A motivação desse texto vem de uma reportagem sobre a possibilidade de alguns aminoácidos serem provenientes do espaço, na qual senti necessidade de corrigir alguns escorregões:
- “Os aminoácidos são importantíssimos porque ajudam a compor as proteínas, indispensáveis para a existência de todas as formas de vida no nosso
planeta.”
- “Ao estudar os fragmentos de um meteorito… descobriram… aminoácidos do tipo canhoto.” (nunca ouvi aminoácidos D e L serem chamados “destros” e “canhotos”, alguém pode confirmar?)
- “Na Terra, todos os seres vivos têm aminoácidos canhotos… Mas isso não quer dizer que a versão destra seja impossível
por aqui. Cientistas já conseguiram sintetizá-la em laboratório.”
Sabemos que os aminoácidos são moléculas que, interligadas,
formam a cadeia principal de todas as proteínas. Ao contrário do comentado na reportagem, não é uma questão de
“ajudar a compor” e sim de definir. Desse modo, sem os os aminoácidos simplesmente não há proteína.
Aproveitando o tema, existem dois “causos” relacionados aos aminoácidos que me incomodam demais há algum tempo:
- Por que quase ninguém fora da área de proteínas reconhece a existência de 2 aminoácidos “extras” além dos 20 clássicos?
- O que diabos há com um mundo em que ainda é comum encontrar a frase “os L-aminoácidos são os únicos presentes nas proteínas” e suas variáveis?
O mistério dos aminoácidos proscritos
Os dois aminoácidos nunca citados são a selenocisteína e a pirrolisina. Pode-se imaginar que os dois sejam resultado de alguma modificação pós-traducional, ou seja, a informação para sintetizá-los não estaria no DNA mas seria um produto indireto da expressão genética. No entanto, dados científicos já demonstraram que ambos são codificados como os 20 aminoácidos “clássicos”. Por que continuamos com o padrão “existem 20 aminoácidos codificados pelo nosso genoma”?
Uma explicação óbvia poderia ser: “o conhecimento é muito novo, por isso ainda não foi incorporado aos livros e é desconhecido por gente fora da área”.
Essa justificativa pode ser válida para a pirrolisina, identificada em bactérias do gênero Methanosarcina apenas em 2002, mas no caso da selenocisteína esse conhecimento está disponível desde a década de 1960! Qual é a explicação?
Aminoácidos através do espelho
Quem já estudou Biologia e nunca ouviu a frase “todos os aminoácidos biológicos (com exceção da glicina) são L-aminoácidos”?
A nomenclatura D ou L vem da comparação estrutural com a molécula quiral do gliceraldeído. Quiral é o nome dado a moléculas que possuem um átomo de carbono ligado a 4 grupos químicos diferentes, de modo que sua estrutura não é sobreponível à sua imagem num espelho. É a distribuição espacial dos grupos químicos em torno desse carbono quiral que denomina, em comparação às formas do gliceraldeído, os aminoácidos L ou D.
Voltando à questão: em biologia sempre teremos L-aminoácidos, certo? Errado!
Em mais um inexplicável caso, desde a década de 1940 são conhecidos D-aminoácidos em organismos vivos. Inicialmente identificados nas paredes celulares de bactérias Gram-positivas, a suspeita da existência biológica desses aminoácios existia desde a década de 1930, quando foi descoberta uma enzima de mamíferos chamada D-aminoácio oxidase EC 1.4.3.310.
A suspeita é lógica: porque haveria uma enzima especializada em D-aminoácidos se os mesmos não participassem no metabolismo desses animais? Como esperado, algum tempo depois foram identificados e quantificados D-aminoácidos nos fluidos corporais de vertebrados. Novamente: porque esse conhecimento não foi atualizado?
O que justifica essa defasagem do ensino? Tomara que as atualizações dos livros de Biologia não demorem muito mais tempo, afinal, a situação já está ficando feia!
Notícias:
Referência:
SILVA, João J. R. Fraústo da and SILVA, José
Armando L. da. D-aminoácidos em biologia: mais do que se julga. Quím. Nova [online]. 2009, vol.32, n.2 [cited 2011-01-20], pp. 554-561 (Link para a versão PDF.)