Os problemas da coleta não controlada e do comércio de fósseis

iconDesde sempre existiram pessoas interessadas em fósseis. Eles, de fato, são objetos curiosos, que despertam a imaginação. Por serem objetos interessantes, algumas pessoas desenvolvem a ânsia por colecioná-los. Esse interesse, no passado, ajudou a impulsionar a formação das primeiras coleções de fósseis, nos então ‘Gabinetes de Curiosidades’. Algumas dessas coleções, antes utilizadas apenas para regozijo próprio, eventualmente foram integradas aos primeiros museus, e – finalmente – dedicadas ao interesse científico. Colecionar fósseis contribuiu para história da Paleontologia, mas na atualidade, essa prática pode acabar prejudicando a Ciência. Como isso acontece? Vem comigo para entender:

O interesse em colecionar fósseis acaba impulsionando a coleta amadora e o comércio de fósseis. Se por um lado a coleta amadora ajuda a reforçar a paixão e o interesse pelos fósseis nas pessoas, ela também pode causar perda de informação científica.

Coletores amadores de fósseis muitas vezes acabam retirando indevidamente os fósseis dos afloramentos, sem controle tafonômico ou estratigráfico. Com isso, informações relevantes, ou até mesmo cruciais, estarão perdidas para sempre.

Uma reflexão sobre isso: De que adianta ter uma coleção de espécies (ou espécimes), se eu não sei onde encaixá-las no cenário da história da vida na Terra ou no seu contexto paleoambiental e paleoecológico? Nesse cenário, o único valor daqueles objetos será puramente estético e colecionista, nada mais. Como figurinhas num álbum ou verbetes num dicionário.

Por muitas décadas, alguns paleontólogos construíram a paleontologia dessa forma. Coletando toneladas de fósseis sem o devido controle, simplesmente para descrever novas espécies. Veja o exemplo do que ocorreu durante a “Guerra dos Ossos” (Bone Wars), nos E.U.A. O resultado pode parecer fantástico (inúmeras espécies descritas!), mas, na verdade, é bastante desastroso. O que aconteceu foi que outros paleontólogos levaram décadas para consertar a bagunça taxonômica gerada. E, pra ser sincera, até hoje sofremos com isso.

Demorou até que essa visão essencialmente descritiva e colecionista da paleontologia desabasse em prol de uma nova atitude dos paleontólogos. Hoje, um fóssil sem as informações do seu contexto, não vale muita coisa para a Ciência. O seu valor passa a ser essencialmente para o ego do pesquisador que o nomeia.

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Coletores amadores geralmente realizam a retirada dos fósseis de maneira indevida por falta de conhecimento especializado ou porque simplesmente não se importam com o contexto. Alguns estão apenas interessados em vender o material.

Diferente do que se pode pensar, existem técnicas específicas, elaboradas e aperfeiçoadas ao longo do tempo, para a retirada de materiais fósseis de um afloramento. O objetico é extrair o máximo de informações sobre o local e a condição de morte do organismo. Para citar algumas das informações importantes, que geralmente são perdidas por uma coleta indevida:

I) a posição geográfica exata e a orientação do material: esses dados podem ajudar a compreender direções de paleocorrentes (rios pretérios), por exemplo;

II) o tipo de sedimento do entorno e a posição exata do fóssil nas camadas sedimentares: o conhecimento desses dados nos ajuda a interpretar informações detalhadas sobre o paleoambiente em que aqueles restos foram soterrados e a sucessão ecológica de uma comunidade ao longo do tempo;

III)  a posição daquele fóssil em relação a outros do mesmo local: isso pode ajudar a entender a relação entre os organismos e a causa de suas mortes.

E assim por diante. Coletar essas informações exige preparo e materiais específicos. Um bom georreferenciamento do sítio fossilífero, um estudo geológico detalhado das camadas e a anotação exata da ocorrência de cada concentração fossilífera e de cada fóssil são fundamentais.

