Talvez vocês tenham visto a notícia de um evento na Holanda, com 20 mil pessoas, “todos os protocolos” e resultou em, pelo menos, 1000 casos confirmados para COVID-19. Ao me deparar com esta manchete, fui ver alguns dados: como está a vacinação na Holanda, casos diários, entre outras coisinhas.

Outra pergunta que me fiz foi: será que nunca mais poderemos fazer festivais ou grandes aglomerações, mesmo vacinados? E com a vacinação andando aqui no Brasil, estaremos finalmente a salvo? (a vacina não era, afinal, a solução que todos os divulgadores da ciência e cientistas nos venderam?).

[pausa para recomendação de leitura com trilha sonora]

Muitas perguntas… Sem embromação, vamos a alguns dados.

O que podemos falar sobre a Holanda, neste momento da pandemia?

  • cerca de 17 milhões de habitantes;
  • 874 testes por milhão de habitantes;
  • 1.766.102 de casos totais;
  • 1.035 mortes por milhão de habitantes;
  • 17.773 mortes totais;
  • 67,38% da população tomou pelo menos 1 dose de vacina;
Pessoas vacinadas com 1 dose, por país. Our World in Data

Com base nestes dados, temos que 0,1% da população faleceu por COVID-19 e 10% da população contraiu COVID-19 ao longo de 2020 e 2021. Só a título de comparação, no Brasil temos 9% da população infectada e 0,25% de óbitos (em relação à população total do país). Isto levando-se em consideração que temos 253 mil teste por milhão de habitantes (próximo de 35% do que a Holanda faz de testes em sua população). Ou seja, temos dados bem mais complicados que estes e os testes e rastreios seguem sem serem feitos em nosso país, de forma adequada.

O festival e as medidas de proteção

A Holanda, desde 26 de junho (20 dias atrás, portanto) aboliu grande parte das medidas de proteção contra o coronavírus e isto envolvia grandes eventos no país.

No dia 27 de junho foi o dia com menor quantidade de casos, desde meados de setembro de 2020 – registraram 499 casos no país. Além disso, dez dias depois da abertura, no dia 6 de julho, foram 2.209 casos registrados. Por fim, em 10 de julho, 10.299 casos novos de COVID-19.

Dados compilados por SCHRARSTZHAUPT, Isaac e BRAGATTE, Marcelo. Painel Casos, óbitos e taxa de crescimento. Rede Análise Covid-19/Serrapilheira. Acessado em 16/07/2021. Disponível em: http://bit.ly/Rede_CasosObitosTaxa

20 mil pessoas participaram do festival noticiado e somente pessoas vacinadas ou com o teste negativo poderiam entrar no local. Ele era em local aberto e aconteceu nos dias 3 e 4 de julho. Já tínhamos cerca de 40% da população holandesa vacinada com 2 doses. O que poderia ter dado errado, afinal?

É bom apontar, antes de seguirmos no texto, que todas as vacinas têm indicado que a contaminação, mesmo com duas doses, é possível de ocorrer e há (nestes casos) uma diminuição da gravidade da doença. Isto é fundamental termos em mente: a vacinação protege em massa, é segura e é eficiente. Mas sempre corremos o risco de nos contaminarmos (em qualquer vacina da história, isto não é uma exclusividade destas vacinas de COVID-19).

Sobre os testes de detecção do vírus SARS-CoV-2

Não que seja recente este tipo de discussão, mas sempre é bom retomar. Cada vez que um evento como este ocorre, parece que temos que voltar lá para as primeiras postagens, textos e discussões que fazíamos em 2020 (parece tão longínquo, porém necessário!).

Voltemos então

Entre a exposição ao vírus (o dia que nos infectamos) e o momento em que conseguimos detectar a infecção em testes de PCR (que detectam material genético de vírus) ou testes de antígeno (que detectam proteínas do vírus) existe um tempo em que não conseguimos averiguar exatamente se estamos ou não contaminados.

Em geral, para as linhagens de SARS-CoV-2 no início da pandemia, falávamos de um intervalo entre 5 a 7 dias para detectar o vírus, com teste de PCR (para testes de antígeno falamos deste mesmo intervalo mais ou menos).

