Texto escrito por Marina Fontolan e Ana de Medeiros Arnt

Há alguns meses, fizemos um texto comentando o Projeto de Lei 1674/2021 que trata do Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (PSS). No entanto, com o avanço da vacinação no Brasil e no mundo, precisamos revisitar essa questão. Aqui, argumentamos ser indispensável a exigência do passaporte vacinal, não apenas nas fronteiras do país, mas mesmo internamente.

Antes de argumentarmos sobre isso, vamos retomar alguns dos principais pontos que discutimos no texto passado:

A vacinação não é compulsória;

 Sim! É verdade. A vacinação não é compulsória e defendemos isto! A vacinação, mesmo sendo obrigatória, não é compreendida como sendo uma ação que o Estado brasileiro pode efetuar de forma coercitiva. Existe diferença substancial entre estas duas noções. A vacinação, por ser obrigatória, pode se vincular a atos restritivos a serviços públicos quando não tomarmos. Por exemplo, pode-se restringir nosso acesso a concursos ou serviços públicos específicos, por meio de lei, impossibilidade de matrícula em escolas e universidades, entre outros serviços.

Podemos seguir sem tomar as vacinas que decidimos não tomar. Todavia, aquelas que são consideradas obrigatórias, podem ter medidas de restrição para acesso de serviços fornecidos pelo nosso país. Essa lógica vale para qualquer outro tipo de decisão que tomamos. Por exemplo: não podemos dirigir sem nossa CNH, mas há pessoas que o fazem e que podem ser punidas por isso se forem pegas. Por exemplo: o voto é obrigatório. Se não votarmos e não justificamos, temos uma pendência com o governo, alguns serviços também ficam suspensos até que paguemos a multa. Não somos PRESOS por isso, mas temos uma restrição legal para acessar espaços e serviços.

Não deveria ter discriminação de espaços por ações individuais e opções relacionadas ao nosso corpo;

Este é um ponto interessante e repleto de vieses. Não existe discriminação no sentido de preconceitos contra a pessoa que não quer se vacinar. Mas existe, no pressuposto da lei, a intenção de que pessoas vacinadas ou imunizadas estão seguras e, portanto, podem circular sem prejudicar outras ao seu redor.

Nestes casos, a idealização da lei poderia ser entendida pelo bem coletivo, mais do que pela criminalização do que se faz com o corpo individual e as decisões acerca disso… O que nos leva para o próximo item. 

O estado não deveria controlar nossos corpos;

A princípio não. Mas esta fala é perniciosa em tantos sentidos, não é mesmo? A liberdade sobre os nossos próprios corpos é um debate absolutamente profundo e necessário. Que não se restringe à vacinação. Ela diz respeito a termos o direito de assumirmos quem nós somos – diz respeito à nossa identidade como cidadão de uma sociedade, de uma nação. Assim, o direito ao nosso próprio corpo é parte da minha condição humana e de minha vivência neste país.

Eventualmente esta liberdade é cerceada quando eu coloco em risco a vida e a segurança dos outros. De qualquer modo, a noção de risco à sociedade é mais vago e difícil de delimitar do que pode parecer.

Existem várias pessoas que vêm lutando pelo direito de ser quem são, juridicamente, em nosso país há décadas. Direito de ir e vir, casar com quem quiserem, beijar, transar, ter filhos com quem quiserem, quando (e se) quiserem.

O Estado, ao tornar a vacina obrigatória, não controla o teu corpo – ele te dá a opção de usar diversos serviços públicos ou te restringir acesso a eles.

Ninguém tem qualquer direito de agir coercitivamente em relação ao teu corpo, vacinando-te. Tens razão, o estado não deveria controlar nossos corpos. Mas não é em processos de vacinação que isto acontece, mesmo quando isto é obrigatório.

A segurança sanitária coletiva está acima da individual;

Sim! A segurança sanitária diz respeito à coletividade. A vacina, individualmente, não faz sentido. Se você está vacinado sozinho, não existe qualquer vantagem em relação ao controle da doença e sua circulação. A vacina é um projeto público de controle de doenças em nossa sociedade. E é por isso que, idealmente, ela é obrigatória. Pois visa à saúde da humanidade, acima de indivíduos isolados.

