Figura 1: Caricatura do século XIX retrata um homem da classe trabalhadora sendo vacinado à força por um oficial de saúde, enquanto é detido por um policial. Fonte: Hathitrust Digital Library. 

Pesquisas de opinião têm demonstrado uma queda no número de pessoas dispostas a aderir a uma vacinar contra a Covid-19, quando esta for aprovada. Assim, questionamos, haveria uma deliberada intenção de agendar o debate em torno da obrigatoriedade da vacina? Isto feito utilizando o Padrão da Fragmentação e da Inversão e também fabricando um consenso, induzindo à hesitação vacinal?

O Agendamento, o Consenso e a Inversão

A Hipótese do Agendamento foi elaborada nos anos 1970 por Maxwell McCombs e Donald Shaw (1). Esta hipótese sustenta que os consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são veiculados com maior destaque na cobertura jornalística. Dessa forma, como consequência disso, ela propõe a ideia de que a mídia (as empresas de comunicação) pautam o debate pública. Ou seja, selecionam quais os temas mais relevantes a serem discutidos pela sociedade, relegando os demais a um segundo plano ou até ao esquecimento.

Posteriormente, McCombs vai admitir a possibilidade da existência de um agendamento reverso (2). Isto é, que o público seja capaz de influenciar a mídia. Assim como acontece atualmente nos casos em que os assuntos mais comentados nas redes sociais tornam-se pauta nas redações. Entretanto, por sua vez, a mídia, por dever de ofício, também pode ser pautada pelos políticos na medida em que precisa cobrir o trabalho deles. Qual seja, propor mecanismos (por meio de leis) que criam um modelo de sociedade de acordo com sua ideologia político-partidária. 

Assim, na busca de estabelecer qual tema será debate pela sociedade e qual será esquecido, há um embate de imposições de agendas entre a mídia, o público e os políticos.

Noam  Chomsky e Edward Herman, em 1988, elaboram uma crítica aos meios de comunicação de massa, apontando que eles realizam escolhas, ênfases e omissões. No entanto, isto ocorre não por meio de técnicas jornalísticas. Mas de propaganda. Isto ocorreria com o objetivo de produzir na população a aceitação de algo inicialmente indesejado por ela. Todavia, privilegia determinados interesses, sejam do Estado ou de setores da atividade privada. Denominam a esse procedimento de Consenso Fabricado (3).

Perseu Abramo, também no final dos anos 1980, descreve cinco padrões de manipulação da “grande” imprensa:
  1. Ocultação: é o deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade;
  2. Fragmentação: implica em duas operações básicas: a seleção de aspectos, ou particularidades, do fato e sua descontextualização;
  3. Inversão: é o reordenamento das partes, a troca de lugares e de importância dessas partes (é aplicado depois da fragmentação);
  4. Indução: o leitor é induzido a ver o mundo, não como ele é, mas sim como querem que ele o veja; 
  5. Global ou o padrão específico do jornalismo de televisão e rádio: divide-se em três momentos: o fato é apresentado sob ângulos mais emocionais; há a necessidade de personagens (testemunhas); a autoridade anuncia as providências.

Naquela época, a internet comercial ainda nem existia – ela foi criada no Brasil em 1995. Além disso, os sites de redes sociais ainda não tinham sido inventados. No entanto, no mundo contemporâneo, escreve a jornalista Patrícia Cornils,

“parte da disputa pela opinião pública se dá nesta esfera conectada e em publicações online independentes da grande mídia” (4).

Nesse sentido, penso que, guardadas as devidas proporções, os padrões podem ser aplicados para a análise da produção da informação que se faz nas mídias sociais. Isto tendo em vista que, parte dela, já é profissional.

Estratégias de ação (Modus operandi)

Figura 2: Capa do livro Merchants of Doubt (Mercadores da Dúvida). Fonte: Bloomsbury Publishing

Erik Conway e Naomi Oreskes (5), no livro Merchants of Doubt (Mercadores da Dúvida, 2011) falam sobre grupos empresariais. Neste livro, eles falam sobre como, desde os anos 1950, estes grupos financiam cientistas para questionar evidências científicas. Por exemplo, a relação cigarro x câncer de pulmão. Isto teria a finalidade de passar à sociedade a impressão de que há incertezas em relação às conclusões de inúmeras pesquisas. Ou seja, fazem parecer que há um debate aberto sobre o tema. Este livro foi adaptado como  documentário em 2014 pelo diretor Robert Kenner (6).

