscientemente a confissão como dispositivo cênico.

 

Voltando aos ensaios, enquanto me movia era tomada por alguns pensamentos ou imagens, não negava, anotava até coisas que não tinham conexão com o trabalho. Outras vezes, anotava minha prática do dia, ensaiando uma metodologia de treinamento. Anotei as conversas com Ana, minhas dificuldades, estagnações, avanços, organização de treinos, horários de trabalho, etc.

 

Também o ambiente imediato ao meu redor, a sala de ensaio, foi se tornando parte do trabalho. A espacialidade cênica em Exília partiu da sala da minha casa. E tem sentido com uma imagem que trago no texto, a partir de uma memória da infância: “rodava na sala para os parentes nas festas de natal” (PAUTILLA; 2021). Há uma noção de abrigo. A cenografia não tem por objetivo reproduzir a sala da minha casa, mas a subjetividade que construí nesse espaço está na espacialidade que levo comigo a cada apresentação.

 

Ainda falando sobre a produção textual, além da escrita automática, usei o recurso de colagem. Copiar, recortar e colar, compondo pedaços de frases conhecidas de maneira a criar uma fala disruptiva. Como fiz uma escolha anterior de materiais, o sentido final do texto mantém o seu enunciado: eu procurava a ideia de feminilidade como “uma performance, uma imitação sem original” (BOURCIER, 2015, p 14). Não há origem, portanto, por isso a importância de ironizar o aspecto mítico sobre o feminino.

 

As fontes principais da produção desse texto foram: memes e frases clichês de autoria duvidosa sobre machismo/feminismo, cancioneiro popular, propaganda de beleza racista, vocábulos Lilith e Deusa do wikipedia, pedaços do vídeo do YouTube “Por que sou feminista”, uma entrevista com Simone de Beauvoir de 1975; Donna Haraway no texto “Antropologia do Ciborg: As vertigens do pós-humano” (2009) e o discurso de Emma Watson, Embaixadora da Boa Vontade da ONU-Mulheres (2014). No jogo textual brinquei de constituir/desconstituir a ideia de feminilidade-masculinidade através desses recortes.

 

A partir do exposto, mapeio três elementos importantes na criação de Exília: 1) observação de si e os princípios somáticos na criação dos movimentos, sonoridades e textos; 2) modo de criação e apresentação em formato processual conferindo ao trabalho sempre abertura para o risco; 3) entender o corpo a partir de uma perspectiva descolonial, percebendo seu sentido sociológico. Uma outra percepção de presença que parte da paisagem do meu próprio corpo nessa sociedade que vivo e a consciência de ser parte de um amplo espectro diverso de narrativas.

 

Todo o processo apontou para a invenção de um modo de organização criativa sem uma cartografia reconhecível a priori, através de uma categorização à moda racional moderna, ou uma consciência autodeterminada. Lanço um olhar para uma prática que se fez de muitos feixes de implosão, imprevisibilidades, ires, vires e devires.

 

Durante todo o processo de criação pensei na ideia de cultivo. Realizar o trabalho através de residência artística e fazendo experimentos abertos usando formatos distintos (leitura de roteiro, mostra de fragmentos, debates, vivências) possibilitou uma prática contínua de pesquisa e análise porque, em cada encontro, pude pensar nas estratégias que usei nos ensaios, desenvolvendo, concomitantemente, a prática reflexiva e a criativa. A cada experimento pude expandir mais o material. E, mais ainda, aceitar o que era possível realizar no momento de cada encontro. Era meu tempo de análise também. Por isso o processo apontou para a invenção de um modo de organização criativa sem uma cartografia reconhecível a priori, através de uma categorização à moda racional moderna, ou uma consciência autodeterminada. Uma prática que se fez de muitos feixes de implosão, imprevisibilidades, ires, vires e devires.

 

Aliada à questão acima, tenho consciência do modo de produção que inclui a noção de precariedade, trabalhando nos tempos possíveis, com os materiais disponíveis, e em um contexto de ausência institucional de promoção, diante da péssima realidade das políticas culturais pelas quais vimos passando desde o golpe de 2016, e ainda tendo que lidar com curadorias afuniladas, que não estão dando conta da enorme produção artística no país.


Caminhos

Na metodologia em arte há um arcabouço de pensadoras que consideram o processo e a experiência partes da investigação teórica, fazendo do percurso do processo criativo a prática da pesquisa. Não vem antes, nem depois, mas durante. Citarei aqui algumas referências que apontaram para mim um caminho de pensamento e prática.  

 

Jane M. Bacon e Vida L. Midgelow propõem o “PAC/Processo de Articulações Criativas” (2015) que sugerem uma abordagem de um modelo de acompanhamento de estratégias para o desenvolvimento de uma prática reflexiva que dá voz ao processo criativo. Ciane Fernandes propõe o contexto somático-performativo (2014) que coloca a pesquisa no centro da prática para uma metodologia de autonomia, “imprevisível e, por isso mesmo, coerente”. Posso citar ainda a análise do movimento a partir de Fundamentos Bartenieff (1979) que propõe um processo de percepção contínua de movimento, por meio de marcos corporais somáticos, como apoio para pensar e agir no mundo. Podemos elencar alguns princípios abordados: aceitar que o processo de mudança é constante, aprofundar a compreensão da própria prática, atitude de curiosidade e abertura para uma reflexão orientada para novas formas de trabalhar e fazer, aproximar o criativo do somático, colocar em evidência o corpo vivido, conhecimento e verbalização podem surgir dentro do próprio processo de realização, ir mais profundamente para revelar mais do que tinha antes, prática como “parceira” e lugar de descoberta, atenção e observação. Todos esses princípios citados estão, com certeza, na base de qualquer processo criativo das artes cênicas. Não se trata de criar nenhum modelo para seguir. Mas é paradoxal, porque se convencer da simplicidade deles é complexo, por vários motivos. Estamos inseridas numa tradição escolar que privilegia linearidade e racionalidade. A voz feminina é reiteradamente apagada, sob o discurso de que intuição é loucura, sensação é subjetivo. Temos então o caminho normativo pronto para seguir? Tradição, objetividade, racionalidade?