O segundo problema que devo destacar, é que a atividade de coletores amadores (com intenção de venda ou não do material) faz com que muitos fósseis relevantes acabem sendo perdidos. Essa perda pode se dar por múltiplas razões.

A primeira é o pensamento de que “fóssil feio não vale nada ou é desinteressante”. Com base neste pensamento, muitos materiais são descartados. De fato, para um colecionador com interesse estético, um pedaço quebrado de uma vértebra ou um par de ossos longos desgastados não valem nada mesmo. Mas esse é um grande engano. Por vezes, um fóssil “feio” e fragmentado pode ser o primeiro registro de um grupo de animais para aquele contexto geológico ou pertencer a algum tipo de animal que raramente se preserva. Em casos excepcionais, pode ser crucial para o entendimento da distribuição ou o surgimento de alguns grupos fósseis. Quantas vezes você não se surpreendeu com um artigo baseado em “cacos feios” de fósseis e pensou “mas que fóssil horrível! Por que isso poderia ser tão importante assim?”. Porque não é só de fóssil bonito que se faz Paleontologia.

Em um segundo caso, a perda de fósseis relevantes ocorre, porque um dado colecionador coleta ou compra um fóssil e.x.t.r.a.o.r.d.i.n.á.r.i.o, que poderia mudar o rumo da Paleontologia, mas o coloca na mesinha de centro de sua sala. Neste caso, raramente um pesquisador ou grupo de pesquisa terá acesso àquele espécime e o mais provável é que ele permaneça, para sempre, incógnito para a ciência. A história da Paleontologia está recheada de exemplos assim. Fósseis incríveis, que aparecem à venda em sites por aí e, de repente, somem para sempre. Isso ocorre, porque o colecionador muitas vezes nem sabe que aquilo é tão valioso cientificamente, apenas pensa na beleza estética da peça.

Em qualquer um desses casos expostos acima, há perda irrecuperável de parte da memória biológica e geológica da Terra. Da SUA, da NOSSA história.

Mas não é só isso, não raramente fósseis são ADULTERADOS por coletores ou vendedores de fósseis para valorizá-los.

Isso é muito sério. Não é raro alguém interessado em comercializar um fóssil fazer uma “modificaçãozinha” para conseguir um preço melhor na peça.  Um arrumadinho ou um quebra cabeça de fósseis. Colar a cabeça de um peixe no corpo de outro, parte do focinho de um crocodilo em uma cabeça de dinossauro, misturar dois pterossauros… e por aí vai. Não preciso dizer que isso estraga o registro, certo?

A parte tragicômica dessa história é que, às vezes, pesquisadores mal intencionados (ou preguiçosos) ou intituições de pesquisa que ficam muito longe de depósitos fossilíferos, compram esses fósseis para “facilitar a sua vida” e acabam sendo desmascarados no seu ato de trapaça, descrevendo uma espécie que não existe: uma quimera. Depois só resta a vergonha de ter que se retratar e consertar o ocorrido publicamente (Irritator feelings). – Leia AQUI também sobre o caso do Archaeoraptor.

Infelizmente,  algumas vezes esses fósseis montados podem (depois de passarem de mão em mão por gerações) cair em institutos de pesquisa por meio de doações particulares. Aí, até que os pesquisadores descubram que têm um fóssil-fake na mão, terão muito trabalho. Trabalho que poderia estar sendo focado em outras pesquisas mais produtivas.

Também há a adulteração de dados, como quando um fóssil de um depósito fossilífero é vendido como se fosse de outro. Isso pode ocorrer por uma mera confusão do coletor amador, ou por intenções pervertidas de valorizar a peça. As implicações disso também são desastrosas e corrigir esses erros pode levar ANOS de pesquisa (e atrasar muito o avanço da ciência naquela área).