A Mellanie Fontes-Dutra lançou ontem um fio explicando que para a variante Delta este tempo pode cair para 4 dias, em função da alta carga viral desta variante… Recomendo fortemente a leitura

Ao passo que a Delta é detectada mais cedo que as variantes anteriores ou a cepa original, ela também é mais transmissível. Há três dias atrás o diretor geral da OMS afirmou que a Delta está presente em 104 países e se tornará a variante predominante em breve.

Esta onda de contágios na Holanda – assim como em outros países cuja vacinação está mais avançada e a pandemia parecia controlada – é, ao que tudo indica, consequência desta variante.

Entretanto, voltando aos testes, uma questão fundamental aqui é relembrarmos algo fundamental: existe um intervalo de tempo sem sintomas e com muita transmissão do vírus.

No caso da variante Delta, que causa uma carga viral tão alta a ponto da detecção acontecer no 4º dia após a exposição, a transmissão também está acontecendo de forma intensa. Dessa forma, repito: sem sintomas aparentes (ou discretos demais para nos protegermos e isolarmos).

O que eu gostaria de frisar sobre testes é: o teste é um retrato do passado (entre 4-9 dias do contágio).

Isto é importante pois temos falado o tempo inteiro sobre testes e rastreios desde o início da pandemia. E talvez neste momento alguém possa perguntar:

– Mas Ana, se é um retrato do passado, o que adianta fazer testes?

Ora… é fundamental para conseguirmos isolar pessoas, comunicar a possibilidade de contágio para quem tivemos contato e isolar estas pessoas também (e possíveis contatos destas pessoas neste meio tempo).

Além disso, em casos em que pessoas têm se exposto no ambiente de trabalho, por exemplo, os testes frequentes permitem ir acompanhando e conseguem minimizar o impacto de uma infecção em todo um grupo que atua junto. 

Teste e rastreio são uma das medidas mais importantes de controle, pois sua constância permite monitorar a situação de um grupo de pessoas.

Nem começarei a falar aqui das medidas não farmacológicas como máscaras, distanciamento e evitar espaços fechados e sem ventilação, afinal todos sabemos que elas são super eficientes para diminuirmos a circulação do vírus, né?

O festival, as vacinas e os intervalos dos resultados negativos

Retomando: pois é. Aglomerar com medidas de segurança não funcionou. Quem poderia prever que “todos os protocolos” não funcionariam? 5% das pessoas do festival positivaram. Isto nos mostra que este “olhar para o passado” que os testes nos proporcionam não nos assegura de muitas coisas – a não ser quando feito de maneira frequente e com rastreios constantes. Sem o monitoramento frequente através dos exames, vacinação completa e em massa população e os protocolos de prevenção seguidos à risca (máscara, distanciamento, espaços ventilados, sem aglomeração) não há garantias de não infecção, principalmente com o surgimento de novas variantes…

Nós temos visto as discussões acerca da variante Delta, sua transmissibilidade é altíssima, já falei isso anteriormente. Todavia, embora ela não escape da imunização das vacinas atuais, ao que tudo indica é fundamental termos as duas doses aplicadas. Mas retomemos os dados: 63,38% de pessoas com uma dose aplicada, 40% das pessoas têm as duas doses.

E os casos na Holanda? Subindo – como o primeiro gráfico deste texto nos mostrou.

Até quando? Até quando seguiremos dando estas oportunidades repetidas às variantes, exercendo pressão seletiva sobre as variantes e possibilitando mais e mais infecções por uma suposta volta à normalidade?

Estes passaportes imaginários para adentrar em mundos seguros e livres de Covid precisam de muito mais estrutura, mudanças de comportamentos e, principalmente, levar a sério a noção de que nosso mundo mudou.

Temos nos perguntado sobre o “novo normal” há 16 meses. Também perguntamos sobre quando voltaremos ao nosso normal.

O que é normal?

