Texto de Carol Frandsen , Maurílio Bonora Junior e Ana Arnt
Temos visto muito debate acerca do avanço da vacinação contra COVID-19, no Brasil e no mundo. O que parece ser, evidentemente, uma ótima notícia! Porém, junto com a esperança renovada de que venceremos esta pandemia que já nos assola há 17 meses, também percebemos que as aberturas de comércio, serviços e espaços públicos (abertos e fechados) se tornam cada vez mais frequentes. Não só aqui, mas em todo o mundo .
Sim, sabemos que as medidas de isolamento social estão sendo cada vez menos seguidas e estimuladas. Também já cansamos de dizer que as políticas públicas brasileiras nunca possibilitaram um real isolamento e proteção das pessoas no enfrentamento da COVID-19.
PNI e estratégias de controle de doenças
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) completará 50 anos em 2023. Ao longo de sua história, se consagrou como uma das grandes conquistas no controle de doenças infecciosas em nosso país. Para alcançar este patamar, aliou diferentes ferramentas: vacinações de rotina, dias nacionais de vacinação, campanhas periódicas e vigilância epidemiológica. Isto, claro, levando-se em conta o PNI inteiro – não apenas relacionada à COVID-19.
Mas o ponto aqui é: a vacinação nunca está sozinha. A ela se aliam outros elementos. Primeiramente, vamos falar aqui de dias nacionais, campanhas periódicas e vigilância epidemiológica. A vacinação da COVID-19 alia estes elementos (ou deveria aliar). Temos datas específicas para vacinar cada parcela da população. Seja por faixa etária, seja por profissão, seja por condição de saúde, dividimos a população em grupos, lançamos datas específicas e divulgamos para que a informação atinja a todos (a princípio).
Das campanhas
A campanha é mais do que a organização das datas e da distribuição de vacinas e profissionais. A campanha é, literalmente, todo o marketing publicitário e informativo, junto da vacinação das pessoas. Neste sentido, a campanha envolve logística, público alvo, mídias pagas (televisão, rádio, redes sociais…) para que a maior quantidade de pessoas possível tenha compreensão de quando vão ocorrer os procedimentos da vacinação para cada grupo que precisa se vacinar.
A vigilância epidemiológica é outro procedimento. Este diz respeito ao rastreamento de casos confirmados da doença e tentativa de bloqueio, isolamento de pessoas contaminadas e diminuição da circulação do vírus. É uma estratégia complementar e fundamental para o enfrentamento de doenças. Todos nós sabemos e já discutimos há meses como não temos feito vigilância epidemiológica eficientemente sobre a Covid-19 em nosso país.
Porém é relevante apontar que nunca é tarde para começar e é emergencial que se faça isto inclusive com a vacinação avançando em nosso país!
E o que isto tem a ver com o tema de hoje?
Por exemplo, no dia de hoje (para quem nos lê do futuro, dia 28 de julho de 2021), o Estado de São Paulo anuncia a ampliação do funcionamento de atividades econômicas, aumento da capacidade de atendimento presencial nos comércios e serviços não essenciais (isto inclui os espaços religiosos), e sinaliza interesse no retorno às aulas.
No entanto, consideramos importante apontar para este aligeiramento das propostas de abertura que temos visto… Elas têm levado em conta tanto melhoras nos índices de saúde (quedas consecutivas nos números de internações e óbitos), mas principalmente vacinação.
Mas será que isto é a cobertura vacinal que temos preconizado cientificamente?
Primeiro: “cobertura vacinal” é o termo que usamos para designar a proporção de pessoas que estão com o regime completo para uma vacina específica ou para um conjunto de vacinas, em uma dada população.
Assim, não é apenas a quantidade de pessoas vacinadas que importa, mas a quantidade em relação à população de um território. As porcentagens e comparações são feitas em relação ao todo e não em números absolutos. E neste momento, a cobertura vacinal se torna, portanto, uma questão fundamental e tão comentada.
Existe um senso comum que diz que “tomar uma vacina me protege”, e que portanto é uma questão de opção individual para que uma doença não me afete, individualmente. No entanto, não é desta forma que se analisa a questão das vacinas. Quando se trata de uma doença transmissível, combatida por uma medida como a vacinação, estamos falando de um planejamento que precisa atingir as populações em massa.
Cobertura vacinal, indivíduo e população
Quando falamos em vacinação de uma massa de pessoas e da relevância da cobertura vacinal, estamos também considerando uma quantidade de pessoas que não estará protegida por não se vacinar (seja lá por que motivo for – por ter alguma alergia, uma doença que a impeça de vacinar, não termos vacinas para aquela faixa etária, ou mesmo por ser antivacinação, …), mas estará protegida por ter muitas pessoas vacinadas ao seu redor. É bem aquele bordão dos três mosqueteiros: “Um por todos.. e todos por um!”
