O que isso tem a ver com as “escapadinhas” da quarentena

Texto escrito por Mariene Amorim

Vírus. Nunca houve tanto interesse sobre o significado dessa palavra antes. O conceito de vírus é simples, em comparação com a complexidade do seu significado na natureza. Os vírus são partículas muito pequenas, formadas apenas por proteínas e ácido nucleico (material genético que pode ser DNA ou RNA), e alguns possuem ainda um envelope lipoproteico recobrindo a partícula.

Todos os organismos vivos são compostos por células, às vezes por uma única célula, como as bactérias, e às vezes por milhares de células, como nos animais e nas plantas. Os vírus, por sua vez, não possuem células e dependem totalmente de componentes das nossas células para se replicarem.

Sendo assim, enquanto as células possuem uma maquinaria específica responsável por corrigir eventuais mutações à medida que replicam seu DNA, esse processo não acontece nos vírus. Portanto, quanto mais os vírus se replicam e se espalham pela população, mais eles vão sofrendo alterações em seu material genético as quais não são corrigidas.

As mutações

Essas alterações são mudanças na sequência de nucleotídeos, que são as moléculas que compõem o DNA e o RNA, e são conhecidas como mutações. No entanto, o acúmulo de mutações, com o tempo, permite o surgimento de partículas virais um pouco diferentes umas das outras, que seriam as variantes virais. E vale ressaltar que essas mutações acontecem por acaso, e não propositalmente.

Dessa forma, esse é um processo natural na história evolutiva dos vírus, e é esperado que aconteça. Todavia, alguns vírus sofrem mutações com mais frequência do que outros, devido a uma diversidade de fatores.  

Os vírus de RNA costumam sofrer muitas alterações em seu material genético à medida que se replicam e se espalham. O SARS-CoV-2 é um vírus que possui como material genético uma fita simples de RNA, e acumula cerca de 1 a 2 mutações a cada mês. A pandemia do novo coronavírus começou em dezembro de 2019, e diversas variantes já foram reportadas por todo o globo. Entretanto, várias destas mutações não alteram significativamente a ação do vírus.

As mutações e as infecções

Já sabemos também da existência de algumas mutações específicas que acabam favorecendo a infecção de alguma forma. Por exemplo, uma alteração que proporciona uma melhor ligação do vírus com o receptor celular para a entrada do vírus na célula que ele precisa infectar, que chamamos de célula hospedeira.

Mas, o que isto quer dizer? Apenas para relembrar o que já vimos em textos anteriores. O vírus entra na célula a partir de um receptor – uma proteína que se localiza na membrana de nossas células. No caso do SARS-CoV-2, esta molécula presente nas nossas células chama-se ACE2. Já a proteína do vírus que se encaixa na ACE2 é a “famosa” Spike. A Spike funciona como uma chave, que consegue acessar a fechadura (a proteína ACE2) para entrar nas células.

Recentemente, duas variantes do SARS-CoV-2 têm chamado muito a atenção das autoridades e da população mundial, devido ao acúmulo de várias mutações em seu RNA, que aparentemente favorece sua dispersão, ou seja, essas variantes se espalham mais rapidamente do que as outras variantes locais. São elas a B 1.1.7 reportada pela primeira vez no Reino Unido, e a 501.V2, ou B 1.351, reportada pela primeira vez na África do Sul, que já são encontradas em outros países. 

A análise filogenética da variante B 1.1.7 mostra uma alta taxa de evolução molecular.

O que isto quer dizer?

Bom, “análise filogenética” é como se fosse uma análise dos “antepassados”, na biologia. Só que neste caso, analisamos a evolução dos seres e populações a partir de sua genética. Neste tipo de análise, conseguimos estabelecer o acúmulo de mutações e como elas vão dando origem a seres ligeiramente diferentes – até tornarem-se (por exemplo) outro ser completamente diferente. 

Claro que vírus não são considerados seres vivos! Todavia, eles têm RNA ou DNA e, assim, é possível traçar também uma linha que explica e nos ajuda a analisar as mutações e as variações.

Dito isto, vamos à variante B 1.1.7.

Essa variante possui um acúmulo significativo de mutações (no total de 17 mutações!). Aparentemente, a grande questão desta variante é que as mutações podem estar proporcionando maior transmissibilidade. Dito de maneira mais simples: esta variante se espalha mais e de maneira mais eficiente do que a “versão anterior” do coronavírus. 

É importante ressaltar que até o momento, esse conjunto de mutações apresentadas pela B 1.1.7 não está diretamente relacionado ao desenvolvimento de casos mais graves da doença. Todavia, é necessário que seja feita uma vigilância genômico- epidemiológica para acompanhar os casos, além de investigações laboratoriais para verificar antigenicidade e mecanismos de patogênese.

Calma! Como assim?