 

Rita Segato (2015) faz uma crítica muito contundente sobre a questão geopolítica do conhecimento a partir de colonialidade do saber e questiona a hierarquização dos meios e os sistemas de classificação de programas e periódicos brasileiros que ainda são de base quantitativas, com medições de impactos e internacionalização, ao invés de conteúdo, numa lógica de aceleração produtivista. Cito Segato porque, ainda que eu não esteja ligada diretamente à produção acadêmica, a pesquisa nas artes cênicas é de fundamental importância para o desenvolvimento da área, para todas as pessoas envolvidas nesse campo, artistas e ou pesquisadores. Importar técnicas, teorias e ou modos de fazer, do que Segato (2015) chama de “fobia de localização” advindo de um “saber universal, liberal, de interesses supostamente neutros, homem, branco proprietário, letrado, heterossexual (no sentido de que caracteriza uma posição pater-familias independente das práticas sexuais que pratica)” reflete como essa base de pensamento habita nossas práticas e saberes e indicam os supostos modelos a seguir e os marcos institucionais que priorizam saberes em detrimentos de outros.  Convido novamente Anzaldúa (2000): “joguem fora a abstração e o aprendizado acadêmico, as regras, o mapa e o compasso. Sintam seu caminho sem anteparos. Para alcançar mais pessoas, deve-se evocar as realidades pessoais e sociais — não através da retórica, mas com sangue, pus e suor”.

 

Conclusão em obra

A integridade do processo passa pelo corpo que se move em performance, de onde ele vem, qual sua história entranhada, onde ele está se movendo no momento da performance.  É a paisagem que carrego por onde for. É também a escolha do modo de criação da obra, como sobrevivência poética, resiliência artística, como necessidade íntima e social de pertencimento. Essa costura de pensamento começou a ser engendrada desde que me debrucei sobre a ideia de aprender a me ver e me observar aceitando medos, ansiedades e confiando na intuição e criatividade. Algo que não é possível não fazer. Não se trata nem de perguntar a importância do teatro nos tempos atuais, tão sem perspectiva de futuro. A necessidade de criação é o fluxo que não se escolhe. Encontraremos fissuras. E ela se expressa de muitas formas: nas nossas práticas cotidianas, nas escritas, nas lives, nos grupos de estudo, nas leituras, nas novas parcerias, na reeducação de percepção do tempo. Se ainda estivermos vivas. Muitas não estão. Porque somos corpas controladas e estamos cercadas, buscando rotas de fuga, como considero a realização desse trabalho.

 

Quando desde o início da pandemia pude me debruçar com mais dedicação aos estudos pós-feministas, a perspectiva descolonial e as corpas cuirs, entendi com mais profundidade que carregamos há séculos uma estrutura de destruição programada de corpos racializados e sexualizados. E que o exílio de que trato é um misto da noção de expatriação e banimento, condição da nossa ancestralidade – eva, bruxas, indígenas, negras, mestiças – que encontra na aceitação e afirmação dessa condição a percepção de seu desejo de errância e mudança, o autoexílio. É nessa condição que conecto com minha existência no intuito de reencontrar porosidade para viver nessa realidade tão castradora e violenta.

NOTAS DE FIM:

1. Ana Luísa Santos é performer, crítica e escritora (www.anasantosnovo.com)

2. Lucas Morais é musicista, artista audiovisual e filósofo (www.lugaresdoinvisivel.wordpress.com)

3. Manu Pessoa é atriz e diretora, fundadora do coletivo Bacurinhas e co-diretora artística do grupo de teatro do Espaço Comum Luiz Estrela.

4. Mais informações sobre os espetáculos criados entre 2015 e 2018 podem ser vistos através do site www.julianapautilla.com

5. Thiane Nascimento é artista do corpo com interesse nas interfaces da dança, da performance e da instalação coreográfica. (https://thianef.wordpress.com/)

6. Evento “O corpo da mulher sob diferentes perspectivas” no dia 30 de março de 2019, no Palacete Tereza, São Paulo. Realização: Avoa! Núcleo Artístico em parceria com Aqui, Ali Dança e Cultura.

 

 

Referências

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FLUSSER, Vilém. Exílio e criatividade. Piseagrama, Belo Horizonte, número 04, página 50 – 52, 2011. Disponível em < https://piseagrama.org/exilio-e-criatividade/>. Acesso em 28 jun 2020

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LEITE, Janaina Fontes. Feminino abjeto na obra de Angélica Liddell. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), p. 4, Florianópolis, 2017. Disponível em < http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1498513914_ARQUIVO_OfemininoabjetonaobradeAngelicaLiddell.pdf> Acesso em 20 jun 2020

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Em dezembro está acontecendo uma campanha de distribuição do livro e da videoperformance virtual. Acesse AQUI.

_LIVRO_

35 $ (frete incluso)

_VIDEOPERFORMANCE_

20$ (link com senha disponível durante a campanha)

_COMBO_

50$ (livro com frete + videoperformance)

_UM POUCO MAIS_

A vídeo-performance foi gravada em janeiro de 2021 e fiz uma apresentação através da plataforma Zoom. O livro é uma auto-publicação com o texto da dramaturgia, além de imagens da performance e um trabalho de colagens, da artista Nicole Partos e arte gráfica de Daniel Carneiro e Marcelo Gontijo.

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