Dentro de mim outra ilha

Gosto muito de ver estreias e perceber pontos de fragilidade que apenas o tempo de vida da obra vai fortalecer. E gosto muito também de ver peças consagradas a algum momento histórico, reacts, remontagens e peças de vida longa. Esse é o caso de Dentro de mim outra ilha, do renomado coreógrafo moçambicano Panaibra Gabriel.

A peça é uma criação de 2004 e foi premiada em 2006 no concorrido Danse l’Afrique Danse que aconteceu em Paris. A remontagem é parte da comemoração dos 20 anos da Cia. Culturarte e estão em cena 4 dos 5 bailarinos que participaram da criação original: Domingos Bié, Janete Mulapa, Idio Chichava e Edna Jaime. Horácio Macuácua, que à época ainda não havia iniciado sua carreira como coreógrafo, foi substituído por Pak N’Djamena. São cinco dos mais experientes bailarinos contemporâneos de Moçambique e o trabalho de movimento que realizam no palco é sempre que qualidade admirável.

A peça tem design de luz e cenografia de Quito Tembe, atualmente diretor do Kinani: areia na primeira fila e uma estrutura de torneiras que produz uma chuva cênica, com água de verdade. Elementos táteis que garantem, aliados ao primoroso trabalho dos bailarinos, sensualidade à Ilha.

A peça representou à sua época uma ruptura na cena de dança que estava em jogo no Danse l’Afrique Danse e a principal concorrente foi a peça O olho e a percepção de Maria Helena Pinto, também moçambicana. É um período lembrado pelos artistas como de grande efervescência da criação coreográfica contemporânea em Maputo.

Na cena, Janete Mulapa canta na língua xangana, constroem-se ritmos com percussão corporal, explora-se a repetição de gestos com diferentes qualidades, há expressividade nos rostos, Pak realiza uma cena que assisti em outras criações locais: grita desesperadamente olhando diretamente para o público. Pergunto-me se a origem dessa cena seria justamente Dentro de mim outra ilha, pois peças consagradas tendem a se tornar um modelo para novas criações.

Algo que chama minha atenção é tentar desvendar a própria trajetória criativa do coreógrafo, Panaibra Gabriel, pois me interessa perceber o desenvolvimento de um pensamento coreográfico. Gabriel tem uma carreira longa, de sucesso internacional e nunca parou de criar. Em algum momento hei de me dedicar à análise temporal de suas criações.

Dentro de mim outra ilha será mostrada uma segunda vez ainda no Kinani antes de entrar em tournée.

Mucíná - Aquela que Dança | marilia.carneiro@alumni.usp.br | Website | + posts

Doutora na área de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte (Brasil/UNICAMP, Canadá/UQAM e Moçambique/UEM), dançarina e coreógrafa indisciplinar, bacharelou-se em Dança na Faculdade Angel Vianna (Rio de Janeiro) e bailarina criadora no Ateliê Coreográfico sob a direção de Regina Miranda (RJ/NYC). É especialista em Saúde Pública pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, mestre em Ciências da Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e atuou por 10 anos nas políticas públicas de saúde, inclusive a implantação do programa integral de atenção à saúde dos povos indígenas aldeados no Parque do Xingu, pela Escola Paulista de Medicina da UNIFESP. Na área da Dança trabalhou com muita gente competente no meio profissional internacional da dança contemporânea. É improvisadora mais do que tudo, bem que gosta de uma boa coreografia. Esteve em residência artística em Paris por 3 anos, com prêmio do Minc. Mulher de sorte, estudou de perto com Denise Namura & Michael Bugdahn, da Cie. À fleur de peau (Paris). Pela vida especializou-se no Contact Improvisation (Steve Paxton), onde conheceu as pessoas mais interessantes do mundo. Estudou pessoalmente com Nancy Stark Smith, Alito Alessi (DanceAbility), Daniel Lepkoff, Andrew Hardwood, Cristina Turdo e toda uma geração de colegas que começou ensinar Contact na mesma época que ela. Interessa-se por metodologia de pesquisa em arte, processos de criação de obras e ensino-aprendizagem e formação profissional em Improvisação de Dança. Estudou no Doctorat en études et pratiques des arts (Montreal, no Canadá) com o privilégio da supervisão de Sylvie Fortin. É formada no Método Reeducação do Movimento, de Ivaldo Bertazzo (BR). Seu vínculo com a Unicamp é de ex aluna da Faculdade de Ciências Médicas e da Faculdade de Educação. Suas pesquisas triangulam a dança contemporânea no Brasil, Canadá e Moçambique. Idealizou, fundou em 2016, e dirige a plataforma interdisciplinar de ensino e pesquisa em prática artística Mucíná - Aquela que Dança. E-mail: marilia.carneiro@alumni.usp.br

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