Quando assumi a tarefa de manter este blog ativo o fiz na intenção de discutir temas e preparar tutoriais sobre a minha experiência na comunicação para colegas divulgadores científicos.
A ideia surgiu após terminar meu mestrado sobre o perfil do divulgador científico e perceber que a maioria dos divulgadores científicos ativos e até com uma grande quantidade de visibilidade não possuíam (ou não de forma aprofundada) preparo em comunicação.
Em sua maioria há uma dedicação maior no tempo de estudo para os assuntos científicos que pautam seus canais e tendências para aumento de visibilidade de suas plataformas digitais do que discussões importantes que permeiam a comunicação.
Essa tendência fica evidente também nos cursos e palestras que a nossa equipe do Blogs Unicamp sempre ministra recebendo mais perguntas sobre “como aumentar os números de seguidores” do que assuntos relacionados a produção do conteúdo ou ética na comunicação, por exemplo.
Foi então que me deparei com a palestra da Luiza Caires “Ética na Comunicação de Ciências – reflexões como base para a prática” para o Webinários do Grupo de Jovens Investigadores em Ciências da Comunicação promovido pela Associação Portuguesa em Ciências da Comunicação e pensei:
Por que não fazer um texto em formato “react” dessa palestra?
React é uma estratégia de marketing em que alguém se propõe, voluntariamente, a acompanhar o conteúdo de outra pessoa e reagir, comentando, acrescentando ou até criticando. A ideia da estratégia é aproveitar um conteúdo já pronto e produzir algo novo a partir dele, aproveitando as emoções já geradas e acrescentar novas.
A estratégia é muito utilizada em canais em formato de vídeo, principalmente em momentos em que a produção de conteúdos novos está estagnada e é preciso produzir sempre para que o algoritmo continue te vendo como relevante.
Os vídeos também são a preferência por conseguirem demonstrar mais claramente algumas emoções, como susto ou perplexidade, por exemplo.
Mas aqui vamos fazer um react em formato de texto que nos permite, além do registro do material em um repositório, acrescentar comentários e outras referências além das já citadas pela Luiza. Minhas contribuições serão sinalizadas pela cor laranja.
Se você chegou até aqui na divulgação científica e ainda não conhece a Luiza Caires (@luizacaires3), pare tudo e vá conhecer o trabalho dela e não deixe de assinar seu boletim de notícias no Polígono para ficar por dentro dos debates recentes da divulgação científica.
React: A Ética na Comunicação de Ciências: reflexões como base para a prática de Luiza Caires
O vídeo completo da palestra por ser conferido aqui:
Luiza inicia a palestra comentando que a experiência na comunicação de ciência é muito diversa e muda de caso para caso, assim o teor desta conversa será dedicado a refletir e discutir a base da ética para a prática. Ou seja é mais sobre como pensar a ética do que um roteiro do que fazer ou não fazer.
Assim ela utilizará de vários autores (que serão lincados conforme o tema) para debater o tema Ética na Comunicação de Ciências. Nos meus comentários também colocarei outras sugestões de leitura! 🙂
No segundo slide ela comenta que o principal desafio, em sua prática como comunicadora de ciência, está em juntar as 3 questões (comunicação, ciência e saúde) em uma ação ou prática comunicacional, que responda as seguintes questões, uma vez que cada um deles já possui seu próprio código de ética.
Como é possível respeitar suas particularidades e códigos de ética democratizando a informação?
Como usar a comunicação para criar valor e não só evitar danos?
Como usar o princípio do jornalismo de dar voz a múltiplos pontos de vista sem dar voz para algo degradante a indivíduos ou grupos?
(Medvecky e Leach, 2019)
No meu trabalho, também lido com as seguintes questões:
- Como usar o princípio do jornalismo de dar voz a múltiplos pontos de vista sem dar voz a pseudociências e fake news científicas?
- Como lidar com o tempo da ciência e o tempo da comunicação?