É fundamental um indivíduo se vacinar, junto com os milhões que vivem próximo a ele. A vacinação, mais do que nos proteger isoladamente, faz com que os vírus não circulem. Neste sentido, quem não pode vacinar por alguma questão de saúde particular, também está protegida! E a vacinação de algumas doenças – talvez a COVID-19 se encaixe aí (ainda precisamos de alguns dados sobre isso) – precisam ser periódicas. Como a gripe, por exemplo.

  • Existe controle de doenças altamente infecciosas com documentos “teste de detecção negativo” com teste de validade

Por que um passaporte vacinal faz sentido então?

Há vários pontos que temos que considerar sobre o assunto. O primeiro deles é que a vacinação está avançando muito em muitos países do mundo, ainda que de forma muito desigual. O acesso à vacinação, pelo menos dentro do Brasil, está muito mais facilitado na atualidade e não tomar vacina – na maioria dos casos – está mais ligada à falta de vontade da população de tomá-las do que à falta de acesso. 

Também é importante notar que o pouco acesso às vacinas fez com que uma nova variante surgisse, a Ômicron. Assim, se quisermos realmente voltar às nossas atividades normais, precisamos exigir a vacinação para que possamos nos proteger contra a Covid e controlar melhor o surgimento de novas variantes.

Por fim, temos que lembrar sempre que o Brasil continua não fazendo testagem em massa da população. Seguimos ocupando um lugar irrisório no hanking mundial em relação à testagem por milhão de habitantes. Ainda que os números de internações estejam diminuindo no país, não temos como saber com exatidão como a pandemia está no país e, por isso, não temos como ter certeza quando poderemos ter um abrandamento de medidas restritivas. Exigir o passaporte vacinal, assim, vai ajudar o país no controle da pandemia já que sabemos que as vacinas dificultam que o vírus se espalhe com a mesma facilidade de antes. No entanto, é importante notar que o passaporte vacinal não deve substituir testagem em massa, essa sim a forma mais correta de levantar dados para estudar abrandamento das medidas restritivas.

Lembrem-se: já existe passaporte para outras doenças, quando viajamos para o exterior!

Outro ponto importante desta questão está relacionado à entrada em outros países. Não é de hoje que alguns países exigem que as pessoas estejam vacinadas para determinadas enfermidades. Um exemplo disso é o México, um país que exige que as pessoas que entrem em seu território estejam vacinadas contra febre-amarela. No entanto, é importante notar que, mesmo estando vacinados, há países que continuam não aceitando a entrada de pessoas de determinadas nacionalidades ou que tenham certos países de origem. Este é o caso dos brasileiros já totalmente vacinados contra a Covid-19. Afinal, os países temem a circulação de variantes e a morosa vacinação no Brasil está sendo fator decisivo nisso. Assim, mesmo que o governo brasileiro crie seu próprio ‘passaporte vacinal’, ele pode não ser aceito em outros países.

Por outro lado, o passaporte entre países com as doenças sob controle – ou no caso de inexistência da doença há muitos anos (mas ainda existência de hospedeiros intermediários, como no caso da febre amarela) o passaporte adquire outro sentido: a da tentativa de manter a doença erradicada naquela localidade. Um passaporte contra a febre amarela entre fronteiras de países (como Brasil e México) faz mais sentido do que um passaporte interno entre localidades de uma cidade, no caso da COVID-19. Estamos habitando os mesmos espaços e circulamos em espaços conjuntos, antes de adentrar um território cujo acesso seja restrito. Enquanto não controlarmos a circulação do vírus com medidas não farmacológicas, além da vacina em conjunto, e mantivermos a transmissão alta na população, este passaporte tem pouca efetividade na prática.

Finalizando

Considerando o avanço da vacinação no país e no mundo, consideramos que o uso do passaporte vacinal é essencial. É ele que garante que a pessoa realmente tomou a vacina e, por isso, não transmite o coronavírus com a mesma facilidade que uma pessoa não vacinada. Além disso, é esse documento que vai proteger nossa população na circulação de novas variantes, como o caso da Ômicron. Por fim, é esse documento que vai proteger a população contra o negacionismo científico e contra os antivax.

Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19, em 21/06/2021 e atualizado nesta versão em Dezembro de 2021.

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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