Além disso, outra estratégia desses grupos é transformar o consenso científico em debate político. Quem fez isso foi o físico Fred Singer. O cientista relacionou a destruição da camada de ozônio da atmosfera pelos gases chamados CFCs (clorofluorcarbonos) – descoberta premiada com o Nobel de química em 1995 – a uma suposta defesa de posições políticas:  

Singer escreveu que se tratava de uma “declaração política”. A opinião pública sueca até mesmo apoiaria uma “hipotética taxa sobre o carbono para reverter um aquecimento do clima global que ainda não foi detectado (…). Sinteticamente, o país está tomado de uma histeria ambiental coletiva” (7)

Todos sabemos que uma das características da ciência é estar aberta a mudanças, diante de novas evidências. No entanto, nem sempre sabemos como funcionam as estratégias dos mercadores da dúvida…

Mas quais são elas?

  • Primeiro é distorcer exatamente o natural grau de incerteza presente em todo estudo científico. Com isso, transforma-se a incerteza em uma grande dúvida que coloque em xeque a credibilidade do próprio estudo;
  • Em seguida, trazer para o debate questões de natureza política. Isto faz com que as pessoas passem a aceitar ou a negar verdades científicas com base em suas crenças político-ideológicas. Com isso, incute-se nelas a ideia de que a ciência é uma questão de opinião ou de lado.

E por que é importante entender isso?

O mundo segue em busca de uma vacina segura e eficaz para combater a Covid-19. Até 21 de outubro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia registrado cerca de 179 pesquisas em desenvolvimento. 44 delas sendo testadas em humanos. Das quais, 10 na terceira e última fase antes da aprovação (entre as quais a CoronaVac e a vacina de Oxford). No Brasil, as vacinas precisam ainda ser aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) antes de serem disponibilizadas à população.

Neste momento, a doença já ceifou mais de 169 mil vidas brasileiras. O debate que realmente importa à sociedade é como sobreviver a essa pandemia, não apenas do ponto de vista da saúde e da economia. Mas também sob o aspecto emocional. Dessa forma, custa a crer que alguém cogite em recusar uma vacina que pode significar a volta a uma vida quase normal. Todavia, apesar disso, o instituto Datafolha lançou duas pesquisas realizadas em quatro capitais do país (o Gráfico 1 mostra apenas os resultados de São Paulo). Estas pesquisas indicam que vem caindo o número de pessoas que pretendem aderir a uma vacina quando esta for aprovada:

Gráfico 1: Adesão à vacina contra a Covid-19 na Cidade de S. Paulo. Fonte: Instituto Datafolha em 10 out. 2020 e 07 nov. 2020

Mas…

Coincidentemente, há pelo menos dois meses o país passou a debater intensamente a prevalência do direito individual de não se vacinar sobre o direito coletivo à saúde. Este é um discurso que o movimento antivacina se utiliza desde o século XIX. O debate foi insuflada por falas do presidente Jair Bolsonaro a apoiadores e em cerimônias oficiais do governo, além de uma peça publicitária da (Secom). 

Quer saber mais?

Calma, tem a 2ª parte deste texto! Lá vamos demonstrar como a ciência vem mapeando a atuação de grupos políticos na internet, suas estratégias e esclarecer por que o debate em torno da obrigatoriedade da vacina não está aberto.

Para saber mais / Referências: 

1. McCOMBS, Maxwell; SHAW, Donald (1972) The agenda setting function of mass media, In Public Opinion Quarterly, Vol36, N2, Summer 1972, P176-187.

2. McCOMBS, Maxwell (2009) A teoria da agenda: a mídia e opinião pública, Petrópolis: Vozes.

3. CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward S; (2010) Manufacturing consent: The political economy of the mass media Random House, 2010.

4. ABRAMO, Perseu (2016) Padrões de manipulação na grande imprensa, Com colaborações de Laura Capriglione [et al] – 2ed, São Paulo: Editora Fundac̦ão Perseu Abramo.

5. ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M (2011) Merchants of doubt: How a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming, Bloomsbury Publishing USA, 2011. 

6. KENNER, Robert (2014) Merchants of Doubt, Participant Media, EUA, 30 ago, 96 min.

7. LEITE, José Corrêa (2014) Controvérsias científicas ou negação da ciência? A agnotologia e a ciência do clima; Scientiae Studia, v12, n1, p179-189.

Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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