- Como não se perder na emergência de tudo e acabar por produzir conteúdos rasos, sem acurácia, sem reflexão ou que acabe por ferir pessoas ou grupos?
Luiza comenta que para respondermos essas perguntas e começarmos a pensar a ética na comunicação é importante termos alguns direcionamentos.
1º Principalismo: Não dita ou prescreve o que deve ser feito, mas direciona decisões e reflexões sobre suas escolhas considerando como suas ações interagem com os princípios.
2º Ética relacional: Nos ajuda a dar sentido ao papel das relações como determinantes sobre o que conta como uma boa relação comunicativa. Também não dita ou prescreve e não se trata de uma abordagem algorítmica.
3º Ética reflexiva: Nos convida a refletir sobre a ação em contexto. O raciocínio ético supera a ação ética.
Em sua explicação, Luiza comenta como é difícil separar a ciência da sociedade, portanto os seus valores, questionamentos, transparência, política e valores não estão externo a ciência.
Concordo com Luiza e ainda destaco que a ciência precisa fazer parte do cotidiano das pessoas, inserindo-se em debates e reflexões que a sociedade está exigindo agora. É contraproducente se negar a fornecer recursos informacionais com a desculpa de que isso nem deveria ser discutido ou pela falta de tempo, etc. Continuar se colocando nessa posição de superioridade ou de inalcançável só contribui para a desconfiança e antipatia pela ciência.
Entendo que nesse período pandêmico e de sucessivos cortes na ciência isso ficou bem claro!
Falamos um pouco sobre isso nos textos:
- Por um olhar mais ético e menos apressado na comunicação sobre ciência e sociedade
- Fazer Divulgação Científica sobre pandemia em uma sociedade do espetáculo
- Tudo vale a pena por vacinas e divulgação científica? Funk e K-pop
- Como fazemos a divulgação da divulgação científica no Blogs de Ciência da Unicamp?
- A importância e os desafios de se comunicar ciência no Brasil em tempos de COVID-19
- Comunicação comandada e a exaustão de quem debate
- É possível existir neutralidade de dados na ciência e na produção de conhecimento?
Luiza continua o debate refletindo sobre essa apresentação da ciência a sociedade e se por um lado a ciência precisa estar aberta e entender que seu papel é estar inclusa e não fora das questões debatidas pela sociedade, o comunicador de ciência deve entender qual a sua responsabilidade em fornecer tal informação.
…uma narrativa de “siga a ciência” mascara um papel alternativo fundamental que a ciência deve desempenhar na tomada de decisões éticas, ou seja, ajudar a informar e comunicar as possíveis compensações que acompanham as escolhas políticas.
Nason Maani e Sandro Galea. What Science Can and Cannot Do in a Time of Pandemic
A democratização da ciência é um valor em si mesmo. É preciso informar para permitir o debate público sobre os desenvolvimentos. Processo científico sem inclusão e participação não é ético.
Luiza Caires
Dessa forma, ela apresenta alguns pontos importantes da comunicação que podem ajudar a entender em quais termos o comunicador deve apresentar a ciência a sociedade:
A – Persuasão na comunicação não se trata de um valor negativo, (apesar de o jornalismo evitá-la). O importante é que seja consciente e explícita.
Persuasão para a comunicação se trata de uma estratégia que consiste em utilizar de recursos emocionais, linguísticos, simbólicos e/ou algorítmico para chamar a atenção para uma ideia, conteúdo ou ação. E é claro que se espera do comunicador que haja ética e cuidado ao usar essas estratégias, principalmente em um momento histórico onde o que aparenta importar mais são números que as plataformas digitais indicam.
A responsabilidade e o desafio está em chamar a atenção para o conteúdo, lidar com as regras dos algoritmos que não são claras e mudam sem aviso e ter de produzir um conteúdo científico que respeite os termos da ciência.
Vou incluir aqui também o uso de Frames (enquadramentos) que a Luiza destaca mais para o final da apresentação que se trata do ato de:
Selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e torná-los mais salientes em um texto de comunicação, de forma a promover uma definição de problema particular, interpretação causal, avaliação moral e/ou recomendação de como tratar dele.