É um mundo que segue acreditando que a única possibilidade de felicidade, extravasar energia, viver bem é juntando-se com 20 mil desconhecidos. Tanto quanto um mundo com gente que frequenta restaurantes caros. Isto tudo dividindo o espaço com profissionais nos servindo ganhando pouco mais do que o suficiente para sobreviver. Além disso, claro, estas pessoas não tem outra alternativa a não ser aglomerar em metrôs e ônibus lotados para chegar ao nosso espaço de lazer. Nosso normal tem quase 8 bilhões de pessoas, com grande parte da população passando fome e sem condições mínimas de saúde. Isto em um mesmo lugar que alcançamos vacinas em menos de um ano contra uma doença avassaladora.

Estamos em um mundo que passa fome e explora o espaço defendendo sua democratização para quem pode pagar fortunas difíceis de caber em ideias mundanas.

Simultaneamente, nosso normal segue pensando um mundo que os protocolos de um país o isolaria dos demais que não estão seguindo os protocolos. Enquanto isso, as variantes circulam, aumentam, e a preocupação é quando poderemos, afinal, voltar ao normal.

Caso estejas no Brasil (como grande parte dos que leem o Blogs da Unicamp estão), vivemos como se nossos escassos vacinados possam segurar variantes que chegam em campeonatos impensados ou em férias que não podiam ser reagendadas. Talvez os vacinados segurem estatísticas que não cessam de emergir e políticos que ignoram o que este vírus têm nos mostrado de maneira didática:

Doenças são sociais, mesmo quando são um conjunto de sintomas fisiológicos causados por um agente viral.

Uma doença como a COVID-19 nos esfrega na face, diariamente, que nosso normal não era aceitável e não sabemos o que fazer, frente à urgência de mudarmos – como indivíduos, sujeitos, coletivos, populações, humanidade.

Dessa forma, podemos olhar dados passados e constatar que antes da pandemia, os metrôs paulistanos transportavam cerca de 200 milhões de pessoas por mês. Isto é, o equivalente a um país inteiro como o Brasil circulava em linhas de uma das maiores metrópoles do mundo. Como estamos neste momento? Cerca de 96 milhões de pessoas mensalmente. A pandemia diminuiu a mobilidade nos metrôs para pouco menos da metade, ainda assim, é como se fosse Vietnã inteiro andando de metrô mensalmente.

Assim, me pergunto: o centro de São Paulo representam quantos festivais de Amsterdã diariamente? De pessoas sem vacinas suficientes, nem testes possíveis, o que dirá rastreios de nossas mazelas?

O nosso normal nos trouxe ao descaso com vidas e desapreço pelas possibilidades de a ciência ser exercida com empatia para todos e por todos (no Brasil e no mundo).

Pensando sobre Humanidade em tempos de pandemia

Krenak diz que “nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida” (p.26). Esta passagem (o livro todo) nos propõe a pensarmos em Ideias para adiarmos o fim do mundo que se vinculam a novos conceitos de humanidade para podermos viver. Uma humanidade que se pense não como produto para consumo, não como objeto para trocas, não como idealizações que culminam em mortes em massa. É preciso repensar o que nos trouxe até aqui, antes de querermos voltar ao que, supostamente, existia antes.

“Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo ao qual algumas seletas pessoas chamam de Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos jogados neste abismo” (p.72)

Em suma, pergunto: queres voltar ao nosso normal?

Nosso normal nos trouxe até aqui. 

Para saber mais

DW (2021) Quase mil pessoas se infectam em festival de música na Holanda e Premiê da Holanda se desculpa por relaxar medidas anticovid

El Pais (2021) A variante delta do coronavírus, mais contagiosa, se espalha por países da América Latina

Dados mundiais sobre vacinação, testes, casos e óbitos: Worldometer Coronavírus, Our World in Data

Krenak, Ailton (2020) Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das Letras.

Textos do Blogs sobre o tema:

Solidariedade: saúde para todos

Sobre o período de incubação da doença e suas relações com a quarentena…

Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária – Faz sentido isso?

Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial COVID-19

Agradecimento especial ao Isaac Schrarstzhaupt que debateu sobre os dados e ajudou a organizá-los para este post, Erica Mariosa, Carolina Frandsen e Graciele Oliveira que revisaram o texto, e minha mãe, que falou “nosso normal nos trouxe até aqui” (obrigada por tudo sempre, inclusive).

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


editorial


Ana Arnt

Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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