Todos os problemas que citei são graves, porém não foi baseado apenas nisso que vários países do mundo (como Brasil, Argentina, Peru, Mongólia, China, etc.) resolveram elaborar leis para proteger os seus fósseis. Há uma questão muito mais profunda, que está presente em toda nossa discussão: toda a informação contida em um fóssil não deveria ser propriedade particular, já que faz parte da história do planeta. Da nossa história. Sob essa perspectiva, comercializar fósseis seria como vender o Coliseu ou as pinturas da Serra da Capivara. Vender o Cristo Redentor ou a Grande Barreira de Corais. Vender a memória de Luís Gonzaga ou a Amazônia. Sempre vai ter sempre alguém querendo comprar, mas quem vender perde muito mais do que apenas o bem em si.

Pessoas tendem a enxergam as coisas a curto prazo e pensar apenas em benefício próprio, é necessária uma reflexão mais profunda para enxergar a importância de um fóssil e como ela transcende o indivíduo.

Muitos países que escolheram proteger os seus fósseis, enxergam além do lucro imediato que pode ser obtido com a simples venda. Eles veem nos fósseis a possibilidade de se desenvolver como Nação, acumulando capital científico, dando suporte a formação de pessoas e construindo uma economia sustentável, não exploratória.

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Cada fóssil é único e insubstituível, porque não investir em turismo e na venda de réplicas de fósseis?

Alguns defendem a comercialização parcial de fósseis. Ou seja: de apenas alguns tipos fósseis ou de fósseis de algumas localidades. Mesmo com regulações impedindo a venda de determinados fósseis ou controlando a coleta feita por amadores à algumas localidades, não dá 100% certo. Podemos dar o exemplo da Inglaterra. Muito material é destuído e perdido. Os colecionadores particulares de fósseis não querem aquilo que é simples conseguir; aquilo que está liberado, que é fácil de obter/comprar. Eles querem raridades, fósseis difíceis de conseguir, os melhores. Liberar a venda de Dastilbe na Chapada do Araripe ou de mesossauros no Sul e Sudeste do Brasil, por exemplo, e proibir a venda de materiais mais raros, bem preservados ou cientificamente mais relevantes, não vai adiantar nada. Sejamos francos: todos sabemos como funciona sistema capitalista. O que vai reger o jogo é a lei da oferta e da procura.

Eu só quero umas coisinhas simples!
Eu só quero umas coisinhas simples!

Proibir a  venda e retirada ilegal de fósseis e usar estes bens de outras formas é a melhor solução. No caso do Brasil, em que a Paleontologia ainda é jovem, temos que cuidar de nosso patrimônio com carinho, para que isso também não seja apropriado por outros países, como tantas de nossas riquezas já foram.

A legislação sobre os fósseis aqui no Brasil tem muito o que ser discutida. Ela, de fato, não é perfeita e ainda permite a perda de muito material. Temos que realizar um forte trabalho de educação patrimonial junto a população, desde a base, e desenvolver ações positivas junto às populações de áreas onde ocorrem fósseis. Não basta ensinar o que pode e o que não pode, há de se ensinar a importância dos fósseis. É um longo processo, que deve ser discutido não apenas no meio acadêmico, mas também junto à população.

Vale a pena lutar para preservar nosso Patrimônio. Você pode não viver para ver todos os resultados positivos disso, mas o seu filho vai te agradecer e ter orgulho das escolhas que você fez no passado.

Conheça a legislação sobre fósseis do Brasil: AQUI

“… os depósitos fossilíferos são propriedade da Nação, e, como tais, a extração de espécimes fósseis depende de autorização prévia e fiscalização do Departamento Nacional da Produção Mineral, do Ministério da Agricultura. Assim, pois, todo o particular que, sem licença expressa do Departamento Nacional da Produção Mineral, do Ministério da Agricultura, estiver explorando depósitos de fósseis, estará sujeito à prisão, como espoliador do patrimônio científico nacional.”