A cobertura vacinal cria, neste sentido, uma verdadeira barreira para a circulação do vírus entre as pessoas. Quanto mais pessoas estão vacinadas, é mais difícil para o vírus conseguir infectar uma pessoa que não se vacinou (por exemplo, por ser alérgica a algum componente da vacina). Assim, a probabilidade dessa pessoa se infectar e desenvolver uma doença é menor, por (quase) todas as pessoas ao redor dela estarem vacinadas e protegendo-a.
Cenários imaginários (porém nem tanto)
Perceba os três cenários acima. Cada pessoa (ou bonequinho) representa 1 pessoa em uma população de 100 (1% portanto). As pessoas em vermelho não estão vacinadas com as duas doses (ou dose única). Isto é: não estão com o esquema vacinal completo e, portanto, não estão plenamente protegidas contra o coronavírus.
No primeiro cenário nós temos 20 pessoas vacinadas em 100. No segundo, 60 pessoas vacinadas em 100. Por fim, no último cenário temos 75 pessoas vacinadas em 100. Vocês conseguem perceber como as pessoas vacinadas fazem, no último cenário, uma barreira para aquelas não vacinadas?
Pois é. No Brasil, se todos os adultos se vacinarem contra a COVID-19 teremos um cenário próximo ao último cenário. No atual momento, estamos em uma situação comparável ao do primeiro cenário, pois temos 18,5% da população total (39,1 milhões de pessoas) com o esquema vacinal completo.
O Brasil e sua cobertura vacinal
Hoje, no Brasil, nós temos uma população estimada de 212 milhões de pessoas e uma população adulta (18 anos ou mais) correspondente a cerca de 160 milhões.
Para termos uma cobertura vacinal razoável da população brasileira deveríamos ter 100% da população prevista no PNI para a COVID-19 vacinada. Isto é: quando TODOS os brasileiros adultos se vacinarem, teremos um total de 75% da população brasileira completamente vacinada, 159 em 212 milhões.
Pode soar repetitivo, mas veja: hoje temos 39 milhões com o esquema completo.
Extinguir a pandemia com 75% de cobertura vacinal de toda a população seria possível, em teoria¹. Até lá, as medidas de contenção do coronavírus, como distanciamento e uso de máscaras, diminuir ao máximo a permanência em espaços fechados não ventilados não podem ser abandonadas! Estarmos acelerando a vacinação é uma notícia maravilhosa, mas hoje ainda não é o momento de relaxar as outras frentes de combate à pandemia. Na verdade, era a hora de mantê-las, e assim garantir que teremos a chance de salvar mais e mais vidas enquanto a cobertura vacinal vai se ampliando.
Esta estimativa, aliada a medidas não farmacológicas contribuiriam significativamente para diminuirmos (talvez controlarmos) a COVID-19. Todavia, bom lembrar, estas medidas incluiriam uma vigilância epidemiológica eficiente, o que não vem ocorrendo desde o início da pandemia.
Mas estamos tão mal assim?
Não é isso que estamos dizendo. Porém, é um pouco também. Nós temos aumentado significativamente a quantidade de pessoas vacinadas. Há muitas pessoas com uma dose de vacina aplicada, aguardando a segunda dose. Entretanto, como temos dito, não é suficiente para segurarmos a circulação do vírus SARS-CoV-2!
Gráfico das médias móveis de vacinação no país: desde junho, vacinamos mais de um milhão de pessoas todos os dias! E a velocidade só aumenta.
A pergunta que talvez tenhamos que nos fazer é:
– Será que já atingimos uma boa cobertura vacinal para a COVID-19?
A resposta é bem fácil e curta:
– NÃO.
E qual o motivo de escrevermos este texto neste momento?
Para além de preocupações casuais, nós temos noção de que, por vezes, parecemos negativos em relação à pandemia. Isso inclui bater na tecla de que os modos de vida vivenciados nos últimos 500 dias, incluindo a adoção de políticas públicas, “nem sempre” fazem sentido (para combater a COVID-19).
No entanto, há dois fatores que nos fazem produzir este post:
- A variante Delta e tudo o que ela vem “revolucionando” de comportamentos em países com a COVID-19 controlada (voltaremos a este tema em breve, por enquanto vamos só indicar os fios da Mellanie no fim do texto);
- Os anúncios de abertura de tudo, marcada para daqui 20 dias, no estado de São Paulo (onde o Blogs Unicamp acompanha de forma mais intensa, em função de ser nossa residência…).
Sob qual justificativa abriremos tudo?
É que parece que tudo vai bem aqui em São Paulo com a vacinação da COVID-19…
Vimos estes anúncios do Governador de São Paulo, apontando a antecipação do término da Vacinação da 1ª dose contra COVID-19 e uma suposta “retomada segura” no Estado.
Cabe lembrar que, sim, os casos notificados e os óbitos têm registro de queda no Estado de São Paulo. Mas é uma queda estilo usando paraquedas e pensando se vai parar no meio do caminho para tentar subir novamente… Isto quer dizer que estamos, sim, diminuindo casos diários, mas temos redução dessa diminuição nas últimas semanas. É preciso acompanhar estes dados e, mais do que isto, lembrar que temos a variante Delta está chegando e precisamos permanecer atentos e com muito cuidado e manutenção de medidas não farmacológicas.
O Governador indica que a partir do dia 17 de agosto a população já estará vacinada. Mas será que é desta forma mesmo?
Retrato da cobertura vacinal no Estado de São Paulo dia 28 de julho:
No dia 28 de Julho, nós temos 23,2% da população com mais de 18 anos vacinada completamente (regime de duas doses ou dose única). Nós temos neste momento 58% da população com mais de 18 anos com ou nenhuma ou uma dose apenas.
Parece redundante…
É redundante e não nos importamos, inclusive, em insistir na redundância: não dá para falar em “população vacinada” quando estamos falando de uma parcela da população. Ou seja, uma parte da população que é inferior à proporção que seria aconselhável para as pessoas começarem a circular de forma segura.
Além disso, falar em “população vacinada” um dia depois de terminado o cronograma de vacinação seria supor que ao tomar a primeira dose estamos imediatamente protegidos. E não é verdade. Temos um tempo necessário para produzir a proteção em nosso organismo – cerca de 15 dias após a SEGUNDA dose (ou 30 dias em casos de dose única).
Se formos levar em conta que a data indicada pelo governo de São Paulo apenas considera a primeira dose: não faz sentido apontar que a população está protegida.
Parece redundante, é redundante e não nos importamos em insistir na redundância…
Não há proteção contra a COVID-19 que se faça por mágica em uma seringa. Nosso corpo precisa de um tempo para se proteger individualmente. Nossa população precisa de cobertura vacinal para se proteger em massa.
E cobertura vacinal é regime completo no braço, com tempo para o corpo desenvolver a proteção contra o vírus.
Não há protocolo diferente deste em local algum do mundo: não haverá nada que barre um vírus por decreto de governantes dizendo que estamos em retomada segura. Os casos no mundo inteiro estão subindo e “vida normal” não pode ser retomada com mais e mais mortes do que já tivemos até agora.
Então é o fim da esperança?
Longe de nós apostar em algo tão dramático assim. Mas seguimos apontando a linha de análises que PRECISAM de políticas públicas que levem em conta o que a ciência vem debatendo como protocolo, cobertura vacinal e vigilância epidemiológica desde os primórdios de tudo isto.
Precisamos manter a esperança, sim. Mas isso significa que precisamos colocar em prática comportamentos e cobranças políticas reais e efetivas para voltarmos a um ritmo de vida saudável – e isto deveria ser o alvo da normalidade.
Por fim, para não deixar dúvidas, usamos os números e casos de São Paulo como exemplos. Não é o único estado que tem ações nesta direção.
Agradecimento especial deste post para Isaac Schrarstzhaupt que ajudou com os gráficos.
Para Saber Mais:
¹ Bartsch, Sarah M et al (2020) “Vaccine Efficacy Needed for a COVID-19 Coronavirus Vaccine to Prevent or Stop an Epidemic as the Sole Intervention” American journal of preventive medicine vol 59,4 (2020): 493-503.
Brasil, Ministério da Saúde (2003) Programa Nacional de Imunizações, 30 anos
de Moraes, José Cássio, de Almeida Ribeiro, Manoel Carlos Sampaio, Simões, Oziris, de Castro, Paulo Carrara, & Barata, Rita Barradas (2003) Qual é a cobertura vacinal real?. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 12(3), 147-153.
São Paulo (2021) SP amplia funcionamento de atividades econômicas até 0h a partir de domingo | Governo do Estado de São Paulo (saopaulo.sp.gov.br)
Vaccine registration to open for those aged 16 and 17 (rte.ie)
Textos de Divulgação
Nosso normal: variantes, festas e aumentos de casos
Vacinas: uma ação de Saúde Pública
Estratégias de vacinação: o que se leva em conta?
Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
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