R.M. Entman. Framing: Toward clarification of a fractured paradigm.
As organizações científicas podem usar o enquadramento para motivar maior interesse e preocupação, expandindo, assim, o público para a ciência, para ir além da polarização e das interpretações fixas de uma questão, e fornecer um contexto para o diálogo, ou para estimular o apoio público a políticas informadas pela ciência e que resolvam problemas coletivos.
2009 Nisbet, M. C., & Scheufele, D. A. “What’s next for science communication? Promising directions and lingering distractions”.
Para usar a estratégia de Frame de forma ética é recomendado que:
Priorize o diálogo e a expressão cidadã de baixo para cima;
Evite falsas voltas ou exageros;
Mantenha-se fiel ao que é consensualmente conhecido sobre um tópico científico;
Evite a difamação de grupos sociais e o avanço das motivações partidárias;
Devem ser usados para enfatizar o terreno comum e promover o diálogo em vez de gerenciar informações de cima para baixo;
Devem comunicar os valores subjacentes que orientam uma escolha política, em vez de sugerir que a informação científica obrigue a uma certa decisão;
Precisam permanecer precisos e não distorcer ou exagerar o significado do conteúdo;
Não devem ser usados para tipificar um grupo social específico ou para líderes políticos para usar deliberadamente para ganhos eleitorais.
(Nisbet e Scheufele, 2009)
Falamos mais sobre esse assunto nesses textos dedicados a estratégias de marketing para a divulgação científica:
- Porque liberdade de expressão não é desculpa para falar o que quiser na internet?
- Habitus e o sequestro do eu-nós
- O ódio como engajamento
- O Spoiler como discurso
- A Sociedade do Espetáculo e a individualização do ódio
B – Storytelling: vantagens são conhecidas, mas e os potenciais danos? A Luiza comenta aqui que a adoção de uma abordagem causa-efeito ou individualizada pode gerar uma resultado diferente do esperado como a sensação de algo inevitável ou difícil de ser contestada, justamente por se basear em casos reais.
Essa estratégia é importante para cativar o público, prendê-lo até o fim do conteúdo e até aproximá-lo de conceitos difíceis, mas deve-se refletir e deixar claro quando há mudanças e quando se trata de algo muito específico e incomum.
No texto do Eduardo Sato, “A fabulosa feira de produtos quânticos”, ele usa o storytelling para discutir o uso distorcido de termos científicos para agregar valor em produtos comuns.
Também vou incluir nesse ponto o termo narrativa que é detalhada no final da apresentação.
A narrativa se trata de uma forma de comunicação que envolve uma sequência temporal de eventos influenciados pelas ações de personagens específicos. Nesse sentido elas criam significados implícitos em vez de explícitos e retratam a realidade através da visão de um personagem e não como uma certeza objetiva. Portanto é importante avaliar os riscos e benefícios dessas formas de uso. (Dahlstrom e S. Ho, 2012)
C – Financiamento: implicações éticas de quem financia a ciência e a sua comunicação.
A questão do financiamento na ciência e na comunicação já foi largamente discutida ao longo da história, e é obvio que a credibilidade da informação fica comprometida quando é advinda de um financiador com interesses financeiros na informação, seja econômica ou politicamente.
Contudo, quero destacar, que o não pagamento também implica em problemas, na ciência é comum vermos cientistas, principalmente em início da carreira, se propondo ao voluntariado em tarefas que deveriam ser de carreira e esse é o caso da maioria dos divulgadores científicos em atividade.
O eterno voluntariado do divulgador científico compromete a ciência, não traz resultados palpáveis e frustra o cientista/comunicador disposto a contribuir com a informação destinada à sociedade.