É fundamental, neste momento, acompanharmos como esta nova variante está se espalhando, fazendo sequenciamento genético destes vírus, para avaliar a situação epidemiológica da doença – que diz respeito à velocidade que se espalha, em que situações, como se diferencia da “variante de coronavírus original”. Isto é: precisamos monitorar esta variante e analisar seu impacto na população.

As investigações laboratoriais dizem respeito ao sequenciamento, mas também a como esta variante reage no nosso organismo e como nosso organismo responde a esta nova variante (se o agravamento da doença passa a existir, se conseguimos nos defender desta variante como da anterior etc.).

Reino Unido… África do Sul… São países distantes, de outros continentes… Isso nunca vai acontecer no Brasil, certo? Errado!

Dois casos da variante B 1.1.7 já foram reportados no Brasil, em dezembro do ano passado, aproximadamente na mesma época em que essa linhagem foi reportada no Reino Unido. Encontrar essas variantes não é uma tarefa fácil, e demanda árduas horas de trabalho dos pesquisadores, investimento, e parcerias com unidades de saúde. Porém, apenas assim é possível identificá-las.

Foi no intuito de investigar as variantes circulantes em Manaus, atualmente uma das cidades que mais tem sofrido com o avanço da pandemia em nosso país, que pesquisadores identificaram uma nova variante, ou linhagem, que recebeu o nome de P1, descendente da B 1.1.28.

Foi visto que a P1, encontrada em Manaus, tem mutações em comum com a B 1.1.7 e com a B.1.351, em regiões do material genético que codifica a proteína Spike que comentamos anteriormente. Ou seja, essa variante também pode ter maior transmissibilidade. Estaria ela associada ao recente aumento de casos em Manaus e às reinfecções?

Mas, vamos guardar essa pergunta para os próximos capítulos!

Os vírus são partículas muito pequenas, de constituição simples, mas que podem ser complexos na sua maneira de existir no mundo, e gerar problemas globais. O número de casos de COVID-19, e a pandemia na qual nos encontramos é, de fato, algo que ficará marcado na história.

A maneira como esse vírus se espalha tão facilmente, e o crescente número de casos, resulta no aumento da diversidade do vírus, e podemos a qualquer momento nos deparar com um vírus mais facilmente transmissível, mais perigoso, mais mortal. Portanto, sim, variantes virais importantes também podem surgir no Brasil, bem debaixo (ou dentro) do nosso nariz. Bem como, a transmissão está diretamente relacionada a maneira como nos comportamos diante dessa grande tragédia, e da nossa responsabilidade social.

Por fim

É sempre importante retomar a necessidade dos cuidados básicos de higiene e distanciamento social. Neste momento, claro que as novas variantes nos assustam. Mas não é “culpa” delas tudo o que estamos vivendo agora. Assim, é fundamental seguirmos cobrando políticas públicas que possibilitem que o máximo de pessoas fiquem em casa com segurança.

As novas variantes também são decorrentes da enorme circulação dos vírus que temos. Em suma, é necessário que a gente diminua a circulação dos vírus – e todas as suas variantes – da maneira mais urgente e imediata possível.

#maisresponsabilidadesocial #menoscoronavirus

Mais textos sobre coronavírus neste blog:

Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório, causa danos no cérebro?

Para saber mais

1. Rambaut, Andrew et al (2020) Preliminary genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in the UK defined by a novel set of spike mutations. Virological org Dezembro de 2020

2. Faria, Nuno R (2021) Genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in Manaus: preliminary findings. Virological org Janeiro de 2021.

3. Candido, Darlan S et al (2020) Evolution and epidemic spread of SARS-CoV-2 in Brazil Science, Vol369 (6508), p. 1255-1260, 2020

4. Voloch, CM et al (2020) Genomic characterization of a novel SARS-CoV-2 lineage from Rio de Janeiro, Brazil medRxiv.

5. Tegally, H et al (2020) Emergence and rapid spread of a new severe acute respiratory syndrome-related coronavirus 2 (SARS-CoV-2) lineage with multiple spike mutations in South Africa, medRxiv.

6. Duchene, Sebastian, Leo Featherstone, Melina Haritopoulou-Sinanidou, Andrew Rambaut, Philippe Lemey, and Guy Baele (2020) “Temporal Signal and the Phylodynamic Threshold of SARS-CoV-2” Virus Evolution 6 (2): veaa061.

A autora

Mariene Amorim Natural de Salvador, Bahia, e biomédica formada pela Universidade Tiradentes – Aracaju, Sergipe. Mestre em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, na área de Virologia. Trabalha com vírus emergentes desde 2015. Atualmente é doutoranda em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, e participa de um estudo genômico-epidemiológico e de multi ômicas do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a fim de acompanhar a evolução molecular do vírus, entender o desenvolvimento da COVID-19 e acompanhar o avanço da pandemia na cidade de Campinas e região metropolitana. Mariene também é membro da Força-Tarefa contra a COVID-19 da Unicamp.

Nossos sites institucionais:

Força Tarefa da Unicamp

Unicamp – Coronavírus

Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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