Falamos mais sobre esse assunto nesses textos:
Luiza continua sua apresentação destacando 4 dos princípios para uma ética da comunicação científica, que de acordo com Fabien Medvecky e Joan Leach, podem contribuir para criar a ética da divulgação científica:
1 – Utilidade: Antes de decidir por divulgar uma informação ou um conhecimento é preciso refletir se esses são inerentemente bons. Lembrando que é preciso separar o que é dado, informação e conhecimento:
Os dados são pedaços de fatos brutos, informações são dados organizados de modo a aumentar sua utilidade e o conhecimento é a experiência subjetiva (de um indivíduo ou um coletivo) de avaliar e incorporar novos informações e experiências em um quadro mental significativo.
Essas informações precisam de contexto, que sejam apresentadas de forma que não cause dano. Tendo em mente, inclusive a possibilidade de retirar ou até suprimir informações.
A informação deve servir para que a sociedade de fato as use, interagindo, agindo ou se beneficiando dela. Ou seja, o comunicador precisa ter em mente qual é a relevância dessa informação na vida das pessoas, antes de divulgá-las.
Vou destacar nesse ponto um exemplo diferente dos usados pela Luiza: O caso da série “13 reasons why” que teve sua estreia em 2017 na Netflix.
A série é baseada no livro de mesmo nome e narra as questões e as consequências que levam a personagem principal a tirar a própria. O criador da série, Brian Yorkey, propôs uma produção que debate questões pesadas como depressão e estupro na adolescência de forma menos ficcional e menos romantizada.
Nesse contexto a série apresenta em seu último capítulo a morte da personagem principal em detalhes levantando o debate sobre até que ponto essa abordagem ajuda pessoas que estão passando pelos mesmos problemas.
Para se ter uma ideia dados do JAMA (Journal of the American Medical Association), mostrou que, após a estreia da série, as pesquisas sobre suicídio e métodos suicidas no Google cresceram 19%, em comparação com o ano anterior. Após a segunda temporada a Netflix optou por retirar a cena.
2 – Acurácia: Faz parte do trabalho do divulgador científico adaptar os termos e conceitos científicos para um público que talvez, desconheça completamente o assunto, assim qualquer desvio do acurado, do exatamente correto, precisa ser avaliado e só deve ser alterado se os benefícios superarem os prejuízos da informação.
3 – Kairos: a noção de que há uma forma certa e um tempo adequado para dizer a coisa “certa”.
A comunicação científica é tanto sobre o QUANDO, o COMO e os PORQUÊS
Mas como definir o “timing” na era da comunicação imediata e em que tudo parece urgente? É importante diferenciar qual é a urgência real da sociedade em receber aquela informação, lembrando que a ciência e a comunicação possuem tempos diferentes e precisam ser respeitadas.
É importante lembrar aqui que o jornalismo e a divulgação científica, mesmo sendo duas formas de comunicar também possuem tempos diferentes. Enquanto o jornalismo trabalha com o ineditismo, a divulgação científica trabalha com a reflexão e discussão sobre os assuntos que acercam a ciência.
4 – Generosidade: No que concerne ao conteúdo e posição epistêmica do outro (público), e no que diz respeito à amplitude de participação e engajamento.
As relações que sustentam a comunicação científica deve ser motivadas por um espírito de generosidade e um desejo genuíno de melhor compreensão do mundo na perspectiva do outro.
Generosidade epistêmica: comunicação com o pressuposto de que as outras partes envolvidas (o público) têm seus próprios conhecimentos, experiências e aspirações que valem a pena e podem contribuir para um melhor conhecimento e compreensão do mundo. Não partir do ‘eu sei mais’.
Generosidade distributiva: comunicar-se com uma ampla variedade de atores. Faz diferença quem tem acesso ao conhecimento e quem consegue participar da comunicação
(Medvecky e Leach, 2019)
Luiza deixa bem claro aqui a importância do diálogo entre a ciência, a comunicação e a sociedade em igualdade, considerando seus conhecimentos, interesses e sua cultura.
Para encerrar esse texto vou deixar o material do SaferNet Brasil que fala um pouco mais sobre as boas práticas na produção de conteúdo para a internet: